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Demógrafa e antropóloga foi pioneira em identificar fenômeno da recuperação populacional entre indígenas brasileiros

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Por Christina Queiroz e Maria Guimarães em Pesquisa Fapesp | Nos anos 1990, quando se pensava que os indígenas vivenciavam um processo de extinção, a demógrafa e antropóloga Marta Maria do Amaral Azevedo descobriu que os povos originários da região do rio Negro, no Amazonas, experimentavam plena dinâmica de recuperação populacional. Seus achados coincidiram com descobertas similares em outras áreas do Brasil e funcionaram como ponto de virada à formulação de políticas públicas de saúde e educação para os povos indígenas.

Primeira mulher a presidir a Fundação Nacional do Índio (Funai), em 2012, a trajetória de Azevedo é marcada por um constante trânsito, nem sempre harmonioso, entre o indigenismo, a antropologia e a demografia. Nesse conjunto, seu foco principal tem sido a luta pelos direitos de povos indígenas, especialmente os Guarani-Kaiowá, com quem aprendeu e desenvolveu pesquisas e ações indigenistas desde a década de 1980.

Idade 67 anos
Especialidade
Antropologia e demografia
Instituição
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
Formação
Graduação (1978) na Universidade de São Paulo (USP) e doutorado (2003) na Unicamp
ProduçãoAutora de artigos e livros sobre demografia, segurança alimentar e saúde das mulheres indígenas, além de ter contribuído para incluir os povos originários no Censo Demográfico

Ameaçada de morte várias vezes desde muito jovem, a pesquisadora do Núcleo de Estudos de População Elza Berquó (Nepo) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) olha para o futuro dos povos indígenas no país com preocupação, mas também com esperança. Em meio ao recrudescimento da violência contra indígenas, Azevedo tem atuado na linha de frente para garantir o desenvolvimento de novas metodologias de coleta no Censo Demográfico, que, espera, deve trazer novidades sobre o mapeamento das populações tradicionais em território brasileiro, principalmente aquelas localizadas em áreas mais isoladas. Além disso, ela trabalha em projetos para resguardar a memória de povos nativos, buscando devolver o conhecimento acumulado às comunidades com as quais trabalhou nas últimas décadas.

Azevedo tem três filhos e uma neta, e concedeu a entrevista no apartamento em que vive sozinha.

Como você enxerga as relações atuais entre indígenas e brancos no Brasil?

O país tem um racismo enorme contra não brancos, incluindo negros e indígenas. O racismo contra os índios se traduz de duas maneiras. Uma delas deriva dos tempos do colonialismo e os vê como iguais à natureza: são ingênuos, não precisam entrar em universidades e, se usarem celular, deixarão de ser índios. Por muito tempo, no Brasil, se considerou que os indígenas não tinham capacidade de raciocinar, viviam em sociedades simples e se equiparavam a crianças. Por isso, precisavam ser tutelados pelo Estado. O outro tipo de preconceito é o oposto: o índio é selvagem, equiparado a um animal. Isso tudo tem raiz na ignorância da população. O artigo 26-A da Lei Federal nº 9.394, de 1996, torna obrigatório o estudo das histórias e culturas afro-brasileira e indígena. Porém essa prática não está disseminada. Temos mais livros didáticos sobre afro-brasileiros do que sobre indígenas.

Quais os reflexos dessa prática?

Depois de 2016, a violência contra lideranças indígenas aumentou exponencialmente, assim como a invasão de seus territórios. Terras indígenas dos Kaiapó, que sempre conseguiram fiscalizar seu território, foram invadidas. O rio Negro, na região amazônica, está sendo invadido. Na terra yanomami, logo no começo de 2019, o garimpo foi liberado e foram denunciados estupros, assassinatos e massacres. Nas terras munduruku, os garimpeiros entraram com balsas de mineração que nunca imaginei que existissem. Elas têm o tamanho de um estádio de futebol e jogam mercúrio no ambiente em uma quantidade e velocidade assustadoras. A contaminação da região de influência do rio Tapajós é enorme. O arco do desmatamento se expande cada vez mais e, agora, chegou até o Acre e ao sul do Amazonas. O preconceito se somou aos interesses econômicos e, só durante o mês de setembro deste ano, registramos o assassinato de ao menos 17 lideranças indígenas. Sem contar os estupros de meninas. O Censo de 2022, que está a campo agora, deve permitir que tenhamos uma ideia de quantas pessoas foram executadas pela atuação do garimpo. As mortes do indigenista Bruno Araújo Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips no vale do Javari, em junho deste ano, aconteceram nesse contexto de recrudescimento da violência.

