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O projeto Internet dos Povos da Amazônia pretende levar, em poucos anos, internet rápida a quem ainda vive sob um apagão digital. Representantes indígenas, quilombolas e extrativistas veem enormes benefícios em termos de cidadania, acesso a serviços essenciais, vigilância da floresta e gestão do território

Por Amália Safatle, da Página 22 | Quando a pianista Carla Ruaro e sua equipe içaram um piano em um barco e atravessaram a imensidão amazônica, puderam ver o maravilhamento nos olhos das pessoas. Especialmente das crianças, que nunca tinham visto ao vivo este que é o maior dos instrumentos musicais. A expedição, documentada no premiado filme Raízes – Um piano na Amazônia, conectou as mais distantes comunidades por meio da música, esta língua universal.

Há mais uma linguagem universal capaz de conectar e gerar transformações em corações e mentes dos povos amazônicos: a digital. A internet não chega a ser tão rara como um piano em aldeias indígenas, comunidades quilombolas e reservas extrativistas. Mas essa é uma porção do Brasil que em pleno século XXI ainda vive à margem da era digital. Quando há sinal de internet, é lento, caro e intermitente.

A precariedade do sinal, que impede o acesso das pessoas aos serviços mais básicos, pode parecer exótica aos brasileiros que vivem no restante do País, especialmente nos centros mais urbanizados. Mas a dificuldade na infraestrutura é sentida na pele de quem se esforça para tornar realidade o que de longe parece improvável: desde um piano singrando o rio, emitindo sons e músicas de matiz clássica, até o desejo de se implantar internet de alta velocidade em todas as escolas.

Foi em meio a esses elementos que a iniciativa Uma Concertação pela Amazônia propôs um debate sobre como proporcionar a conectividade para os povos da Amazônia. Realizado em 6 de julho em formato híbrido, o evento reuniu lideranças amazônicas, que vivenciam a realidade local, e representantes de organizações do Sudeste. Todos esses encontros improváveis claramente demandam esforços nada triviais de adaptação cultural, de agendas e de logística – a contrapartida é que são enriquecedores, pois lidam com as diferenças e se propõem a respeitá-las.

No coração da Amazônia, o ápice da velocidade não passa os 10 megabytes. Um mapeamento feito pelo MapBiomas em 4.547 localidades no interior da Amazônia identificou apenas uma com internet rápida: trata-se de uma comunidade quilombola próxima a Belém que conseguiu cabear a fibra ótica da capital.

O último leilão da tecnologia 5G estabeleceu para as empresas obrigações de alcance do sinal (5G ou 4G) até 2028. Mas, quando se cruza esse mapa de obrigações com o das 4.547 localidades, apenas 1% (ou 50 delas) é contemplado. Ou seja, mesmo o promissor leilão da mais avançada tecnologia não garantirá a expansão da internet rápida a quem vive sob um verdadeiro apagão digital.

Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) consolidados na plataforma Amazônia Legal em Dados mostram a discrepância entre a cobertura digital na região amazônica versus a média brasileira. Enquanto o percentual de domicílios com internet banda larga é de 58,5% na Amazônia, no Brasil como um todo é de 77,9%. O acesso a internet 3G e 4G em áreas urbanas é 68,7% (contra 70,7% no País) e, nas áreas rurais, a diferença se aprofunda: 25,1% versus 35,5%.

Tal cenário motivou a criação de um projeto para acelerar a inclusão digital da região, denominado “Internet dos Povos da Amazônia”, idealizado por Tasso Azevedo, coordenador do MapBiomas, e apresentado durante o vigésimo encontro da Concertação. A reunião ocorreu em Alter do Chão (PA) durante o Fórum Amazônia Sustentável, com apresentações de organizações quilombolas, indígenas e extrativistas. Além de receber o público do próprio Fórum, contou com cerca de 90 participantes no ambiente virtual.

Entre eles, a pianista Carla Ruaro que, de Londres, onde está radicada, executou ao piano músicas amazônicas, como o segundo movimento da suíte Waldemar Valsa e Primavera, composta por Luiz Pereira de Moraes Filho, conhecido como Luiz Pardal, músico multi-instrumentista e professor da Universidade Federal do Pará (UFPA). “Esse projeto da Carla pode significar uma grande revolução na vida de muitas pessoas, especialmente das crianças. A música educa o talento em todos os sentidos, para se tornar uma pessoa melhor, mais sensível”, afirma Pardal.

