Soberania alimentar se refere ao acesso a mercados, solo fértil, sementes de qualidade, água, tecnologias de cultivo e energia
Soberania alimentar é um conceito que defende o direito dos povos a decidir sobre seu próprio sistema alimentar. Isso desde a produção até o consumo, com base em suas necessidades, cultura e recursos locais. A ideia é que as comunidades envolvidas na agricultura familiar tenham controle sobre a produção, distribuição e consumo de alimentos. Assim, sem depender de empresas transnacionais ou governos estrangeiros e ainda beneficiando o meio ambiente e milhões, ou até bilhões, de pessoas.
A soberania alimentar também envolve a garantia de:
- Condições justas de trabalho para os agricultores e trabalhadores rurais;
- Preservação ambiental — da biodiversidade e dos recursos naturais;
- Promoção da agricultura sustentável e da segurança alimentar para todos.
Segundo o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan), a segurança alimentar “consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade em quantidade suficiente sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais tendo como base práticas alimentares promotoras“.
Crítica ao modelo agroindustrial
O conceito de soberania alimentar tem sido utilizado como uma crítica ao modelo de produção agropecuária industrial dominante, um dos principais causadores das mudanças climáticas. Esse que muitas vezes coloca os interesses das grandes empresas acima dos interesses das comunidades locais e da sustentabilidade do meio ambiente.
Em vez disso, a soberania alimentar busca promover uma abordagem mais descentralizada e participativa para a produção e distribuição de alimentos. Desse modo, valorizando a diversidade cultural e ecológica.
Os defensores da soberania alimentar buscam promover o acesso popular a:
O tema está em voga porque o cenário econômico vigente compromete a soberania alimentar de alguns países. Uma vez que os submete aos interesses de agentes externos, subvertendo o uso da terra.
Esta passa a ser usada como geradora de commodities, até o seu esgotamento, e não como meio de produção de alimentos. Nesse sentido, alguns estudiosos do tema propõem que é necessário implementação da agroecologia como solução.
Quem cunhou o conceito de soberania alimentar?
O conceito de soberania alimentar foi cunhado pela organização não governamental Via Campesina em 1996, durante a Cúpula Mundial da Alimentação, realizada em Roma, Itália. A Via Campesina é uma aliança global de organizações de agricultores, trabalhadores rurais, pescadores e povos indígenas. Estes que lutam pelos direitos das comunidades rurais e pela agricultura sustentável.
Na ocasião, a Via Campesina apresentou a proposta de soberania alimentar como uma alternativa ao modelo agroindustrial dominante. Bem como às políticas neoliberais que estavam sendo promovidas por instituições internacionais, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional. Desde então, o conceito de soberania alimentar tem ganhado reconhecimento e apoio de diversos movimentos sociais, organizações não governamentais e acadêmicos em todo o mundo.
Entretanto, a popularização do termo soberania alimentar só ocorreu, em 2001, durante o Fórum Mundial sobre Soberania Alimentar realizado em Cuba. O conceito é postulado como o direito de todos à aquisição de alimentos saudáveis, de forma regular e sustentável, pautado pela identidade cultural alimentar de seu próprio povo e região.
Qual é o principal problema da soberania alimentar?
As forças econômicas dominantes têm representado uma ameaça à manutenção da vida e à capacidade dos países em desenvolvimento produzirem seu próprio alimento. Por meio da produção agropecuária, essas forças econômicas estão exaurindo os recursos naturais da Terra, inviabilizando a soberania alimentar de diversas nações. E, em alguns casos, causando cada vez mais insegurança alimentar e danos ao direito à alimentação.
Desde o início da colonização, mas, marcadamente com a Revolução Verde, em 1960, grandes empresas do setor do agronegócio passaram a substituir conhecimentos tradicionais de cultivo por pacotes tecnológicos de plantio, a nível global, em seus modelos de produção. Foram disseminadas novas sementes, uso intensivo de insumos industriais, mecanização e redução da quantidade e qualidade de mão de obra.
O Brasil aumentou sua fronteira de produção agrícola e passou a ser fornecedor mundial de grãos de soja, milho e algodão. Em paralelo, havia o genocídio indígena por parte do Estado como prática herdada da colonização. E os saberes tradicionais iam se perdendo continuamente para dar lugar às novas técnicas de manejo e uso do solo.