Você usou índio e indígena para falar do panorama atual dessas populações. Qual a nomenclatura correta?

Por que índio? Porque Cabral chegou aqui em 1500 e achou que tinha chegado à Índia. Depois, o termo índio deixou de ser politicamente correto e ficou estabelecido que era melhor usar indígena. A palavra indígena quer dizer que você é originário desse lugar. Usar a palavra “índio”, hoje, é uma gafe, mas ela não tem uma carga de preconceito, apesar da origem colonial. Hoje em dia o termo considerado mais correto é “povos originários”, mas não costumo usar.

Vamos recuar no tempo e falar sobre sua infância?

Morávamos no interior paulista, em São Carlos. Depois, viemos para a capital. Meu pai era promotor público e minha mãe formada em letras. Ela sabia várias línguas, mas era dona de casa. Uma influência muito importante foi meu avô materno, Afrânio Amaral, uma pessoa fora da curva. Ele foi médico, depois diretor do Instituto Butantan. Me ensinava grego e latim quando eu passava períodos em sua casa. Em uma dessas viagens encontrei uma espécie de revista, que tenho até hoje, com desenhos de índios norte-americanos. Eu já tinha uns 14 anos e fiquei interessada pelo assunto. Anos mais tarde, quando fui morar com os Guarani, em um ano meu avô aprendeu a falar a língua para falar comigo. Eu também estudava na Escola Livre Superior de Música, em Higienópolis: tocava flauta doce, clarinete e cantava. Meu pai não queria, então comecei a trabalhar aos 15 anos e meu avô pagava as mensalidades. Recentemente, voltei a tocar e a cantar.

Como foi sua entrada na universidade?

Fiz Ciências Sociais na Universidade de São Paulo [USP], de 1974 a 1978. Na aula inaugural, lembro que um dos professores, hoje famoso, disse: “Quem veio para o curso para trabalhar com antropologia, pode esquecer, pois os índios estão acabando”.

Isso te desestimulou?

Não, não é fácil me desestimular.

E o que aconteceu?

Na graduação, eu sempre dizia que queria trabalhar com índio, mas havia um divórcio muito grande entre a academia e os indigenistas. A frase “trabalhar com índio” não fazia sentido. O que era aceito era estudar os índios. Em 1976, eu assisti a um documentário sobre os Guarani de Mato Grosso do Sul, na faculdade. O filme tinha sido feito pelo antropólogo Rubem Ferreira Thomaz de Almeida [1950-2018]. No final da projeção, ele convidou alunos interessados a conhecer melhor uma iniciativa em curso com os Guarani. Era um projeto ligado a antropólogos do Paraguai e financiado pela instituição alemã Brot für die Welt [Pão para o Mundo], que apoia atividades com povos indígenas até hoje, no mundo todo. Eu estava terminando o terceiro ano da faculdade e me juntei ao projeto, fui para a aldeia em janeiro das férias seguintes. Cursei o último ano da graduação indo e vindo entre Mato Grosso do Sul e São Paulo. Como parte dessa iniciativa, Almeida e um colega meu de faculdade, Celso Aoki, estavam elaborando um projeto de roças comunitárias e viajavam de aldeia em aldeia. Mas eu queria ficar em um lugar só, aprender a língua e trabalhar com as mulheres. Quando cheguei à aldeia, houve um dia inteiro de reunião, que é como os Guarani resolvem as coisas. Eles falavam só em guarani, apontavam para mim e riam. Só mais tarde entendi que estavam discutindo quem adotaria a branca. A família que me adotasse teria de me dar comida, me alojar e educar. Eu era uma ignorante total, não falava a língua deles. Um casal me aceitou e, naquela noite, já dormi na casa deles. Comecei a perceber nossa imensa ignorância. O único livro que existia sobre eles no Brasil, na antropologia, era Aspectos fundamentais da cultura guarani, escrito por Egon Schaden [1913-1991].

Você cometeu muitas gafes?

