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Construções conectam fragmentos de florestas e reduzem risco de atropelamentos da fauna

Resumo

  • Não simples passarelas, mas estruturas de concreto, largas e com vegetação: nas rodovias e ferrovias do país, começam a surgir meios eficazes para conectar fragmentos de florestas e reduzir o risco de atropelamentos.
  • O último foi inaugurado em agosto, sobre a BR-101, na região do Rio de Janeiro onde vive a maior população silvestre de micos-leões-dourados. Segundo pesquisadores, a espécie precisa de 25 mil hectares de florestas conectadas para não correr risco de extinção.
  • Existem outros três viadutos vegetados no Brasil: um em São Paulo, sobre a Rodovia dos Tamoios, e dois sobre um ramal ferroviário da Vale no Pará, usado para transporte de minério de ferro.
  • No resto do mundo, viadutos para travessia de fauna são prova de eficiência há decadas. A Holanda tem 30 construídos, e mais 20 em planejamento. No Canadá, só o Parque Nacional Banff tem 44 passagens: seis viadutos vegetados e 38 passagens subterrâneas.

Viadutos projetados para animais silvestres. Não simples passarelas, mas estruturas de concreto, largas e com vegetação. A ideia é reduzir o impacto da fragmentação do habitat e o risco de atropelamentos, fatores responsáveis por extinção de espécies e alta mortandade da fauna.

O recém-inaugurado viaduto vegetado (em inglês, overpass) sobre a BR-101, na área de ocorrência do ameaçado mico-leão-dourado (Leontopithecus rosalia) no estado do Rio de Janeiro, chamou a atenção para a possibilidade do aumento da implantação dessas estruturas no Brasil. Somente outros três desses viadutos, sendo dois em uma mesma linha férrea, existem em território nacional.

“A função primária dos viadutos vegetados é restabelecer a conexão entre os ambientes dos dois lados da rodovia ou ferrovia e aumentar a possibilidade de travessias seguras, sobretudo para animais que de outra forma evitariam cruzar a via”, explica o biólogo e coordenador do Núcleo de Ecologia de Rodovias e Ferrovias da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (NERF-UFRGS), Andreas Kindel.

Uma das principais consequências da construção de rodovias e ferrovias para a fauna é a fragmentação de seu habitat, gerando o chamado “efeito barreira”. Para algumas espécies, a clareira gerada pela estrada, o ruído, a poluição e o movimento de veículos inibem e até impedem a circulação dos animais por um ambiente que já foi uma paisagem única, não dividida. É o que acontece com algumas espécies de aves que vivem no sub-bosque de florestas (região logo abaixo das copas das árvores maiores), anfíbios que habitam o solo forrado com folhas e alguns pequenos mamíferos que frequentam as copas das árvores (dossel), como roedores e marsupiais. “Esses animais evitam as estradas. Raríssimos são os registros de atropelamentos desses grupos”, explica Kindel.

Essa barreira pode isolar populações de espécies, gerando cruzamentos entre animais aparentados (consanguinidade) e uma consequente dificuldade de adaptação às mudanças ambientais. O chamado fluxo gênico, que possibilita haver variação genética dentro da população de uma espécie, é fundamental para sua sobrevivência.

Outro problema é a possibilidade de separar os animais de fontes de água e alimento, bem como causar problemas para processos migratórios. Populações de determinadas espécies também podem ficar restritas em áreas que não têm a capacidade de sustentá-las, gerando uma disputa interna entre os animais.

Evitar atropelamentos, que segundo o Centro Brasileiro de Ecologia de Estradas (CBEE) são responsáveis pela morte de 475 milhões de animais silvestres no Brasil todos os anos, é uma função secundária dos viadutos vegetados. Kindel afirma que as cercas são ferramentas mais efetivas, pois impedem a interação entre veículos e animais. “Viadutos vegetados e outros tipos de passagens de fauna, sozinhos, não reduzem a mortalidade ou reduzem muito pouco”, salienta o pesquisador.

De acordo com Kindel, os viadutos são construídos em contextos bastante específicos, em geral quando a implantação da rodovia ou ferrovia envolve corte do relevo, como os morros. O projeto dessas estruturas deve levar em consideração a sua proximidade das formações vegetais remanescentes a serem conectadas, a garantia da manutenção dessa cobertura vegetal nativa das áreas ligadas, evitando o risco da expansão agrícola, da urbanização ou de outras infraestruturas inviabilizarem o ganho das áreas religadas, além de preferencialmente desfragmentar corredores de vegetação de abrangência regional e não somente local.

Mas para que os viadutos vegetados realmente funcionem, é necessária a instalação de um sistema com cercas para guiarem os animais até a estrutura. Elas impedem o acesso da fauna à rodovia ou aos trilhos e direcionam o deslocamento até o ponto de travessia. Se o trecho superior do viaduto tiver uma cobertura vegetal com as mesmas características de vegetação do entorno, há grande chance de ele ser utilizado.

Ajudando os micos-leões-dourados

O viaduto vegetado construído na altura do km 218 da BR-101, em Silva Jardim (RJ), foi concluído no início de agosto. Ele é resultado de intensa mobilização da Associação Mico-Leão-Dourado (AMLD), que a partir de 2012 se empenhou para conseguir a implantação de medidas que reduzissem os impactos da duplicação da rodovia ao ameaçado mico-leão-dourado e demais espécies da fauna da região.

A construção da BR-101 na década de 1950 ajudou no processo de fragmentação do habitat dos micos-leões-dourados. Atualmente, na altura de Silva Jardim, a pista está duplicada, o que torna ainda mais difícil atravessar a rodovia. De um lado da pista está a Reserva Biológica de Poço das Antas, onde vive a maior população da espécie; do outro, vários fragmentos de Mata Atlântica conservados em fazendas, reservas particulares do patrimônio natural (RPPNs) e o Parque Estadual dos Três Picos.