Além disso, ainda no período militar, foram estabelecidas mudanças no ensino do País. A Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID, sigla em inglês) impôs padrões ao Ministério da Educação (MEC). Assim, inviabilizando o ensino da agroecologia nas principais universidades, como apontado pelo professor e engenheiro agrônomo Carlos Pinheiro Machado em seu livro “Dialética da Agroecologia“.
Um projeto de fome
O manejo do solo voltado para a exportação, baseado principalmente em monoculturas, aumentou o poder de compra da moeda nacional. Em contrapartida, isso se deu a custo de problemas econômicos, ambientais e sociais.
O uso de agrotóxicos, por exemplo, causa, até os dias atuais, problemas graves à saúde pública. Em conjunto com práticas de desmatamento e monocultura, esses produtos químicos podem:
- Gerar desequilíbrios ecológicos;
- Aumentar a incidência de pragas;
- Reduzir a qualidade e diversidade de alimentos;
- Empobrecer o solo, reduzindo a oferta de serviços ecossistêmicos.
Além disso, elimina os meios de subsistência rurais tradicionais, gerando endividamento de milhares de agricultores familiares. Estes que, apesar de trabalharem com a terra, muitas vezes não têm acesso a recursos naturais e a segurança alimentar e nutricional, como apontado em relatórios da Oxfam.
A realidade mostra a contradição do sistema econômico vigente. Apesar de haver produção suficiente para alimentar a todos, quase um bilhão de pessoas ainda passam fome, sendo metade destas justamente aquelas que trabalham direto com a terra.
Os livros “História das agriculturas no mundo: do neolítico à crise contemporânea“, escrito por Marcel Mazoyer, e “Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia“, escrito por Larissa Mies Bombardi, resumem e explicam bem esse cenário.
Alimentos ou commodities?
A agricultura industrial globalizada, com ênfase em safras de exportação transgênicas, de biocombustíveis e de ingredientes para rações de gado, como aquelas baseadas em cana-de-açúcar, milho, soja, palma e eucalipto, se caracterizam como commodities, e não como alimentos.
Essa remodelação está ocorrendo em meio a uma mudança climática que deverá ter efeitos amplos e de longo alcance na produtividade agrícola. Predominantemente nas zonas tropicais do mundo em desenvolvimento. Os riscos incluem:
- Aumento de inundações em áreas baixas;
- Maior frequência e severidade de secas em áreas semiáridas;
- Condições climáticas extremas.
Globalmente, a Revolução Verde promoveu o aparecimento de pragas como ervas daninhas, insetos, doenças e nematoides. Desse modo, retirando a resiliência natural dos sistemas tradicionais. Mas, para além disso, o uso da terra com a finalidade de produzir commodities e não alimentos, inviabiliza a soberania alimentar.
Agroecologia como solução
A agroecologia é uma forma de agricultura sustentável que retoma as concepções agronômicas anteriores à chamada Revolução Verde. São chamadas de agroecologia as práticas de agricultura familiar que incorporam as questões sociais, políticas, culturais, energéticas, ambientais e éticas ao seu desenvolvimento.
Essa área do conhecimento pretende superar os danos causados à biodiversidade e à sociedade como um todo. Através da prática da monocultura, do emprego dos transgênicos, dos fertilizantes industriais e dos agrotóxicos. Dessa forma, é possível garantir a segurança alimentar para milhões de pessoas e reconhecê-la como um direito de todos.
Os manejos que se enquadram no conceito de agroecologia pressupõem a prática da agricultura orgânica e o emprego de tecnologias limpas. Consequentemente gerando menos externalidades ambientais negativas e mais alimentos de qualidade.
De acordo com pesquisas citadas no livro “Dialética da Agroecologia“, a produção agroecológica tem capacidade de produção de cerca de 6% a 10% maior do que a produção do modelo do agronegócio vigente, sendo mais limpa e barata.
Entretanto, mesmo sendo mais produtiva, a agroecologia refere-se ao estudo da agricultura a partir de uma perspectiva ecológica, tendo como objetivo não só maximizar a produção, mas otimizar o agroecossistema total – incluindo seus componentes socioculturais, econômicos, técnicos e ecológicos. Por isso, ela precisa ser implementada por meio de políticas públicas e tem sido abordada como o meio para a obtenção da soberania alimentar.