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Dez anos após ser reencontrado, sítio arqueológico que é Patrimônio Mundial da Humanidade pela Unesco segue sem cuidados necessários

Por Tassia Menezes em Conexão UFRJ Quem passava pela região da zona portuária do Rio de Janeiro no começo da década de 2010 provavelmente presenciou as diversas obras e escavamentos que ocorriam na área como consequência da operação Porto Maravilha, que tinha como intuito revitalizar e reurbanizar a região. Mais especificamente na Avenida Barão de Tefé, no bairro da Saúde, um escavamento em especial se tornou um marco para a cidade do Rio por trazer à tona um sítio arqueológico que passava por um processo de esquecimento: o Cais do Valongo.

Embora sua existência fosse conhecida por historiadores e pesquisadores e também pela cultura popular − veja o samba-enredo Valongo, composto por Djalma Sabiá e entoado pela escola de samba Acadêmicos do Salgueiro em 1976 −, não havia muitos registros sobre o ancoradouro que recebeu mais de 1 milhão de africanos escravizados nos seus 20 anos de funcionamento. Foram diversas as tentativas de fazer com que o local fosse apagado e, junto com isso, o que ele representava. Os dois aterramentos realizados sobre o sítio ao longo dos anos são alguns exemplos, bem como a falta de registros mais específicos sobre o cais e sua localidade.

Construído no ano de 1811 a fim de esconder a escravidão das vistas da sociedade vigente, o Valongo foi escolhido para ser erguido naquele lugar por ser mais afastado da região central da cidade, onde se buscava apresentar uma imagem europeia e dita “civilizada”. Em 1843, a região foi transformada no Cais da Imperatriz, tendo o porto aterrado e modificado para a chegada da futura esposa do imperador Dom Pedro II, Teresa Cristina. Anos depois, em 1911, a chegada da República e das reformas que tomaram conta da cidade buscou apagar rastros da monarquia, fazendo um novo aterramento e passando a abrigar ali a Praça Jornal do Commercio.

Tentativas de cobrir, esconder e apagar a memória de todas as dores e traumas que passaram por aquele lugar não deixaram, no entanto, o Cais do Valongo soterrado para sempre. Exatos 100 anos depois, em 2011, a equipe responsável pelas buscas arqueológicas na zona portuária encontrou rastros do que teria sido o maior porto receptor de africanos escravizados da América Latina e, talvez, do mundo. A imprecisão se deve à falta de registros.

Coordenada pela professora Tânia Andrade Lima, arqueóloga do Museu Nacional (MN), a busca encontrou, sob cerca de 60 centímetros de terra, aproximadamente 1,2 milhão de artefatos que poderiam ajudar a explicar o contexto social da época, principalmente com foco na população negra e africana. Tânia conta que, entre os materiais encontrados, estavam pertences tanto das classes dominantes quanto da população escravizada. Segundo ela, os poucos bens associados ao segundo grupo normalmente são de materiais orgânicos, como palha e tecido, que desaparecem com facilidade. Entretanto, aquelas escavações forneceram uma gama muito maior de estudo, com objetos tanto de uso pessoal da população negra da época quanto de culto religioso de matriz africana.

Entre os achados, estavam colares de contas, cachimbos, objetos votivos. como imagens de entidades, cruzes, e ainda pedras utilizadas em cerimônias religiosas. “Tudo vai não da peça em si, mas do contexto em que ela é encontrada. Eles reciclavam muitas coisas das sociedades dominantes e as ressignificavam”, explica a professora. A relevância histórica do cais e do material encontrado foi uma das motivações que levou as organizações responsáveis à decisão de propor uma candidatura para que o sítio arqueológico recebesse o título de Patrimônio Mundial pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), fato concretizado em 2017.

Patrimônio Mundial da Humanidade abandonado

Entre 2013 e 2014, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e a Fundação Palmares foram acionados para a realização do dossiê de candidatura do Cais do Valongo a Patrimônio Mundial da Humanidade. Três anos depois de a proposta ser encaminhada para a Unesco, o título foi alcançado, trazendo destaque mundial para o espaço.

Mas esses holofotes não eram necessariamente positivos, já que, por trazer lembranças dolorosas e traumáticas sobre a história da população africana e afro-brasileira, o Cais do Valongo é considerado um sítio arqueológico sensível. Similar a locais como o campo de concentração de Auschwitz, na Polônia; a Ilha de Gorée, antigo entreposto para embarque de africanos escravizados no Senegal; e a Ilha Robben, onde Nelson Mandela ficou preso por 27 anos, na África do Sul, o ancoradouro deve ser mantido como lembrança de acontecimentos que não devem mais se repetir.

Mônica Lima e Souza, professora do Instituto de História (IH) da UFRJ, participou do processo de confecção do documento e conta que, ao receber o título, foram acordados com a Unesco compromissos de preservação e cuidado com o bem cultural a fim de salvaguardar o patrimônio e, ainda, o entorno do qual faz parte. Entre eles, estavam ações de conservação, sinalização e iluminação, bem como a exposição e a manutenção do acervo encontrado, que ficaria aberto ao público em algum memorial próximo ao Valongo. Tais acordos não estão sendo todos cumpridos.

Ao longo desses dez anos desde seu redescobrimento, o cais sofreu com inundações, abandono e falta de manutenção, sendo por muitas vezes local de lixo e sujeira, grama alta e tornando-se, ainda, abrigo para pessoas em situação de rua e usuários de drogas. Além disso, os materiais de acervo encontrados seguem sem uso e prazo para que o público possa ter acesso a eles.