Ele mesmo teve sua vida transformada quando era criança em Altamira e ganhou do pai, de presente de Natal, uma gaita de boca. Não havia luz elétrica na cidade e muito menos professor de música. Mas a mãe notou seu talento e o levou para estudar em Belém, onde hoje ocupa uma cadeira na Academia Paraense de Música.

A transformação de trajetórias de vida é o que também se pretende com a conectividade digital na Amazônia. A falta de conexão restringe a comunicação profissional, familiar e pessoal, prejudica a educação, a saúde, a segurança, os serviços financeiros e a disseminação da cultura. Não há como acessar facilidades tão triviais em centros urbanos, como fazer um Pix, consultar-se por telemedicina, ter aulas à distância e fazer pesquisas para a faculdade.

Diante disso, a solução buscada por Tasso Azevedo foi a de construir uma proposta que levasse internet rápida para todos os povos da floresta –  e rapidamente. Rápida porque se prevê que tenha no mínimo 100 MB de velocidade. E rapidamente porque se deseja implementar o projeto (nas comunidades que estiverem interessadas) em um horizonte de dois a três anos, por meio de uma parceria entre povos da floresta, sociedade civil e setor privado.

Para isso, o projeto estabeleceu três grupos-alvo: Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS). Diversas organizações se mostram interessadas em participar do projeto ou já se envolveram, colocando experiência e tempo à disposição.

O projeto, aberto a novas parcerias, organiza-se em cinco frentes: encontrar a melhor solução tecnológica, implantar um projeto-piloto, estabelecer o modelo de governança, montar um modelo de financiamento para o investimento total (estimado em US$ 120 milhões para instalação em 5 mil a 6 mil comunidades) e trabalhar a inclusão digital, considerando que o acesso à internet também traz uma série de riscos associados, como a maior disseminação de fake news.

Esse é um ponto de atenção externado por Luiz Carlos Penha, conhecido por Luiz Tukano, técnico de projetos da Coiab. “Nós, povos da floresta, precisamos nos apoderar da internet com qualidade e com cuidado”.

Tukano cita, por exemplo, disseminação de informações falsas sobre Covid-19, e se preocupa com mensagens sobre religião que não respeitem as crenças e culturas locais, especialmente neste ano de eleição. José Carlos Galiza, coordenador executivo da Conaq, também reforça a necessidade de se fazer o bom uso da internet, tendo cuidado com influências culturais externas para que as características dos povos locais não se percam. Além do acesso ao sinal, ele defende a criação de telecentro e um programa de formação para o melhor uso da internet.

Copa do açaizeiro

Havendo esses cuidados, o amplo acesso à web é visto como extremamente positivo. Galiza, militante do movimento negro quilombola, afirma que o projeto tem trazido muitas esperanças para sua comunidade. Ele conta que quase todo mundo possui um aparelho celular mas, para buscar sinal de internet, ainda é preciso, por exemplo, subir na copa do açaizeiro.

O povo quilombola conseguiu “furar a bolha” e conquistar 2.500 vagas nas universidades federais amazônicas por meio de processo seletivo especial. Mas não tem internet para fazer os trabalhos e pesquisas da faculdade. Oportunidades de participação em editais também são perdidas. Além disso, a dificuldade de conexão impede a denúncia de conflitos ambientais. “Estamos vivendo o ápice do racismo ambiental e com dificuldade de pedir ajuda. Então esse projeto é de suma importância”, afirma Galiza.

Tukano também vê especial relevância da internet para monitoramento, vigilância e gestão territorial da Amazônia. “Além disso, responde ao anseio de conectar nossos parentes e atender nosso projeto de jovens comunicadores”, diz. “A reunião de povos indígenas acontece de forma online. Sabemos o quão importante é esse engajamento dentro do movimento indígena”. O Instagram da Coiab já passou de 2 mil para 35 mil seguidores.

Dione Torquato, secretário-geral do CNS, filho e neto de seringueiros, conta como a Covid expôs ainda mais a forma como os territórios tradicionais são afetados pela ausência de políticas públicas e pelo baixo acesso a energia e internet. A começar pela dificuldade de acesso ao auxílio emergencial. Uma família que mora a 4 ou 5 dias do centro urbano não conseguia nem saber se havia sido ou não incluída no cadastro da Caixa Econômica Federal. As populações extrativistas somam 80 mil famílias que vivem em 25 milhões de hectares em 153 Unidades de Conservação.

