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Comunidades tradicionais que vivem dentro dos limites da Estação Ecológica Jureia-Itatins, área oficialmente protegida no estado de São Paulo, esperam uma decisão judicial para poderem permanecer em suas terras tradicionalmente ocupadas

Por Natalia Guerrero e Sue Branford em Mongabay

  • Os caiçaras habitam há séculos a costa sul e sudeste do Brasil, mas a Fundação Florestal, que administra a reserva, demoliu algumas casas em 2019, alegando violações das restrições à atividade humana impostas no local.
  • Uma das famílias obteve uma vitória liminar na justiça e foi autorizada a reconstruir sua casa. No entanto, a decisão foi anulada logo depois devido às preocupações ambientais levantadas pelo órgão florestal.
  • Vários estudos mostram que a presença dessas comunidades em áreas de conservação ajuda a proteger a biodiversidade ao invés de destruí-la. Outras agências governamentais já reconhecem a necessidade de trabalhar com comunidades tradicionais, considerando-as “guardiãs da floresta”.

“Estamos esperançosos, nunca abandonamos esse objetivo, que é ter nossa casa de volta”, diz Heber do Prado Carneiro. Ele e sua esposa, Vanessa Honorato, vivem em uma comunidade caiçara no litoral sul do estado de São Paulo, entre a Mata Atlântica e o mar. Seu sustento vem da pesca e do cultivo de hortaliças. Em 1986, a área foi designada zona de conservação, parte da Estação Ecológica Jureia-Itatins. “Está na lei do mosaico nosso direito de permanecer”, diz ele.

Contudo, segundo Carneiro e Honorato, em julho de 2019, a Fundação Florestal, instituto de conservação ligado ao governo do estado, derrubou sua casa junto com a casa de seu primo, Marcos Venícius do Prado. Por e-mail, a Fundação declarou à Mongabay que todas as casas do local haviam sido construídas de forma irregular.

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Carneiro afirma que a casa de outro primo, Edmilson Prado, foi poupada, porque sua esposa grávida, Karina Otsuka, recusou-se a sair. Os dois casais despejados estão agora alojados com um familiar, em um local próximo. “Não é fácil ficar com uma criança de 11 meses sem casa – porque a gente está na casa de nosso avô, não é nossa casa”, diz Carneiro.

Familiares e amigos deitam-se em círculo na área onde antes estava a casa de Heber do Prado Carneiro e Vanessa Honorato, na Estação Ecológica Jureia-Itatins, em protesto contra a demolição feita pela Fundação Florestal, em 2019. Foto: Comunidades Rio Verde e Grajaúna.

Em maio de 2021, um pedido liminar para permitir que os primos Prado reconstruíssem suas casas no mesmo local foi negado, mas em setembro de 2021 um tribunal de apelação decidiu a favor dos caiçaras. “Assim que ouvi [a decisão judicial], comecei a planejar como seria o nosso quarto, a cozinha, o fogão a lenha, como era a outra casa”, diz Honorato. “E no quartinho do meu filho, Joaquim, que eu ia poder arrumar as coisinhas dele, os brinquedos dele, as roupinhas”.

“Como a gente é uma família muito grande e muito unida, todo mundo que ajudou a construir nossa casa e que passaram pelo mesmo sofrimento que a gente ficaram muito felizes”, diz Carneiro.

“A gente pensou que esta decisão judicial seria o primeiro passo para gente viver com dignidade novamente, todos juntos de novo”, diz Otsuka.

As comemorações duraram pouco. A fundação apelou da decisão, dizendo que a reconstrução causaria “danos ambientais irreparáveis”. Argumentou que “não há comunidade caiçara na área desde 1980” e que o local fazia parte “da maior área preservada de Mata Atlântica do Brasil”. Hoje a Mata Atlântica cobre apenas 25,8% de sua área original, e, embora as iniciativas de restauração estejam progredindo, ainda é um dos biomas mais ameaçados do Brasil.

Apenas alguns dias depois, o mesmo juiz revogou sua decisão anterior a favor dos caiçaras.

Agentes da Fundação Florestal derrubam casas caiçaras dentro da Estação Ecológica Jureia-Itatins em 2019, no litoral sul do estado de São Paulo. Foto: Comunidades Rio Verde e Grajaúna.

“Há uma situação de ilegalidade”, diz Andrew Toshio, membro da Defensoria Pública de São Paulo agindo em nome dos caiçaras, em entrevista à Mongabay. “Os direitos dos caiçaras foram violados”.

Toshio diz que essa disputa já existe há décadas. Ele critica o processo judicial por permitir que os argumentos ambientais prevaleçam “sobre os argumentos que demonstraram a tradicionalidade da ocupação, em todos os seus aspectos”. Ele apelou da última decisão, alegando que o juiz não considerou toda a documentação coletada pelos caiçaras em uma etapa anterior, bem como se omitiu no exame da legislação que dá fundamento ao direito à moradia, especialmente a ratificação da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, sobre povos indígenas e tradicionais.

“[A Fundação Florestal] desconsidera que as moradias foram construídas em locais de usos antigos, onde outras famílias já moraram ou já fizeram roça, inclusive com autorização do Estado”, diz Adriana de Souza de Lima, presidente da União de Moradores da Jureia (UMJ).

Acampamento Tapera Viva: movimento de apoio aos caiçaras da Jureia após a demolição das casas, efetuada em 2019 pelo órgão ambiental do estado de São Paulo. Tapera é o nome que recebem antigas áreas de habitação caiçara, que seguem uma referência importante para os moradores atuais. Foto: Comunidades Rio Verde e Grajaúna.