Um dos compromissos firmados com a Unesco foi a criação do Centro de Interpretação da Herança Africana, que seria mantido no prédio Docas Dom Pedro II, localizado em frente ao Cais do Valongo e arquitetado pelo engenheiro André Rebouças, em 1871. Para ser transformado nesse espaço, porém, serão necessárias obras de manutenção e adaptação, que até então não saíram do papel.

Em contato com o Iphan em agosto deste ano, o Conexão UFRJ foi informado de que “o projeto executivo arquitetônico para a adequação das Docas Pedro II está em seus trâmites finais”. Segundo o instituto, esse é o documento que vai nortear as futuras intervenções que ainda terão de acontecer para que o centro entre em funcionamento. Três meses depois não obtivemos resposta quanto às atualizações do processo.

Os responsáveis pela administração do centro no dia a dia seriam a Fundação Palmares e o Laboratório Aberto de Arqueologia Urbana (Laau), associado ao Instituto Rio Patrimônio da Humanidade (IRPH), da Prefeitura do Rio de Janeiro. Contatado pela primeira vez em agosto, o Laau informou que em setembro seria realizada a transferência dos artefatos para o galpão Docas Pedro II, o que ainda não ocorreu, passados quase três meses. A questão é que a demora e o histórico de abandono e descumprimento trazem à tona o risco de o sítio arqueológico perder o título de Patrimônio Mundial.

Além disso, a Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro (Cdurp) informou que o processo para instalação de nova sinalização e novo guarda-corpo no Cais do Valongo está avançando e deve sair do papel nos próximos meses, possivelmente ainda este ano. Foi também contratado serviço de manutenção preventiva e corretiva das bombas submersas que mantêm o cais seco.

“São muitos compromissos que deveriam ter sido cumpridos ao longo desses dez anos. É muito tempo. O cais sobrevive com o pouco que lhe dão de atenção, mas corre muito risco. Isso de não cumprir os compromissos com a Unesco é muito sério. Existem outros bens que foram descredenciados. E mais do que o receio do descredenciamento como patrimônio mundial, é um absurdo que um sítio histórico dessa natureza não seja tratado com toda a importância”, questiona Mônica.

Diante dessa possibilidade, o Ministério Público Federal (MPF), na figura do procurador Sérgio Suiama, tem acompanhado, desde 2013, as faltas e cobrado ações das autoridades responsáveis. Por envolver diversas entidades, ele explica que o trabalho deveria ser coletivo e que o atraso se deve a uma sucessão de governos nos quais não havia pessoas comprometidas e conscientes da importância histórica desse sítio arqueológico.

Apesar disso, desde 2017, o MPF tem realizado audiências públicas anuais sobre o Cais do Valongo. Além disso, já foram abertas duas ações contra os responsáveis, principalmente focando na criação do Centro de Interpretação da Herança Africana. Ainda há outras ações por vir. “Houve um movimento para ganhar o título, e parece que é só ganhar e pronto. Mas o estado assume vários deveres, inclusive o de manutenção e de contextualização do sítio. Nem sempre o Judiciário consegue forçar a União e a Prefeitura a fazer o que tem que ser feito, há uma questão de verbas e burocracias. É um processo difícil porque não tem consciência por parte das autoridades responsáveis”, lamenta o procurador.

O fato de ser um espaço que traz para destaque a história de dor e sofrimento da população negra é visto por muitos como uma das motivações para o descaso, não só com o Cais do Valongo, mas também com toda a região da Pequena África. Segundo a professora Mônica Lima, o processo de gentrificação durante as obras de revitalização da zona portuária não passa de nova tentativa de apagamento da cultura local: “Quem for morar por lá não pode esquecer que foi uma região africana, que conectava nosso país à África”.

Pequena África: cultura negra ontem e hoje

Pequena África. Esse foi o nome dado pelo compositor Heitor dos Prazeres à área que abrange zona portuária, Gamboa e Saúde, no Rio de Janeiro. Um espaço que, mesmo após a desativação do Cais do Valongo como porto de entrada de escravizados, em 1831, se manteve como região de forte presença africana no Brasil e foi fortalecendo um cenário de resistência e afirmação.

Conhecida hoje por abrigar um forte movimento cultural e gastronômico da cultura negra, a região tem vários pontos que integram o Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana. Entre eles estão o próprio Cais do Valongo, a Pedra do Sal, o Cemitério dos Pretos Novos e o Museu de História e Cultura Afro-Brasileira (Muhcab), antes intitulado Centro Cultural José Bonifácio. Também entram na lista o Jardim Suspenso do Valongo e o Largo do Depósito. Todos são lugares que têm na veia a forte história da escravização e do legado da cultura negra.

O tombamento da Pedra do Sal, em 1984, foi o começo de um movimento em busca de entender a importância dos patrimônios culturais negros da cidade e, em especial, da região da Pequena África. Em 1996, o Cemitério dos Pretos Novos foi encontrado por acaso, durante obras realizadas pela família Guimarães em sua propriedade. Um dos mais importantes cemitérios de africanos recém-chegados das Américas, ele foi identificado num lugar errado nos mapas durante muito tempo. Hoje, o espaço abriga o Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos, local de pesquisa e investigação do patrimônio material e imaterial africano e afro-brasileiro.

Quando, em 2011, foram descobertos vestígios do cais de pedra, deu-se o processo de reconhecimento do Cais do Valongo, que em seguida se tornaria Patrimônio Mundial da Humanidade por esforço e luta do movimento negro. Um lugar de resistência, que deve ser preservado. “É preciso guardar esses lugares de memória porque aquelas pedras gritam: racismo, opressão, humilhação. E é preciso denunciar isso todo o tempo para que não seja esquecido e para que não volte a acontecer”, completa a arqueóloga Tânia Andrade Lima.


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