Tendo desenvolvido mecanismos de proteção química ao longo da evolução, invertebrados são fortes candidatos a serem portadores de moléculas de interesse para a ciência
Desde a antiguidade, substâncias encontradas nas plantas são utilizadas como fonte de tratamento contra uma série de sintomas e doenças. Porém, no começo do século 20, após a descoberta da penicilina (primeiro antibiótico da história) a partir de fungos, os olhares da comunidade científica começaram a se voltar para outros ambientes. Um deles, ainda inexplorado até hoje, é o fundo do mar, que reserva uma biodiversidade misteriosa. Com a criação de cursos de mergulho autônomo, depois da Segunda Guerra Mundial, mergulhadores começaram a reportar casos de intoxicação e queimaduras ao tocarem em determinados animais, fatos que chamaram a atenção principalmente de bioquímicos, que passaram a estudar o potencial das substâncias causadoras de tais efeitos.
Mesmo após décadas de pesquisas, o meio aquático ainda segue desconhecido. Até por isso, ele nos permite vislumbrar diversas descobertas que poderiam ser feitas em caso de aumento no número de estudos. Quem sabe não encontraríamos um novo composto eficaz contra alguma doença, por exemplo? É justamente com essa motivação que atuam os pesquisadores do Grupo de Química Orgânica de Sistemas Biológicos do Instituto de Química de São Carlos (IQSC) da USP. “Nós estudamos organismos do mar, como esponjas, moluscos, fungos, briozoários e demais invertebrados em busca de substâncias interessantes para o desenvolvimento de fármacos”, explica Roberto Berlinck, professor do IQSC e coordenador do grupo fundado em 2000.
Mas, afinal, com tantos animais disponíveis no oceano para serem estudados, por que escolher organismos invertebrados? “Os animais que têm pouca mobilidade, ou fixos no substrato marinho, estão mais suscetíveis a ataques de predadores, competição por espaço e infecções por microrganismos patogênicos. Eles tiveram que desenvolver mecanismos de defesa eficazes, como os espinhos, que seriam uma defesa física, e os venenos, vistos como uma proteção química. Por isso, eles são tão atraentes de serem estudados”, explica o docente.
O trabalho é complexo e envolve uma série de etapas. Por meio de mergulhos, coletas e análises detalhadas em laboratório, os cientistas investigam a bioatividade de substâncias extraídas dos animais para testá-las em células doentes. Claro que para realizar todas essas tarefas é preciso vencer o desafio geográfico. Apesar da grande logística necessária para que o grupo do interior de São Paulo se desloque para o litoral, isso não diminui o empenho dos pesquisadores: “A distância nunca atrapalhou, mas é óbvio que é preciso ter disposição para ir para o mar, coletar, montar uma equipe e traçar a melhor estratégia”, diz o professor, que mergulha desde 1994 para fazer coletas. Entre os destinos visitados pelo docente estão Fernando de Noronha (PE), São Sebastião (SP), Baía de Todos os Santos (BA) e Cabo Frio (RJ). Mesmo com tanta dedicação, a missão não seria possível não fosse a ajuda de diversos colaboradores. Ao todo, são dezenas de pesquisadores, entre professores e alunos, espalhados pelo Brasil que colaboram com os estudos da USP.
Brecando células cancerígenas
Um dos trabalhos em andamento no grupo do IQSC é o da pós-doutoranda Camila Crnkovic. Em sua pesquisa, ela estuda a produção das fomactinas, substâncias obtidas a partir do fungo Biatriospora sp., encontrado dentro da esponja marinha Dragmacidon reticulatum, no litoral de São Sebastião (SP). Entre outras funções, as fomactinas possuem ação anticâncer, inibindo o crescimento de células cancerígenas depois de tratamentos por quimioterapia ou radioterapia.
Utilizando técnicas computacionais, Camila descobriu que o fungo estudado produz muito mais dessas substâncias do que se imaginava, sendo considerado uma verdadeira fábrica de fomactinas. “O trabalho agora é isolar e identificar todas essas moléculas para determinar quais são as mais promissoras”, afirma a cientista. Testes em laboratório com alguns desses compostos mostraram resultados positivos em células doentes.
Formada em Farmácia, Camila sempre carregou o interesse em atuar nessa área de pesquisa: “O apelo de procurar novos medicamentos é muito motivante para mim. Quando você começa a estudar a química de produtos naturais, tem muita coisa diferente, cada organismo produz um tipo de substância, cada classe de molécula tem uma atividade biológica diferente que pode virar um fármaco. Tudo fica mais atraente por toda essa diversidade”, diz a pós-doutoranda, que realiza sua pesquisa em parceria com Leandro Oliveira, mestrando do IQSC e o mais novo integrante do grupo de pesquisa. Apesar do pouco tempo de casa, o jovem, que veio da cidade de Cássia, do sul do Estado de Minas Gerais, já se sente respaldado pela equipe: “Embora tudo ainda seja novo para mim, a experiência está sendo incrível. A pesquisa no IQSC é muito bem estruturada e o grupo totalmente acolhedor’, afirma.