Era gafe atrás de gafe. Tinha uma senhora, que era a minha avó, vamos dizer assim, que evitava se encontrar comigo quando eu ia até a roça ou até o riozinho tomar banho. Dizia que eu tinha o olhar cheio de fogo e queimava muito. Durante um ano inteirinho ela se escondia no mato quando me via nas trilhas, para não cruzarmos os olhares. Aos poucos, os Guarani foram me educando. Puseram uma criança, na época com 7 anos, que hoje em dia já é avó, para me ensinar o básico de comportamento. Com o passar dos meses aprendi a língua e li todo o material etnológico existente no Paraguai sobre eles.

Você se casou, teve filhos?

Em 1978 me casei, tive a Laura e o Francisco. Eu já morava com os Guarani e os levava, bebês e depois crianças, comigo para a aldeia. O pai deles achava um absurdo, pensava que, depois de me tornar mãe, eu deixaria o trabalho. Meu segundo casamento foi com uma pessoa que conheci em um curso que eu dava no Conselho Indigenista Missionário [Cimi]. Tive meu terceiro filho, João Pedro, que não chegou a ir comigo para a terra dos Guarani, mas foi muito para o Amazonas. Minha única neta, Luzia, é filha de Francisco.

Quando você passou a levar seus filhos para a aldeia guarani, mudou sua aceitação na comunidade

Mudou. Quando levei a Laura, pequenininha, a Antonina, que era minha mãe-irmã indígena, disse: “Deixa ela aqui que vou educá-la bem melhor do que você”. A Laura engatinhava quando foi pela segunda vez para a aldeia, e ia para lugares que não podia. Em direção ao fogo, por exemplo. Então, eles fizeram um buraco no pátio, para ela ficar lá dentro e aprender a sair e a andar. Nesse contexto de criança, acabou se abrindo um universo de conversa ao qual eu não teria acesso de outra maneira. Levando meus filhos, aprendi muito sobre como eles educam.

Garimpeiros entraram com balsas de mineração do tamanho de estádios de futebol em terras munduruku

Com os Guarani, você fez um trabalho pioneiro na educação escolar.

Depois de seis meses na aldeia, eu já falava um pouco de guarani. Um dia, me reuni com mulheres que me mostraram um caderno, daqueles que a criança preenche para alfabetizar, que era usado na escola existente no posto da Funai. Só que elas me mostraram o caderno de ponta-cabeça! Tinha figuras de uva, avião. As mulheres disseram: “Nossos filhos estão aprendendo isso, mas não sabemos o que quer dizer em guarani”. Percebi que nem os desenhos tinham significado. Mães e crianças não entendiam o conteúdo. Elas me pediram para ensiná-las a ler e a escrever, assim como as crianças. Primeiro em guarani, depois em português.

Então foi por demanda delas que a educação se tornou um tema de trabalho seu?

Sim. Trabalhei com educação escolar o resto de minha carreira. Esse posto da Funai tinha uma casinha de madeira com chão de cimento batido, uma janelinha, uma lousa, e um monte de carteiras meio quebradas e comidas por baratas. Essa era a escola, que não fazia o menor sentido para eles. Tirei tudo, abri as janelas e sentamos no chão. Mas o chão era gelado. Começamos a quebrar o cimento para fazer um chão de terra e poder acender fogueiras, porque fazia muito frio. No entanto, percebi que era muito ignorante para ensinar as crianças. Elas me perguntavam coisas que eu não sabia responder. Os Guarani-Kaiowá têm uma familiaridade com seres invisíveis, por exemplo, e eu não sabia lidar com isso.

O guarani é uma língua oral?

Eles usavam simbologia gráfica. Por exemplo, quando desenhavam uma espécie de estrela, significava que ali tinha lenha para fogueira. Eles contavam com símbolos para árvores e seres. Do lado do Paraguai, linguistas já tinham feito a transcrição da língua guarani para o alfabeto ocidental. Passei um mês e meio lá para aprender a língua escrita e percebi que tínhamos de formar professores Guarani-Kaiowá no Brasil, que dariam aulas para as crianças. Em 1979, fizemos o primeiro encontro nacional de educação escolar indígena em São Paulo, financiado pela Fundação Ford, com a participação da Comissão Pró-índio, do Departamento de Ciências Sociais da USP, entre outras instituições como o Cimi e a Funai.