Importância para a conservação

O estilo de vida dos caiçaras não representa nenhuma ameaça para o meio ambiente, segundo Lima. Ela acrescenta que a fundação ignorou “inúmeros estudos que mostram que o modo de vida destas comunidades e seu conhecimento da floresta aumentaram a biodiversidade, ao invés de destruí-la”.

Um dos estudos mais significativos sobre o tema, do qual participaram os caiçaras da Jureia, acaba de ser publicado pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Uma das coordenadoras do estudo, a ecóloga humana e professora da Universidade de São Paulo (USP) Cristina Adams, afirma que o modelo de conservação imposto pela Fundação Florestal é inadequado para a Jureia. “Os caiçaras habitam essa região há pelo menos dois séculos, e antes deles povos indígenas viviam aqui “, diz ela. A ecóloga acrescenta que a área deveria ser tratada como uma “floresta cultural”, semelhante à forma como algumas áreas na Amazônia são consideradas.

“Isso não torna a área menos relevante para a conservação”, diz Cristina, já que facilitaria mais pesquisas sobre sistemas de manejo tradicional sustentável. “Para um ambiente como este, a cogestão é a melhor ferramenta para a conservação, pois traz mais segurança para a conservação, independente do governo de plantão”.

Algumas agências governamentais também reconheceram a necessidade de trabalhar com as comunidades tradicionais, enxergando-as como as melhores “guardiões da floresta”. Em um exemplo recente, o ICMBio, a agência do governo federal que administra parques e unidades de conservação, estabeleceu novos mecanismos para trabalhar com as famílias. Porém, outras agências continuam ligadas ao antigo conceito que sustenta parques nacionais como o Yellowstone, nos EUA: a ideia de que a melhor maneira de proteger uma área é expulsar seus habitantes humanos.

Pescadores saindo para a pesca. A venda de peixe é uma das principais fontes de renda das comunidades caiçaras. Foto: Comunidades Rio Verde e Grajaúna.

Longa história de batalhas

A batalha jurídica atual é apenas a última de uma série de conflitos que os caiçaras da Jureia enfrentaram ao longo do último século. Uma grande ameaça, dizem os líderes comunitários, é a especulação imobiliária, uma prática próspera em áreas ao longo da costa do Brasil. Outra ameaça foi o plano do governo federal de construir uma usina nuclear na região nos anos 80. Na época, ambientalistas buscaram o apoio dos caiçaras para lutar contra a usina e pressionar pela proteção da área, mas, segundo os moradores, não houve discussão suficiente sobre como estes mecanismos afetariam as famílias que viviam na área. O projeto da usina foi cancelado e a reserva de Jureia-Itatins foi criada em 1986.

O que se seguiu foram anos de restrições e violência, segundo os caiçaras. À medida que as famílias lutavam para defender seus direitos, foi aprovada uma legislação e ratificados tratados internacionais que concediam maiores direitos às comunidades tradicionais, fortalecendo sua posição jurídica. Além disso, em 2013, a Lei do Mosaico Jureia-Itatins foi aprovada pelo governo do estado de São Paulo, tornando possível que as comunidades tradicionais vivessem dentro da Estação Ecológica. Segundo os caiçaras, a Fundação Florestal estadual não acompanhou as mudanças de pensamento e não está respeitando a legislação atual.

Mulheres de comunidade caiçara preparando farinha de mandioca. Foto: Comunidades Rio Verde e Grajaúna.

As lutas das comunidades tradicionais no Brasil são parte de uma luta mais ampla e internacional, que deve assumir um significado ainda maior este ano. A menos que seja adiada mais uma vez por causa da pandemia da covid-19, a Convenção sobre a Biodiversidade (COP15) da ONU deve acontecer em Kunming, China, em abril e maio deste ano. Lá, espera-se que seja endossada a chamada proposta 30 por 30, sob a qual os governos de todo o mundo devem se comprometer a oferecer proteção total para 30% das áreas de terra e água do planeta até 2030.

Ainda não houve acordo sobre os direitos das comunidades tradicionais que já habitam áreas a serem protegidas, mas muitos grupos defendem que essas comunidades deveriam ser autorizadas a permanecer e a continuar com seus meios de subsistência tradicionais, por uma questão de justiça social. No entanto, algumas grandes organizações ambientais internacionais se opõem.

O pedido de reconstrução das casas caiçaras é parte de um pleito judicial mais amplo em prol de direitos territoriais dentro da Estação Ecológica, que ainda está em andamento em outro tribunal de São Paulo e pode levar anos para chegar a uma decisão final, de acordo com Toshio. Diante disso, a Defensoria Pública sinalizou que pode recorrer à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) com o argumento de que o Estado brasileiro, incluindo o Judiciário, está negligenciando deliberadamente a violação dos direitos da comunidade caiçara.

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Uma nova decisão sobre a reconstrução das casas dos primos Prado será tomada pelos juízes da Câmara de Meio Ambiente do Tribunal de Justiça de São Paulo, prevista para os próximos meses.

Carneiro diz estar sempre consciente, não importa a circunstância, da iminente decisão do tribunal que decidirá se eles podem ou não reconstruir as casas que perderam em 2019. “Tudo o que estamos pedindo é que os tribunais decidam rápida e justamente, sem negacionismos”, diz ele. “A gente espera”, diz sua esposa, Vanessa Honorato, “se pudermos voltar para nosso pedacinho de terra, nossa casa”.


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