Moléculas promissoras no combate ao câncer também foram localizadas em esponjas coletadas na foz do Rio Amazonas, bioma descrito em 2016. Em meio à diversidade local, elas chamaram a atenção por serem abundantes, despertando em Vítor Feire, doutorando do IQSC, o interesse em estudá-las. Ele analisou um conjunto de moléculas extraídas da esponja Dictyonella e descobriu que as substâncias foram capazes de inibir in vitro a atividade de um complexo enzimático chamado de proteassoma, ação que fez com que elas adquirissem atividade anticâncer. Os resultados obtidos com o trabalho geraram o artigo científico publicado na revista Journal of Natural Products.
Mesmo com resultados promissores, o pesquisador segue estudando novas esponjas encontradas no Rio Amazonas à procura de compostos cada vez mais eficientes. Formado em Química Ambiental pela Unesp, Vítor Freire diz que se interessou pela área para descobrir como podemos utilizar organismos da natureza a nosso favor. “Aqui no laboratório, temos a possibilidade de estudar organismos nunca antes explorados”, revela o jovem, que se sente gratificado em atuar nesse ramo da ciência: “Além de fazer o que eu gosto, estou mirando lá na frente para conseguir um remédio que poderá ser utilizado em algum tratamento, isso é muito recompensador”.
Como encontrar a molécula ideal?
Diante das centenas de milhares de substâncias produzidas pelos animais aquáticos, identificar moléculas promissoras não está entre as missões mais fáceis. Segundo o professor Berlinck, a cada 10 mil novas substâncias descobertas, apenas uma chega efetivamente ao mercado. “É um processo longo, que envolve muitos recursos, tanto financeiro como de pessoal. É um esforço humano enorme que exige um alto grau de conhecimento, por isso são tantas equipes trabalhando pelo mundo”, diz o docente.
O trabalho que o grupo desempenha compõe os primeiros passos no processo de descoberta de um novo medicamento, funcionando praticamente como um grande “filtro” que facilita o trabalho de muitos cientistas ao descartar ou selecionar substâncias para o prosseguimento das etapas. O docente afirma que, atualmente, o custo total para desenvolver um novo fármaco gira em torno de $ 500 milhões e o tempo de espera pode variar de 10 a 20 anos. “Temos que ser certeiros na seleção”, afirma o docente, que prefere estudar locais ainda pouco explorados.
Um deles foi a Antártica, onde a professora Lara D. Sette, da Unesp de Rio Claro e colaboradora de Berlinck, coletou no substrato terrestre um fungo com grande potencial, chamado de Geomyces. Após testes in vitro no laboratório do IQSC, foi descoberto que o fungo produz substâncias promissoras no combate a doenças causadas por parasitas, como malária e leishmaniose. “Sabemos que o fungo possui um conjunto de moléculas interessantes, agora vamos estudá-las uma a uma para saber quais são as mais efetivas”, explica.
Protegendo as plantas
Protagonistas na descoberta de novos medicamentos, os fungos podem ser considerados vilões para algumas plantas, impactando diretamente na produção alimentícia. Esse é o caso do fungo Colletotrichum, conhecido por causar doenças em árvores e plantas frutíferas, como morango, goiaba, maçã, feijão, amêndoas, entre outras. No entanto, uma situação curiosa despertou o interesse da doutoranda do IQSC Mirelle Takaki. Ela descobriu que, estranhamente, o comportamento agressivo do fungo contra os vegetais não ocorria na Ilha de Alcatrazes, litoral norte de São Paulo, deixando de acometer as plantas nativas.
Mirelle estuda o comportamento do fungo Colletotrichum, conhecido por causar doenças em árvores e plantas frutíferas – Foto: Henrique Fontes/ IQSC USP
“O intuito do meu trabalho é descobrir porque alguns desses fungos causam e outros não causam certas doenças, analisando tanto linhagens de plantas saudáveis como afetadas”, explica a aluna. Uma das suspeitas da pesquisadora é de que os fungos da ilha estejam em condição de harmonia com as plantas locais. Como não há muitos predadores na região, não seria necessário “atacá-las”. Mirelle diz que ainda não existe uma forma efetiva de evitar que as plantas sejam contaminadas. Com o seu trabalho, será possível entender como esses fungos se comportam, abrindo caminhos para a produção de bioinseticidas que possam combatê-los e evitar a perda de alimentos.
Formada em Química pela Unesp, Mirelle sempre gostou da área de química orgânica. Foi durante seu mestrado que começou a procurar por grupos de pesquisa que estudavam produtos naturais, escolhendo o do IQSC. Atualmente, ela está prestes a defender seu doutorado na instituição. “É muito legal quando vemos o resultado do que estamos fazendo. Nós passamos anos estudando e, no final, é muito gratificante saber que o que desenvolvemos poderá ser aproveitado pela sociedade.”
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