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Confira o texto da economista sobre a temática “campo”, da Mostra EcoFalante de Cinema Ambiental

Filme Obrigado, chuva. Imagem: divulgação

“Na minha cultura, a terra é tudo. Sem terra, a vida não tem sentido.” A fala, de um Anauk, membro de uma comunidade originária de Gambela, região oeste da Etiópia, foi colhida num campo de refugiados no sul do Sudão, local para onde fugiu, depois de tentar resistir à expulsão operada pelos novos donos da terra, os “investidores”.

Os donos do dinheiro estão de olho nas terras agricultáveis porque “o lucro está lá, no new green gold”, diz um gestor de ativos do mercado financeiro, na maior conferência para investidores agrícolas que acontece na mesma época, início dos anos 10 deste século, em Nova York (EUA).

As duas cenas fazem parte de Burros Mortos Não Temem Hienas, filme finlandês de Joakim Demmer, incluído na temática “Campo”desta 7.ª Mostra Ecofalante de Cinema Ambiental, que busca explorar a atuação de grandes empresas e as mudanças climáticas, com as consequentes lutas pela terra e pela sustentabilidade ambiental em diversas partes do mundo.

O olho gordo do capital monetário não tem como foco apenas a Etiópia. Há um boom de terras aráveis em todo o mundo. Nas palavras do mesmo gestor financeiro, “o mercado está vendo a agricultura como um ativo real tão interessante e atrativo quanto os imóveis”. Em particular depois da grande crise de 2008/2009, os ativos reais entraram na mira da riqueza financeira e dos investidores institucionais, e a agricultura, assentada na expectativa de que a demanda por alimentos deve dobrar nos próximos 20 anos e de que as terras aráveis disponíveis estão se reduzindo como resultado da urbanização descontrolada, da escassez de água e das próprias mudanças climáticas, despontou como lócus de ganhos superlativos. O enorme crescimento dos preços das commodities agrícolas nos primeiros anos deste século teria dado a senha desta espetacular oportunidade.

A centenas de quilómetros do oceano Índico, no pequeno Camboja, grandes empresas compram enormes áreas de terras férteis, expulsam seus habitantes e as cercam, mas nada fazem com elas de imediato, apenas as retêm como ativos, especulativamente, no aguardo dos sinais do mercado. São por isso conhecidas como “terras silenciosas”. Terra do Silêncio, filme holandês de Jan Van den Berg, retrata mais essa investida do capital financeiro na fonte de vida e alimentos de populações pobres ao redor do planeta.

Mas a atuação do grande capital, que hoje é predominantemente financeiro, não se reduz à destruição das condições de vida das comunidades que se encontram no meio de seu caminho em direção à valorização. Mesmo aquelas que estão longe dele sofrem com a deterioração do meio ambiente, que essa mesma atuação normalmente produz. Kisilu Musya, um agricultor das regiões áridas do Quênia, que estudou e aprendeu que plantar árvores pode ajudar a reequilibrar o ciclo de chuvas, duramente afetado pelas mudanças climáticas provocadas pelas grandes empresas que despejam toneladas de carbono na atmosfera, busca compartilhar o seu saber com os vizinhos e formar redes capazes de dar sustentabilidade à agricultura local.

A dificuldade que Kisilu encontra não se reduz à falta inicial de interesse de seus próximos, que, aos poucos, ele vai conseguindo driblar. Bem pior é a decepção com a COP 21, a poderosa conferência das Nações Unidas sobre o clima, que Paris sediou em 2015. Estando ali presente para dar um depoimento sobre sua luta e para reivindicar que se reduzissem as emissões de CO2, descobriu que os principais países, refletindo os interesses das poderosas corporações neles abrigadas, todas elas consumidoras ou produtoras de combustíveis fósseis, não tinham nenhuma disposição de ceder no principal. Obrigado, Chuva é o filme britânico de Julia Dahr e do próprio Kisilu (ele filmou a si e à sua família) que narra a batalha do agricultor queniano contra um inimigo difuso, mas cada vez mais poderoso.

