O paradoxo da democracia pede corpo

Lidar com uma democracia em crise no mundo digitalizado é uma ação que pede corpo integrado. Quanto mais este for apático e reduzido em sua potência sensorial e perceptiva, menos apto estará para lidar com as barreiras que emergem das polarizações e demais mazelas do chamado paradoxo democrático

Por Ricardo Barretto, para a Página 22 | Pensar o futuro do mundo significa hoje integrar perspectivas de desenvolvimento aos fluxos e ciclos da natureza. Essa noção de um olhar ecológico para fenômenos sociais é um sinal dos nossos tempos e aparece em diferentes áreas de conhecimento. Na política, uma abordagem que vem ganhando espaço é do entendimento da democracia não como um regime, mas como um ecossistema, uma cultura de comunicação. Em outras palavras, mídias e modos da informação circular, das pessoas dialogarem, de construção e difusão de conhecimento, de espaços e lugares de fala.

É nesse ambiente onde surge aquilo que o jornalista Zac Gershberg e o escritor Sean Illing chamam de “Paradoxo da Democracia”, em livro homônimo: se de um lado a democracia deve permitir um fluxo livre de comunicação e expressão, por outro essa característica submete as democracias a disrupturas, fragmentações e demagogias que ameaçam sua sustentação.

Segundo os autores, esse fenômeno fez parte de diferentes sociedades, da Grécia antiga à América contemporânea, e revelou-se especialmente desafiador em períodos de transição entre tecnologias da comunicação. Isso porque as mídias costumam evoluir mais rapidamente que a política, levando a movimentos de instabilidade democrática.

É uma referência ao conceito de que “o meio é a mensagem”, proposto pelo teórico da comunicação Marshall McLuhan, segundo o qual a introdução de novas mídias acelera mudanças de pensamento, comportamento e arranjos sociais.

Aqui entra o corpo… A questão é que qualquer tipo de fluxo atravessando os diferentes elementos da vida representa em si comunicação, conforme argumenta o jornalista e sociólogo Muniz Sodré. Democracia, tecnologias da informação, ecossistemas e o corpo humano são dimensões em que a comunicação acontece. Movimento de dados digitais, dinâmicas de criação e decomposição na natureza, funções bioquímicas e cognitivas do corpo, debates políticos na sociedade – tudo é comunicação.

Compreender essa dinâmica ajuda a perceber que momentos de crise fazem parte de sistemas complexos e seus fluxos comunicativos. E o corpo é a dimensão mais íntima, experiencial e viva que temos desses fenômenos. Observá-lo significa nutrir a percepção para reconhecer fenômenos semelhantes à sua volta.

Além de abrir espaço para um outro olhar sobre como lidar com os desafios do mundo, convocar o corpo para entender a realidade também significa encontrar suporte para não entrarmos em desespero e conseguirmos agir frente aos desafios contemporâneos – entre eles o da democracia. A seguir, três modos pelos quais o corpo dá apoio a nosso convívio com o paradoxo democrático.

Inspiração 

Assim como o corpo dá sinais de desregulação e adoecimento que podem ser assimilados para levar a uma reorganização de hábitos, o mesmo pode acontecer na relação com a política. Que estímulos podem propiciar alterações no fluxo comunicativo de sistema democrático? É claro que em macrodimensões como a política e a economia, estamos falando em uma reorganização do fluxo comunicativo que não é nada trivial e nem pressupõe transformação imediata – caso das polarizações ou da associação entre política, desenvolvimento e degradação ambiental.

Mas reconhecer como o corpo é capaz de modificar fluxos que atravessam bilhões de células, diversos tecidos e órgãos, influenciando também nossa subjetividade e nossos modos de sentir e dialogar, pode ser uma inspiração para vislumbrar mudanças possíveis em outros sistemas complexos.

Estado de presença 

Práticas de percepção e ativação das potências sensoriais do corpo e da sua capacidade de produzir cuidado de si e cuidado mútuo – físico e psíquico –ajudam a criar estados de presença aptos a lidar com as perturbações nos momentos de crise. Um corpo capaz de lidar com abalos emocionais e de sustentar atividade cognitiva para questionamentos e reflexões pode não ser a solução dos problemas da sociedade, mas torna os sujeitos mais disponíveis para dialogar, compreender e influenciar o mundo que habitam e constroem.

Qualidade para o diálogo 

O corpo é um elemento fundamental na composição dos ecossistemas comunicativos antropogênicos – basicamente formados por pessoas, mídias e modos de comunicar. Cada corpo na relação com seu entorno e com o que lhe atravessa influenciará a configuração dos ecossistemas comunicativos que habita e influencia. Se estiver mais sensível, atento, criativo e adaptável às diferentes formas de diálogo, poderá lidar de forma melhor com as barreiras que emergem das polarizações e demais mazelas do paradoxo democrático, que se manifestam em diferentes instâncias e situações sociais.

Portanto, lidar com uma democracia em crise no mundo digitalizado é uma ação que pede corpo integrado. Quanto mais o corpo for apático e reduzido em sua potência sensorial e perceptiva, menos apto estará a compreender e agir pela democracia. Mas se uma educação transformadora e oportunidades de convívio social para além das telas 2D passam a estimular as potências do corpo integrado, é maior a chance de emergir uma participação democrática permeada por atributos humanos mais elevados. Políticas públicas e organizações de fato interessadas no fortalecimento da democracia precisam dar mais atenção ao corpo.

*Ricardo Barretto é comunicólogo e educador somático. Pesquisa relações entre o corpo vivo, fluxos comunicativos e o ambiente. Diretor do ConeCsoma (www.conecsoma.com.br)

Este texto foi originalmente publicado pela Página 22 de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.