Até quando você ficou na aldeia?

Até 1991. Eu ficava seis meses, voltava a São Paulo por alguns meses, e assim foi durante esses anos. Nessa época, em Mato Grosso do Sul, estava acontecendo o desmatamento e a abertura das fazendas. Abrir fazenda significa usar dois tratores imensos com um correntão que passa derrubando tudo. Quando os fazendeiros encontravam comunidades indígenas, chamavam a Funai para expulsá-los das terras. Sua missão era retirar os povos e colocá-los em reservas que o marechal Rondon [1865-1958] tinha demarcado, no começo do século XX. Uma delas era em Taquaperi, onde eu morava. Chegavam famílias inteiras vindas de outros lugares. Isso começou a gerar muito conflito na área e muitas dessas famílias fugiam. Como eu falava Guarani, a Funai me pedia para encontrar os despejados. Eles eram expulsos, ficavam em acampamentos de beira de estrada ou em reservas superpovoadas. O jeito de ser guarani envolve uma etiqueta. Nunca se fala bravo com ninguém, nunca se grita. Por causa dessa etiqueta, eles não reagiam com violência às expulsões, mesmo porque lhes era dito que poderiam voltar depois. Suas casas eram queimadas e eles eram postos em caminhões. Muitos suicídios aconteceram nessa época, inclusive de jovens.

No jeito de ser guarani nunca se grita com ninguém. Por causa disso, eles não reagem com violência às expulsões

E como sua vida acadêmica prosseguiu depois dessa experiência?

Entrei no mestrado na USP em 1982, quando ainda morava com os Guarani. Eu queria estudar aquilo que estava vivendo e as antropólogas da pós-graduação queriam que eu fizesse uma dissertação teórica, algo que não me interessava. Então, voltei à aldeia e, quando vim de novo a São Paulo, soube que minha orientadora tinha me desligado do programa. Não liguei muito, pois não achava que a vida acadêmica era para mim.

Quando a visão da academia sobre os povos originários começou a mudar?

Em 1988, com a Constituinte, uma nova linha teórica passou a se desenvolver na antropologia. Segundo essa corrente, os índios não iam desaparecer, conforme intelectuais anteriores tinham previsto. Antropólogos como Manuela Carneiro da Cunha e Eduardo Viveiros de Castro tiveram papel preponderante nesse processo. Eles começaram a sustentar a ideia de que a cultura envolve os mecanismos através dos quais um povo entra em contato com outro e se modifica. No entanto, mesmo com esse contato, eles não deixam de ser aquele povo.

Como você se aproximou da Unicamp?

Em 1990, participei de um encontro de professores indígenas em Manaus e eles me convidaram para ir para o alto rio Negro. Eles já sabiam ler e escrever e queriam aprender a desenvolver projetos para obter financiamento e realizar um censo demográfico. Estavam em processo de demarcação de terras e o governador do Amazonas na época dizia que eram somente 3 mil índios na região. Já o Cimi falava em 30 mil. Os antropólogos que trabalhavam na região afirmavam que não era possível fazer o censo, mas eu achava perfeitamente factível. Eu não sabia nada de demografia, mas fui à Unicamp e conversei com Maria Coleta de Oliveira, que depois foi minha orientadora de doutorado. Ela é antropóloga demógrafa, nunca tinha trabalhado com índio, mas foi visionária e concordou que era possível fazer o censo. Em 1992, montamos um questionário simples, mimeografamos e fizemos o censo em parceria com os professores indígenas dessa região. Visitamos 300 aldeias e contabilizamos mais de 20 mil pessoas morando no alto rio Negro.

Foi assim que você se tornou demógrafa?

Sim. Quando terminamos o censo, montamos um banco de dados já digitalizado. Levamos o primeiro computador para o rio Negro. Lá é uma área de fronteira. Quando chegamos, apareceram várias instituições, como organizações não governamentais e militares, pedindo acesso ao nosso banco de dados. O Exército queria saber toda a localização das aldeias na região. Eu disse: “O banco de dados é da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro”. Depois disso, entrei no doutorado em demografia na Unicamp. Para fazer a tese, comecei a viajar pelas comunidades do rio Negro.

Foi quando você descobriu o crescimento populacional indígena?