Agricultura, uso da terra, produção de alimentos e meio ambiente são temas que, por sua própria natureza, se entrelaçam no plano bioquímico. Nesse plano, o homem fez grandes descobertas, deixando para trás prognósticos como o de Malthus, que, no início do século XIX, traçava um panorama sombrio sobre a continuidade do desenvolvimento material por conta da escassez de alimentos, prevendo um cenário cortado amiúde por vagas de fome e milhões de mortos. O enorme desenvolvimento tecnológico experimentado desde então, ainda que considerando os graves problemas ambientais que também acarretou, demonstrou com largueza de argumentos que esse obstáculo poderia ser superado.


Filme Burros mortos não temem hienas. Imagem: divulgação

Apesar de a população ter se multiplicado por 7 desde as sinistras profecias de Malthus, as vagas de fome e a impossibilidade de se produzir alimentos para todos não se confirmaram. Um estudo de 2016 da FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação) aponta que o mundo produz hoje alimentos suficientes para sustentar todos os seus mais de 7 bilhões de habitantes. Se fome ainda há, e ela é uma realidade para quase 800 milhões de pessoas, segundo o mesmo estudo, as razões para tanto são de outra ordem. Essa outra ordem tem que ver com o plano mais importante da interconexão dos temas protagonistas da temática Campo desta 7.ª Mostra Ecofalante: o plano da produção da vida social e de sua reprodução material. Entrando nele, veremos que, se caminhamos rápido na superação dos entraves naturais ao desenvolvimento humano, no plano da organização social estamos voltando celeremente para trás.

As consequências da corrida mundial por terras aráveis lembram de modo inquietante os episódios dos cercamentos, que marcaram, há quatro séculos, os processos iniciais de acumulação de capital no centro do mundo hoje desenvolvido. Ao longo dos séculos XVII e XVIII, a transformação dos antigos campos comuns em propriedade privada acarretou a expulsão dos camponeses da terra e as consequentes jornadas dessas populações em direção às cidades, em busca de trabalho (o que tornou viável a própria revolução industrial). Começava assim a trajetória da terra em sua transformação em mercadoria.

Enquanto propriedade privada e, portanto, passível de ser objeto de compra e venda, a terra, apesar de não ser produzida pelo trabalho humano e de não haver a respeito dela, portanto, nenhum “custo de produção” (estamos pensando aqui na terra nua), precisa ter preço. Naturalmente, seu preço passou a ser dado pelo valor presente das rendas futuras esperadas de sua utilização. Mas a propriedade privada e a constituição de seu preço assim definido não são suficientes para a transformação plena da terra em mercadoria.

O geógrafo e urbanista britânico David Harvey fala do poder social da terra contraposto ao poder social do dinheiro. Ele está pensando aí principalmente no fato de que, no mundo das classes dominantes, mesmo depois de afirmada a propriedade privada da terra, o assim chamado “interesse fundiário”, associado a segurança, importância simbólica, tradição e prestígio, pode preponderar e tornar-se óbice à acumulação de capital, impedindo os usos mais produtivos da terra desse ponto de vista. Mas o mesmo raciocínio pode ser feito se pensarmos nas classes não dominantes. Como elemento necessário de toda produção e atividade humana, como espaço, a terra produz o enraizamento das populações, que é tanto mais verdadeiro quanto mais ruralizada for a vida. É isso que fica visível na fala do etíope da comunidade Anuak inicialmente destacada.

Para superar todos esses obstáculos e completar a posição da terra como mercadoria, vai afirmar o mesmo Harvey, é preciso que ela se transforme num ativo financeiro: não só que seu preço seja definido como se ela fosse um ativo financeiro (apesar de ela ser um ativo real), mas que ela seja de fato tratada como tal. Ora, a força do movimento que desloca grandes contingentes populacionais (são mais de 1 milhão e meio de pessoas só na Etiópia, apenas nos últimos cinco ou seis anos) e transforma outros tantos em assalariados vivendo em condições de trabalho escravo, não é nada mais nem nada menos do que o movimento do capital financeiro em sua marcha forçada para transformar o espaço de vida de populações inteiras no novo green gold, como claramente explicou o gestor de ativos de Nova York.

