Loja
Apoio: Roche

Saiba onde descartar seus resíduos

Verifique o campo
Inserir um CEP válido
Verifique o campo

Sensores instalados a até 4,7 mil metros abaixo da superfície registram aumento de temperatura em regiões abissais do Atlântico Sul

Foto de 66 north em Unsplash

Começam a surgir evidências robustas de que está em curso um fenômeno que oceanógrafos e estudiosos do clima temiam: o aquecimento das águas profundas dos oceanos. De 2009 a 2019, a temperatura em regiões abissais do Atlântico, situadas a mais de 4 mil metros (m) abaixo da superfície, tornou-se de 0,02 a 0,04 grau Celsius (°C) mais quente. Essa elevação sutil, mas extremamente relevante, foi registrada por um grupo internacional de pesquisadores e apresentada em um artigo publicado em setembro de 2020 na revista Geophysical Research Letters. Para os especialistas, uma das causas mais prováveis do aumento de temperatura dos mares, onde está armazenada 97% de toda a água do planeta, são as mudanças no clima decorrentes da emissão de gases de efeito estufa associada à atividade humana, que já tornaram a atmosfera cerca de 1 °C mais quente do que era em 1900. “Temos agora sinais consistentes de que a elevação da temperatura média da atmosfera está gerando reflexos nas profundezas dos oceanos”, afirma o oceanógrafo brasileiro Edmo Campos, da Universidade de São Paulo (USP), um dos autores do estudo, realizado em parceria com colaboradores da Administração Nacional Atmosférica e Oceânica (Noaa), dos Estados Unidos, e da Universidade de Buenos Aires, na Argentina. “Lentamente, eles estão esquentando”, diz Campos.

No trabalho, os pesquisadores analisaram dados do que provavelmente é a mais longa série de medições contínuas já feitas em regiões abissais dos oceanos ao sul do equador. Durante pelo menos uma década, sensores localizados em quatro pontos no fundo do Atlântico registraram a temperatura da água de hora em hora. Instalados em 2009 em uma expedição feita com o navio hidroceanográfico Cruzeiro do Sul, da Marinha do Brasil, os equipamentos estão a profundidades que variam de 1.360 m a 4.757 m. Eles e outros instalados posteriormente, alguns deles com apoio da FAPESP, assentam-se a 1 m do assoalho oceânico ao longo do paralelo 34,5° Sul, linha imaginária que circunda o globo e passa próximo ao município do Chuí, no Rio Grande do Sul, e à Cidade do Cabo, na África do Sul.

Os oceanógrafos consideram a coleta de dados ao longo desse paralelo fundamental para se conhecer como as alterações na temperatura da atmosfera afetam a zona abissal do Atlântico – essas mudanças de temperatura a grandes profundidades, por sua vez, podem provocar alterações drásticas no clima do planeta. É que, por essa latitude, a profundidades superiores a 4 mil m, passam as águas gélidas (com temperatura da ordem de 0,1 °C) provenientes da Antártida, que fluem para o norte e se espalham pelo fundo do oceano. Essas águas antárticas funcionam como um dos raros pontos de conexão direta entre a atmosfera e as partes mais profundas dos oceanos. Nas regiões tropicais do planeta, o ar é mais quente do que a água e transfere calor para as camadas mais superficiais dos mares (até mil m de profundidade). Próximo aos polos, porém, a situação se inverte: o ar é bem mais frio do que a água e extrai calor dela. Esse fenômeno ocorre, por exemplo, em uma região do oceano Austral chamada mar de Weddell, ao redor do qual estão instaladas várias estações de pesquisa antárticas – entre elas, a brasileira.

As águas superficiais do mar de Weddell perdem calor para a atmosfera, tornam-se mais densas e afundam. Ao submergir, mergulham sob uma camada intermediária de águas relativamente mais quentes e avançam ao ritmo de algumas centenas de quilômetros por ano rumo ao hemisfério Norte. Como quase não há variação térmica a grandes profundidades, a temperatura medida próximo ao assoalho oceânico no paralelo 34,5° é praticamente a mesma da água que afundou na vizinhança da Antártida. O problema é que, com o aumento da temperatura média da atmosfera, o degelo nas regiões polares vem aumentando e a água parece estar submergindo ligeiramente mais quente.

Um aumento de poucos centésimos na temperatura da água em regiões abissais pode parecer irrisório, mas não é. A água é uma das substâncias da natureza que exige maior quantidade de energia para se aquecer. “A energia necessária para promover um aumento de centésimos de grau na água no fundo do oceano provocaria uma elevação da ordem de graus na atmosfera”, conta o oceanógrafo. Além disso, as regiões profundas do Atlântico armazenam um volume de água gigantesco. “Essas pequenas alterações podem causar efeitos significativos na circulação global do oceano e, consequentemente, na forma como o calor é absorvido e redistribuído pelas diversas regiões do planeta”, explica Campos, que também é pesquisador na Universidade Americana de Sharjah, nos Emirados Árabes Unidos, e foi um dos coautores do capítulo 3 do 5º Relatório de Avaliação do Clima do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), da Organização das Nações Unidas, apresentado em 2014.