Minha defesa de doutorado foi difícil. Eu tinha identificado que o número médio de filhos por mulher, no rio Negro, era de sete. Naquela época, o número médio de filhos por mulher, no Brasil, era de dois. Agora é de 1,1. Ou seja, eu estava afirmando que o número médio de filhos por mulher entre os povos indígenas era muito mais alto do que a média do país e, por isso, eles estavam em recuperação populacional. Fui a primeira a afirmar isso. Os demógrafos não acreditavam e me criticaram muito. Por sorte, estavam presentes na banca duas antropólogas que estavam observando o mesmo fenômeno no rio Negro e no Xingu e me apoiaram. Até então, a visão que prevalecia era de que eles iam diminuir numericamente até serem extintos.

Como seus achados incidiram na formulação de políticas públicas?

Depois que mostrei que os povos indígenas estavam em recuperação populacional, outros pesquisadores começaram a identificar o mesmo fenômeno em regiões como o Xingu, por exemplo. A Comissão Econômica para América Latina e Caribe, Cepal, me convidou para vários encontros e seminários, onde analisamos os dados e discutimos os perfis e dinâmicas demográficas dos povos indígenas da América Latina e Caribe. Concluímos que o fenômeno da recuperação populacional acontecia em toda a região. A partir desses achados, em 2001 criamos com a Associação Brasileira de Estudos Populacionais [Abep] um comitê de demografia indígena. A dinâmica demográfica dos povos indígenas, no Brasil, era completamente inversa ao resto da população. Enquanto a fecundidade brasileira caía, a fecundidade indígena subia. Começamos a dar mais visibilidade para isso, pensando em políticas públicas. É preciso ter esse dado em conta para calcular a necessidade de remédios, enfermeiros, postos de saúde e escolas.

Nunca vou me esquecer da marca do machete em meu pescoço. Todo indigenista no Brasil sofre esse tipo de violência

Você foi, em 2012, a primeira presidente da Funai.

Desde o início dos anos 1990, eu atuava como consultora dos ministérios da Educação e da Saúde em temas envolvendo educação e saúde indígenas. Em 2012, fui convidada para assumir a presidência da Funai. Quando me ligaram, perguntei: “Mas quantas pessoas vocês já convidaram?”. Descobri que eu era a sétima. Ninguém queria ser presidente da Funai, porque ninguém sabia o que fazer com os índios. Topei, porque sou indigenista, me sentiria em casa. Quando assumi, conversei com todos os funcionários. Aquele foi o primeiro ano em que a Funai executou todo o seu orçamento, foi um trabalho duro. Não é porque a pessoa é antropóloga ou indigenista que vai ser boa na execução de políticas públicas. São qualidades diferentes. É preciso realizar um trabalho para engajar os servidores em projetos. Por exemplo, escolas indígenas não podem ser feitas de cimento. É ilógico levar cimento por 500 quilômetros acima da cidade de São Gabriel da Cachoeira, pelo rio Negro, aumenta demais o preço. Então, é melhor construir escolas de madeira com boa durabilidade e telha ecológica ou palha, materiais que encontramos nas comunidades ou não muito longe delas. Ou seja, se a pessoa não conhece o Brasil e a administração pública, mesmo sendo um bom antropólogo ou indigenista, não tem como ser bom presidente da Funai. Fiquei pouco mais de um ano na presidência. Tive muitas dificuldades com os antropólogos e também com o governo, que não autorizava o que eu achava necessário fazer. Minha saúde também foi afetada.

Você pensa que a presença indígena na direção da Funai seria uma forma de garantir uma boa gestão?

Assim como ser mulher não garante que a pessoa seja feminista, ser indígena não assegura que ela seja um bom indigenista. Não acho uma boa ideia definir que só eles podem ser funcionários da Funai. Essa é a primeira lição: não adianta você saber antropologia, etnologia, se você não sabe o que está acontecendo na realidade nem quem está fazendo o quê. Acho legal que os índios queiram assumir a Funai, mas é preciso saber que vai dar trabalho e eles terão de contar muito com os indigenistas.

Como está a Funai hoje?