Se nos tempos da acumulação primitiva as populações do centro do sistema capitalista foram duramente afetadas pelo primeiro capítulo da história da transformação da terra em mercadoria, quatro séculos depois as populações das regiões mais pobres do planeta sofrem direto os efeitos do segundo capítulo, sem terem passado pelo primeiro. A violência é inaudita. O grande capital financeiro não respeita nada: o Parque Nacional da Gambela, com 5 mil hectares e abrigando milhares de espécies selvagens, muitas ameaçadas de extinção, já está sendo transformado em local de grande produção agrícola capitalista, capaz de render gordos dividendos aos acionistas que fizeram essa aposta. Quem procura saber o que se passa coloca a vida em risco. Os protestos são reprimidos; quem protesta ou denuncia é preso e torturado. Jornalistas são considerados “terroristas”, contrários ao “desenvolvimento”. No Camboja, igualmente, as pessoas são expulsas da terra, a polícia reprime os protestos e coloca os renitentes atrás das grades; a proibição de participar de protestos é regra em todos os contratos de trabalho. E outros exemplos há mundo afora, aqui mesmo no Brasil, não por acaso igualmente na mira dos garimpeiros de green gold.

A atuação de um órgão como o Banco Mundial, supostamente no sentido de garantir direitos básicos e humanos, acaba por jogar água no moinho dessa violência. Com os recursos de seu PBS (Protecting Basic Services), o governo da Etiópia, por exemplo, promoveu aquilo que chamou de “vilagização” das populações que estavam no meio do caminho do capital. Mas as promessas de água limpa, serviço de saúde, educação, moradia e emprego nas novas “vilas” ficaram muito longe de serem cumpridas. As populações da Gambela foram desenraizadas e hoje encontram-se sem nada. O conflito explodiu entre os Anuaks e as tropas do exército, enviadas pelo governo ditatorial para garantir as operações que “trarão o desenvolvimento”. Esse desenvolvimento singular produzido pelos novos “investidores” traz também o resultado paradoxal de elevar enormemente o número de pessoas que dependem de ajuda humanitária para se alimentar na Etiópia, enquanto o país vai se firmando como grande exportador de alimentos (paradoxo, por sinal, que motivou inicialmente a investigação que resultou no filme Burros Mortos Não Temem Hienas, sem que seu idealizador imaginasse de partida onde iria chegar).

Os demais filmes da temática Campo na atual Mostra tratam de temas distintos mas correlatos, todos unidos pelo mesmo fio da acumulação capitalista, da financeirização, da irracionalidade desse processo e de suas consequências para o meio ambiente, a utilização da terra e a produção de alimentos. Falam da luta social de Dolores Huerta, de sua batalha pelo direitos dos trabalhadores do campo e da associação de camponeses que ela construiu nos EUA (Dolores, de Peter Bratt); dos paradoxos da agricultura capitalista movida pela concorrência e pelo individualismo na Romênia, onde todos perdem, mas são incapazes de se unirem e trabalharem cooperativamente (Repolhos, Batatas e Outros Demônios, de Serban Georgescu); e, por fim, da melancólica busca de emprego de três trabalhadores chineses despedidos de uma usina de carvão que fechou as portas (“se podemos importar mais barato”, diz o burocrata encarregado de anunciar a demissão, “por que produzir aqui?”). Graças a uma emprego temporário que os três amigos encontram na área cultural, ecoa a saudação ao imperador numa representação teatral que evoca tempos antigos: “Que a safra seja boa!”. A singela saudação, sugestivamente introduzida pelo diretor de Os Hedonistas, Zhang-ke Jia, no contexto de uma China cada vez mais urbana e industrializada, reverbera nossa relação ancestral com a terra, o eterno metabolismo entre homem e natureza para a produção de coisas úteis, que é constitutiva da história humana. Como demonstram os filmes desta edição, as grandes corporações e o capital financeiro, que hoje se confundem, conspiram cada vez mais contra a vida, o planeta, a vida no planeta.

Leda Paulani é economista, doutora em Economia pelo IPE-USP, professora titular aposentada do Departamento de Economia da FEA-USP e professora/pesquisadora visitante da UFABC. Tem artigos publicados em revistas acadêmicas nacionais e estrangeiras e é membro do conselho editorial de publicações, como a Revista de Economia Política. Foi presidente da Sociedade Brasileira de Economia Política (SEP), assessora chefe do gabinete da Secretaria de Finanças da Prefeitura de São Paulo e, entre 2013 e 2015, foi secretária municipal de planejamento, orçamento e gestão da Prefeitura de São Paulo.

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Fonte: Ecofalante

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