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Hipótese atribui à ação de bactérias a conservação de vestígios de plantas e de animais na bacia do Araripe

Por Rafael Garcia, da Pesquisa Fapesp | No início de julho, um grupo de paleobotânicos anunciou a descoberta de um fóssil de uma nova espécie de lírio,  Cratolirion bognerianum, que viveu há 115 milhões de anos. A delicadeza da peça, com  raízes, pétalas e células individuais preservadas, impressionou os pesquisadores. O local onde a flor foi encontrada, porém, não causou surpresa: a formação Crato, na bacia do Araripe, no Ceará, unidade geológica que tem revelado dezenas de fósseis com tecidos moles muito bem preservados. “A maneira com que o lírio foi depositado, em um antigo lago, é bastante incomum para uma planta herbácea”, diz o francês Clemént Coiffard, do Museu de História Natural de Berlim, um dos autores do artigo com a descrição da flor, publicado na Nature Plants, ao lado de Mary Elizabeth Cerruti Bernardes-de-Oliveira, da Universidade de São Paulo (USP). “Além da deposição ‘clássica’ com ramos, folhas de árvores e arbustos, muitas plantas ali são preservadas ainda com suas raízes presas, contendo argila.”

Não se sabe por que a formação Crato conserva  tanta riqueza paleontológica, mas pesquisadores brasileiros levantaram uma hipótese para explicar o fenômeno. Segundo um estudo publicado em julho na revista científica Palaios, esteiras de micróbios teriam contribuído para fossilizar uma vasta gama de organismos. A ação dos microrganismos teria sido fundamental para fixar e proteger a integridade de resquícios de plantas e de animais no fundo desse paleolago.

Entre as criaturas que já emergiram do Crato estão uma serpente com vestígios de patas, pterossauros com cristas preservadas e aves com penas aparentes, além de insetos, crustáceos, peixes e plantas. O local é uma das poucas janelas do planeta para os paleontólogos estudarem a biodiversidade tropical do período Cretáceo Inferior, entre 146 milhões e 100 milhões de anos atrás.

“Vários eventos precisam ocorrer para que um organismo seja preservado”, afirma o geólogo Lucas Warren, do Instituto de Geociências e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista (IGCE-Unesp) e coautor do estudo. “É um processo complexo, para o qual formulamos uma hipótese mais simples e parcimoniosa.” Em busca de pistas sobre esse processo, quatro anos atrás Warren e o aluno de doutorado Filipe Varejão começaram a estudar coleções de fósseis e amostras geológicas da região, e em viagens investigaram diversos pontos do chamado lagerstätte, a formação calcária de onde a maioria dos fósseis da região emerge.

No período em que os sedimentos estavam formando esse tipo de rocha, o Brasil ainda não tinha se separado completamente da África. A atual região do Atlântico Sul estava começando a ser inundada, e o lagerstätte do Crato estava, portanto, conectado à região marinha na qual estavam se formando os depósitos do pré-sal, a formação geológica submersa onde o Brasil passou recentemente a explorar reservas de petróleo.

Segundo a hipótese mais genérica para a formação desses sedimentos, sua origem teria se dado exclusivamente por processos químicos, na interação das rochas com a água e a atmosfera. Uma limitação dessa ideia é que outros estratos geológicos similares não apresentam o mesmo grau de riqueza paleontológica. Em 2016, Warren e Varejão fizeram uma descoberta interessante no local que adicionou um novo elemento ao cenário: antigas estruturas formadas por colônias de cianobactérias, microrganismos que fazem fotossíntese.

Preservadas em estruturas macroscópicas chamadas estromatólitos, essas colônias são capazes de alterar significativamente o ambiente em que vivem. “Chegamos à conclusão de que a região do Crato era, de fato, um ambiente lacustre: um lago na beira do mar, mais ou menos parecido com o que tem hoje em Shark Bay, no sul da Austrália, onde é possível ver estromatólitos expostos”, explica Warren. Além dos remanescentes de estromatólitos, os cientistas encontraram na região fósseis de crustáceos com vestígios de EPS (substância polimérica extracelular). “Esse composto é um polímero natural gosmento secretado pelos microrganismos e que pode se preservar e fossilizar”, diz o pesquisador.

A presença das cianobactérias era indicativa de dois fatores importantes para a preservação de fósseis, de acordo com o estudo. Primeiramente, um meio com esses microrganismos representa um ambiente estéril para outras formas de vida, como animais, que poderiam consumir esses microrganismos se alimentando do EPS. Em segundo lugar, a esteira de cianobactérias e de outros micróbios que se acumula no fundo de um lago funciona como uma âncora dos vestígios de plantas e animais, impedindo-os de serem desmembrados pela correnteza. Em poucas semanas, o tapete de bactérias recobre os restos dos seres vivos. “Os vestígios ficam encapsulados, mais ou menos como num sarcófago”, diz Warren.

Cratolirion bognerianum, um lírio fossilizado de 115 milhões de anos. Imagem de Museu de História Natural de Berlim

A estabilidade mecânica proporcionada pela esteira microbiana permite que ocorram os processos de mineralização que solidificam o fóssil. No caso do Crato, existem três processos distintos: a piritização, substituição dos tecidos por sulfeto de ferro; a querogenização, em que a matéria orgânica se transforma em matéria inorgânica e insolúvel; e a fosfatização, na qual os fosfatos tomam o lugar das fibras de seres mortos. A esteira microbiana se divide em camadas. As cianobactérias ocupam o estrato mais acima. Nas camadas inferiores, estão presentes bactérias quimioautotróficas, que produzem energia a partir de compostos inorgânicos sem a necessidade de haver luz. Dependendo do nível em que um organismo morreu e se ancorou, ocorre um processo final de fossilização diferente.

Como a formação Crato exibe fósseis excepcionalmente preservados formados pelos três processos, era difícil construir uma explicação única que agrupasse todos eles. O modelo da esteira microbiana proposto por Varejão, Warren e demais coautores, incluindo Mario Assine, líder do grupo na Unesp, tenta resolver essa equação sem a necessidade de postular processos químicos e geológicos mais tortuosos.

A fixação mecânica gerada pelo tapete de microrganismos ajudaria a explicar a ocorrência de exemplares de fósseis bem preservados na formação Crato, como o lírio de 115 milhões de anos. Essa espécie, aliás, cobre uma lacuna importante da história evolutiva das plantas monocotiledôneas, cujas sementes têm um reservatório de energia (cotilédone), e mostra que elas provavelmente se espalharam para o planeta a partir de regiões tropicais.

Entender a origem da formação Crato também auxilia os geólogos a buscar outros sítios que tenham rochas semelhantes e possam igualmente abrigar fósseis bem conservados. Esse tipo de trabalho não deve ser postergado. Áreas ricas em fósseis quase sempre estão sujeitas a pressões externas. No Crato, por exemplo, os pesquisadores dizem que a região já dá sinais de esgotamento. “Os mineradores comentam que agora encontram menos fósseis do que no passado”, conta Varejão. “Eles dizem que guardam as peças mais bonitas, mas muitas são jogadas fora. Nem sempre o fóssil mais bonito é o de maior valor científico.”


Este texto foi originalmente publicado pela Pesquisa Fapesp de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.


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