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Efeito antidepressivo ocorre de modo independente do que altera a percepção da realidade

Por Felipe Floresti em Pesquisa Fapesp | Estudos realizados nos últimos anos com um número ainda modesto de participantes sugerem que os psicodélicos, compostos conhecidos por alterarem a percepção da realidade e causarem alucinações, têm um efeito antidepressivo rápido e potente. Um trabalho internacional publicado em 5 de junho na revista Nature Neuroscience está ajudando a desvendar como eles atuam para amenizar a depressão. O estudo, do qual participaram três pesquisadores brasileiros, indica ainda que o efeito contra a depressão seria independente daquele que causa a distorção da realidade, o que pode, em princípio, levar ao desenvolvimento de medicamentos mais eficazes e livres dos efeitos alucinógenos para tratar um problema que aflige cerca de 300 milhões de pessoas no mundo.

Em experimentos com células e animais de laboratório, o grupo coordenado pelo neurocientista Eero Castrén, da Universidade de Helsinque, na Finlândia, verificou que os psicodélicos preparam os neurônios para responder melhor a uma proteína que estimula a formação de novas conexões com outras células e do reforço das já existentes, o fator neurotrófico derivado de encéfalo (BNDF). Compostos como o ácido lisérgico (LSD) e a psilocina, extraída de cogumelos do gênero Psylocibe, aderem a uma proteína da membrana dos neurônios chamada receptor de quinase B relacionado à tropomiosina (TrkB), que é ativado pelo BDNF. Produzido no próprio cérebro, o BDNF, ao se ligar ao TrkB e ativá-lo, desencadeia uma cascata de comandos químicos que levam as células neuronais a se multiplicar ou a emitir prolongamentos e pontos de contatos com outros neurônios. Esse fenômeno, conhecido como neuroplasticidade, está associado à capacidade do cérebro de aprender e armazenar informações e à melhora dos sintomas depressivos.

Nos experimentos descritos na Nature Neuroscience, neurônios de ratos cultivados em laboratório e tratados com LSD ou psilocina desenvolveram mais ramificações e conexões com outras células na presença de BDNF do que aqueles que receberam um composto inerte. Esse efeito de arborização das células se perdeu quando os testes foram feitos com neurônios com uma mutação genética que deformava o trecho do receptor TrkB ao qual os psicodélicos se ligam.

Bioquímicos, farmacologistas e médicos já suspeitavam de que a neuroplasticidade talvez fosse o fator responsável pela ação antidepressiva de muitos medicamentos, inclusive daqueles que aumentam os níveis do neurotransmissor serotonina, como a fluoxetina e similares. Uma das razões para a desconfiança de que o efeito desses compostos não fosse decorrente apenas do aumento da disponibilidade de serotonina ou de outros neurotransmissores é que os níveis deles sobem muito rapidamente após o início do tratamento, mas os sintomas da depressão só começam a diminuir semanas mais tarde. “Já se imaginava que, além do aumento dos níveis de serotonina, existiam outros fatores envolvidos”, conta o farmacologista brasileiro Cassiano Ricardo Diniz, coautor do estudo. Ele participou dos experimentos que mostraram a ação antidepressiva dos psicodélicos via TrkB durante a temporada que passou no laboratório de Castrén, na Finlândia. “Evidências obtidas por outros grupos sugeriam que o efeito antidepressivo de vários medicamentos se dava via BDNF, mas achávamos que a ação ocorria de forma indireta, pelo aumento dos níveis desse fator neurotrófico, e não porque os antidepressivos se conectavam à molécula que facilita a ação dele.”

O que se viu para o LSD e a psilocina, a forma da psilocibina que chega ao cérebro, já havia sido observado pelo grupo de Castrén em outros tipos de antidepressivo. Experimentos conduzidos pelo farmacologista brasileiro Plínio Casarotto, que integra a equipe finlandesa, e publicados em 2021 na revista Cell mostraram que também a fluoxetina, da categoria dos inibidores de recaptação de serotonina, a imipramina, um antidepressivo tricíclico, e a cetamina, um anestésico com ação antidepressiva, promoviam a neuroplasticidade por aderir ao TrkB e facilitar a ação do BNDF. “Os antidepressivos, sozinhos, não acionam esse receptor, mas o colocam em um estado suscetível à ativação pelo BDNF”, conta Casarotto, outro coautor do estudo.

A diferença verificada agora é que os psicodélicos apresentam uma tendência maior de interagir com o receptor TrkB do que a fluoxetina, a imipramina e a cetamina. Além disso, o LSD e a psilocina se conectam a um trecho do receptor ligeiramente distinto dos outros antidepressivos e tornam sua estrutura estável por mais tempo e mais favorável à adesão do BDNF. “Uma diferença mínima na orientação de uma proteína e a permanência nesse estado por alguns nanossegundos a mais têm uma consequência gigantesca para a ação do BDNF”, diz Casarotto. “O tempo e o modo como os psicodélicos se ligam ao TrkB talvez ajudem a explicar por que seus efeitos parecem começar mais rapidamente e serem mais potentes e duradouros do que os dos antidepressivos convencionais.” Antidepressivos clássicos têm uma afinidade muito baixa com o TrkB e, por isso, segundo os pesquisadores, seriam necessários níveis elevados para atingir a concentração que induz a neuroplasticidade, o que pode causar efeitos colaterais mais pronunciados.

Em testes com camundongos, os pesquisadores confirmaram esses achados e obtiveram indícios de que a interação com o receptor da serotonina seria a responsável pelos efeitos alucinógenos desses compostos. Roedores com uma mutação que deformava o TrkB – e impedia a adesão do LSD e da psilocina a esse receptor – não respondiam aos testes comportamentais que avaliavam os sintomas semelhantes aos de um quadro depressivo em seres humanos. Eles, no entanto, exibiam movimentos de torção do pescoço semelhante ao feito por cães quando tentam se secar, que se atribui à alucinação. Esse efeito desapareceu quando os roedores receberam um composto que impedia o LSD e a psilocina de se conectarem ao receptor de serotonina. “Demonstramos que o receptor de serotonina parece ser muito importante para o efeito alucinógeno dos psicodélicos, mas não para a ação antidepressiva”, relata a bióloga brasileira Caroline Biojone, da equipe da Universidade de Helsinque.

As descobertas desse estudo, dizem os autores, abrem caminho para o desenho de compostos com estrutura análoga à dos psicodélicos, que apresentem alta afinidade com o TrkB e ação antidepressiva de início rápido e duração prolongada, mas sem os efeitos alucinógenos. “Os dados sugerem fortemente essa possibilidade, mas é necessário que outros estudos reproduzam os resultados”, afirmou o psiquiatra Jaime Hallak, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto (FMRP-USP), que não participou da pesquisa.

Para o psiquiatra Acioly Lacerda, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o desenvolvimento de um antidepressivo apenas com as características desejáveis dos psicodélicos reduziria o risco de haver dependência química e potencialmente diminuiria parte dos custos do tratamento. Hoje os psicodélicos são usados em alguns países para tratar depressão apenas em condições experimentais, em ensaios clínicos que necessitam de aprovação prévia de comitês de ética e de agências regulatórias. “O caminho para se chegar a um novo medicamento com essas características é longo e com elevadas taxas de insucesso”, lembra Lacerda. “Mais de 90% das moléculas testadas para tratar doenças psiquiátricas não são aprovadas na fase final de ensaio clínico”, conclui.


Este texto foi originalmente publicado pela Pesquisa Fapesp de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.


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