Havia tempos se suspeitava de que os oceanos estivessem aquecendo. Medições feitas nas últimas quatro décadas por instrumentos transportados por navios, capazes de registrar a temperatura ao longo de toda a coluna de água, ou, mais recentemente, aferições da temperatura das camadas mais superficiais dos mares feitas por satélites ou flotilhas de boias, já indicavam uma tendência de elevação. Esses dados, no entanto, geravam alguma desconfiança porque as medições nem sempre eram feitas nos mesmos pontos ou realizadas com intervalos de tempo suficientemente longos. “As medições infrequentes deixavam dúvida”, relata o oceanógrafo argentino Alberto Piola, da Universidade de Buenos Aires e do Serviço de Hidrografia Naval da Argentina, um dos coautores do estudo. “Os novos dados permitem confirmar que a tendência de aquecimento nesses 10 anos é robusta e semelhante à observada em levantamentos anteriores, sugerindo que se trata de uma resposta ao aquecimento global”, afirma.

Para o meteorologista Pedro Leite da Silva Dias, diretor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP, que não colaborou nessa pesquisa, as medições realizadas hora a hora no fundo do oceano eliminam a possibilidade de que a mudança de temperatura observada seja decorrente de uma amostragem inadequada, que poderia falsear os dados. “O aumento medido nesse estudo é compatível com o que se espera que o aquecimento global cause”, conta Dias, que participou da elaboração do 4º relatório de avaliação do IPCC, em 2007. “Se a causa fossem ciclos naturais de variação da temperatura, a magnitude da elevação seria menor”, explica.

O ritmo com que esse aumento de temperatura se manifestou nas regiões abissais do Atlântico chegou a surpreender alguns especialistas. O efeito do aquecimento global estava mais bem caracterizado nas camadas superficiais do oceano. Em um estudo publicado em julho de 2020 na revista Nature Climate Change, os oceanógrafos Gregory Johnson e John Lyman, ambos do Noaa, ao analisar dados obtidos desde 1968 por diferentes estratégias de observação, constataram que as águas superficiais de 53% a 79% dos oceanos apresentavam tendência de aumento de temperatura. “Com o trabalho da Geophysical Research Letters, fica registrado que esse aquecimento está atingindo o fundo do oceano e é um processo mais rápido do que se imaginava”, comenta o oceanógrafo José Henrique Muelbert, da Universidade Federal do Rio Grande (Furg), especialista em interações entre organismos marinhos e coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Mar Centro de Oceanografia Integrado (INCT-Mar COI). “Até então, essas regiões profundas do oceano eram consideradas muito estáveis.”

Os pesquisadores afirmam que ainda é necessário mais tempo de observação contínua nas águas abissais do paralelo 34,5° Sul – e também em mais locais do Atlântico e em outros oceanos – para se caracterizar melhor esse aquecimento e confirmar se, de fato, ele é decorrente das mudanças climáticas associadas à ação humana. Mesmo assim, eles receiam que o aumento de temperatura das águas profundas possa produzir efeitos de curto e de longo prazo. “De imediato, haveria o risco de aumento no nível do mar, que pode ser pequeno, mas torna mais vulneráveis as populações vivendo em ilhas e áreas costeiras”, diz Piola. Ele também menciona que esse aquecimento pode afetar a reprodução de organismos marinhos, uma vez que ovos e larvas são muito mais sensíveis às condições do ambiente do que os indivíduos adultos.

Mantido por longos períodos, o aquecimento poderia até ter impacto sobre o clima do planeta. Aquecidas pela radiação solar na região tropical, as águas superficiais do Atlântico transportam calor para o hemisfério Norte, aumentando a temperatura da atmosfera próximo ao Ártico e permitindo a ocorrência de um clima mais ameno na Europa – ao perder calor, essas águas submergem e retornam para o sul em uma camada intermediária, mais fria. “Caso o aquecimento do oceano enfraqueça essa circulação, após dezenas ou centenas de anos, poderia haver alterações drásticas no clima”, afirma Campos. Registros paleoclimáticos sugerem que essa circulação estava enfraquecida nas últimas glaciações, quando geleiras cobriram boa parte do hemisfério Norte do planeta.


Projetos

1. Impacto do Atlântico Sul na célula de circulação meridional e no clima (nº 11/50552-4); Programa Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais; Pesquisador responsável Edmo José Dias Campos (USP); Investimento R$ 1.907.842,51.
2. Variabilidade interanual dos transportes meridionais através da rede transatlântica Samoc (Sambar) (nº 17/09659-6); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Edmo José Dias Campos (USP); Investimento R$ 3.770.424,56.

Artigos científicos

MEINEN, C. S. et al. Observed ocean bottom temperature variability at four sites in the Northwestern Argentine basin: Evidence of decadal deep/abyssal warming amidst hourly to interannual variability during 2009-2019. Geophysical Research Letters. 9 set. 2020.
JOHNSON, G. C. e LYMAN, J. M. Warming trends increasingly dominate global ocean. Nature Climate Change. 13 jul. 2020.


Este texto foi originalmente publicado pela Agência FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original.


Veja também:


Utilizamos cookies para oferecer uma melhor experiência de navegação. Ao navegar pelo site você concorda com o uso dos mesmos. Saiba mais