“O olhar para a Amazônia deve incluir proteção da biodiversidade, das pessoas que a protegem, visando desenvolvimento sustentável que gere emprego e renda, e com conectividade digital”, sintetiza Torquato. “A conectividade deve ser vista como um direito dos povos tradicionais, mas também como oportunidade de desconstrução de narrativas que tentam invisibilizar os povos, suas culturas e a sua relação com a Amazônia.”

Torquato propõe três olhares para a conectividade na Amazônia. O primeiro é sobre a região: a internet é de enorme valia no monitoramento do desmatamento e das queimadas, da biodiversidade, e dos efeitos da mudança climática. O segundo é o olhar territorial, uma vez que pode contribuir para a organização socioprodutiva, fortalecer a gestão e a governança territorial. E o terceiro é o olhar sobre as políticas públicas, pois aumenta o acesso à saúde (especialmente telemedicina), à educação (inclusive EaD) e à assistência técnica.

A jovem Bruna Lima, que trabalha no Instituto de Estudos Amazônicos (IEA) e faz parte do Comitê Chico Mendes, enfatiza que a internet na mão de um jovem é um mecanismo para exercer cidadania. “Quando se priva o jovem da internet, priva-se a sua cidadania”, diz ela, para quem falta interesse econômico, por parte das empresas, em abrir portas de internet nas reservas extrativistas.

Mas para dar uma ideia da potência da conectividade, Lima cita o exemplo da Floresta do Raimundão, no Acre. Por meio de perfil no Instagram, os jovens divulgam o dia a dia da comunidade, a coleta da castanha e da seringa. Uma rede holandesa o descobriu e concedeu financiamento. O projeto, que trabalha o aspecto educacional, obtém renda ao receber pessoas para experienciar a floresta.

Mesmo com toda a conectividade digital que interliga o mundo, a Amazônia ainda é um lugar para se descobrir e entender. A pianista Carla Ruaro conta que, no estrangeiro, as pessoas ainda têm a imagem da Amazônia como um tapete verde que precisa ser preservado, e ficam surpresas quando descobrem a riqueza sociocultural da região – tal qual as crianças ficam extasiadas ao verem os martelos batendo nas cordas do piano aberto.

Para dar continuidade ao projeto, Ruaro comprou uma casa em Alter do Chão. Vai sair novamente em expedição, durante 30 dias a partir de janeiro, de Belém até Manaus. Com a boa repercussão do filme, o projeto recebeu, em Londres, uma doação de 20 pianos, que serão levados até a Amazônia. Seja pela linguagem da arte, seja pela linguagem digital, um dos caminhos para o desenvolvimento sustentável da grande floresta está em vencer as distâncias e aproximar as pessoas.

Imersão pé no chão

Aproximar o Brasil da sua Amazônia está na agenda da Concertação. “Por meio de um encontro como esse, cumprimos o objetivo de promover a participação dos mais diversos representantes locais, propiciando a interação com o resto do País. Mais do que participação, é uma verdadeira imersão na realidade local, e um exercício de compreensão e valorização das características da Amazônia, com o seu espaço, tempo e ritmo próprios”, afirma Roberto S. Waack, presidente do Conselho do Instituto Arapyaú.

As mensagens transmitidas pelos atores locais são límpidas, sem rodeios. “Essa objetividade é mais do que bem-vinda neste momento em que o Brasil precisa encontrar caminhos diretos para conservar a Amazônia e compreendê-la como um dos eixos fundamentais para o desenvolvimento do País”, diz.

Os recados das lideranças locais vão direto ao ponto: as populações tradicionais e os povos indígenas estão privados dos direitos mais básicos (alimentação, saúde, educação, segurança, conexão etc.), e precisam de apoio. Em primeiro lugar, para que vivam com dignidade e possam exercer sua cidadania, como em qualquer outra região do País. Com isso, espera-se que tenham condições para atuar em seus nobres papéis de guardiões da floresta, onde colocam suas vidas em risco, em meio ao descontrole da ilegalidade e da violência na região.

Um mesmo diapasão une o piano, instrumento do século XVIII criado pelo italiano Bartolomeo Cristofori (1655-1731), e a Amazônia da era digital no século XXI. Pelas mãos dos povos locais, o toque nas cordas é uma chamada direta e contundente pelos direitos civis básicos.

Este texto foi originalmente publicado pela Página 22 de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.


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