A fundação foi militarizada e também entregue a missionários fundamentalistas evangélicos que querem civilizar os índios e “tirar o diabo do corpo” das culturas indígenas. Está executando muito pouco do seu orçamento. Apesar disso, tem um quadro de indigenistas técnicos muito bons, que são os concursados recentes, como era o caso do Bruno, que foi assassinado. Antes, eram 800 funcionários, mas muitos foram aposentados. Então, é preciso abrir mais concursos e capacitar o pessoal, principalmente na área de gestão ambiental e territorial, além de criar projetos de economia circular. Uma tarefa muito pouco executada pela fundação também é fomentar a disseminação da cultura indígena entre escolas de não indígenas.

O que esperar do próximo Censo?

O Censo de 1991 não passou por comunidades afastadas no rio Negro, somente por cidades. Eu era da Comissão da Sociedade Civil do Censo quando comecei a batalhar pela entrada do quesito indígena nos setores censitários que coincidiam com as terras indígenas. Pela localização, em 2010, o agente censitário passou a ter acesso a perguntas sobre língua e etnia. No Censo que está em curso agora, há um questionário por comunidade indígena. No Censo de 1991, foram identificados 180 povos. Depois, mapeamos 305. Penso que no atual chegaremos a 400.

Qual a sua atividade principal agora?

Sou pesquisadora do Nepo desde 2005. Passei no concurso depois que terminei o doutorado, em 2003. Trabalho com pesquisa-ação: pesquisa e intervenção social. Nos últimos anos, participei da comissão técnica do IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística] do Censo como responsável pelos quilombolas, que precisei começar a estudar. Organizei minhas gravações de cantos, revisitei fotos e vou devolver a eles, por meio da organização de exposições e outras atividades. Também atuo como membro do Conselho Consultivo do Fundo de População da ONU no Brasil, do Conselho Diretor do Instituto Socioambiental e sou coordenadora do grupo de trabalho Demografia dos Povos Indígenas da Abep.

Como você viveu a pandemia?

Eu tenho uma imunodeficiência. O médico não sabe se foi consequência de muita malária ou se tem fundo genético. Então, a pandemia afetou minha vida social, porque ainda não posso ir a lugares com muita gente. Não posso correr riscos, não adianta eu me vacinar porque o sistema imunológico não consegue construir as defesas. Só vejo meus filhos e abraço minha neta de máscara. Ela vai fazer 6 anos. No primeiro ano da pandemia, sem vacina, perdi muitos amigos indígenas, idosos. Hoje, faço muita coisa por WhatsApp. Formamos uma organização chamada União Amazônia Viva, por iniciativa do fotógrafo Sebastião Salgado. Sou amiga dos Expedicionários da Saúde, uma organização não governamental de médicos de Campinas que trabalha atendendo emergências e se organizou para atuar com saúde indígena. Em parceria com médicos que trabalhavam em terras indígenas, como o Programa Xingu da Unifesp [Universidade Federal de São Paulo] e da Secretaria Especial de Saúde Indígena do Ministério da Saúde, eles instalaram conjuntos de redes com oxigênio. Passei o ano de 2020 envolvida nesse projeto. Era preciso fazer lockdown nas aldeias e não tinha comida, então também ajudei a organizar a doação de cestas básicas.

Nessa trajetória tão multifacetada, você sentiu medo em alguma situação?

Muitas vezes. Quando morava na aldeia de Taquaperi, nos anos 1980, o projeto no qual eu trabalhava tinha uma casa na cidade de Amambai, a 30 km. Uma vez a cada três meses, mais ou menos, eu ia para a cidade. Um dia, de manhã bem cedo, acordei e acendi o fogão a lenha para fazer meu mate. Escutei um barulho na porta da frente, que estava destrancada, e um fazendeiro abriu a porta da entrada da casa de repente, com um machete na mão. Ele colocou o facão no meu pescoço e disse: “Vocês, antropólogos, não têm ideia de onde estão se metendo”. Nunca vou me esquecer da marca do machete no meu pescoço. Ele tirou a arma sem me machucar, mas fiquei apavorada. Antes, eu já tinha sofrido ameaça de estupro por caminhoneiros, quando esperava o ônibus na beira da estrada. Mas eu andava com spray de pimenta, usei contra eles e consegui fugir. Quando era presidente da Funai, também recebia muita ameaça pelo telefone e era intimidada por visitantes inesperados que apareciam em meu gabinete. Todo mundo que é indigenista no Brasil, em algum momento, sofre esse tipo de violência.

Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa Fapesp de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.


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