O secretário-executivo da AMLD, Luis Paulo Ferraz, lembra que o contrato de concessão para a iniciativa privada do trecho da rodovia onde foi construído o viaduto, que incluía a duplicação da via, não incorporou os custos ambientais da obra. Ainda segundo o ambientalista, os estudos de impacto ambiental não levaram em consideração a realidade local e sequer citaram o mico-leão-dourado, espécie símbolo da Mata Atlântica que só existe naquela região.

A proposta de construção de um viaduto vegetado surgiu em 2014, quando a AMLD organizou um encontro técnico com pesquisadores, gestores das unidades de conservação da região e da Arteris Fluminense, concessionária responsável pela rodovia. A duplicação terminou antes mesmo que qualquer estrutura para a fauna fosse construída.

“O principal problema foi a resistência da concessionária à ideia do viaduto face aos custos envolvidos”, afirma Ferraz. A Arteris Fluminense teria contratado consultorias para pesquisar alternativas e questionar a eficiência de um viaduto vegetado para aquele contexto. A Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) teria sido outro foco de resistência, pois, segundo o ambientalista, demonstrou preocupação com a possiblidade de que esse tipo de estrutura, considerada cara, passe a ser exigida com mais frequências pelos órgãos ambientais.

O viaduto vegetado saiu do campo das ideias somente após o Ministério Público Federal ingressar, em 2016, com uma ação civil pública para exigir que as condicionantes ambientais do processo de licenciamento da duplicação da rodovia fossem efetivamente executadas. A obra começou em 2018 e, de acordo com a Arteris Fluminense, nela foram investidos R$ 9 milhões. Um outro viaduto, na altura do km 240, está previsto para ser construído após serem feitos monitoramentos para verificar os resultados do primeiro.

Além do viaduto, a Arteris Fluminense construiu, em um trecho de 72 quilômetros da BR-101 entre Rio Bonito e Casimiro de Abreu, 15 passagens de fauna subterrâneas (que passam por baixo da rodovia), dez estruturas que ligam copas de árvores situadas em lados opostos da estrada, nove passagens sob pontes, mais de 30 quilômetros de cercas e um sistema de sinalização para motoristas indicando a presença de animais silvestres na região. Ou seja, todas as estruturas fazem parte de um planejamento maior que busca minimizar os impactos da rodovia duplicada e do tráfego diário de cerca de 20 mil veículos.

O viaduto possui 54 metros de comprimento e 20 metros de largura. Nele foram plantadas mudas de árvores nativas da região, que ainda têm de crescer para criar o ambiente propício às travessias. Além do mico-leão-dourado, a preguiça-de-coleira (Bradypus torquatus), a onça-parda (Puma concolor), tatus, cachorros-do-mato e tamanduás-mirins (Tamandua tetradactyla) estão entre as espécies que deverão ser beneficiadas pela obra.

Atualmente, a população estimada de micos-leões-dourados é de 2.500 animais. A AMLD defende que, para a espécie deixar de correr risco de extinção, sua população deve ser de pelo menos 2 mil animais vivendo livremente em 25 mil hectares de florestas protegidas e conectadas. O viaduto vegetado é parte da estratégia de conexão de fragmentos de matas. “A consolidação da conexão florestal em Poço das Antas era fundamental”, afirma Ferraz.

Na Serra do Mar paulista

O outro viaduto vegetado em rodovia existente no Brasil foi construído na altura do quilômetro 25,8 da SP-99 (Rodovia dos Tamoios), que liga São José dos Campos a Caraguatatuba, no estado de São Paulo. A estrutura, concluída em junho de 2018, foi erguida durante a duplicação da estrada, em um local chamado Serrinha, exatamente onde houve o corte de um morro.

De acordo com a empresa do governo paulista Dersa (Desenvolvimento Rodoviário S/A), responsável pelo projeto de duplicação da estrada, o viaduto vegetado, além de sete passagens de fauna inferiores (que passam por baixo da pista) e uma passagem feita com cabos entre copas de árvores, foram projetados para reduzir atropelamentos após a realização de campanhas de monitoramento de fauna na região.

A Concessionária Tamoios, que administra a rodovia, não informou dados sobre a utilização pelos animais da estrutura – que não tem árvores e custou R$ 2,4 milhões.

Além desses dois viadutos, há planos de construir mais um terceiro sobre uma rodovia. Com projeto pronto, mas sem contrato de execução, ele será implantado na altura do quilômetro 54,5 da rodovia BR-280, em Santa Catarina. De acordo com o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), o viaduto reconectará um fragmento de Mata Atlântica de cerca de 10 km² junto à cidade de Guaramirim com outro bem maior que chega até as proximidades de São Bento do Sul e ao trecho paranaense da Serra do Mar. Ele terá 40 metros de comprimento e 11 metros de largura. Nas matas próximas foram registradas animais vertebrados de 101 espécies, como gato-do-mato-pequeno (Leopardus guttulus), cachorro-do-mato (Cerdocyon thous), vários morcegos, corujas, tatus, pássaros, cobras e anfíbios.

Na ferrovia, os primeiros viadutos vegetados do Brasil

No Pará, dois viadutos vegetados foram implantados no ramal ferroviário de 101 quilômetros que liga uma das minas de minério de ferro da Vale, em Canaã dos Carajás, à Estrada de Ferro Carajás, em Parauapebas. Eles foram concluídos em 2017 por exigência do processo de licenciamento ambiental, sendo os primeiros instalados no país. As duas estruturas foram cobertas com gramíneas e receberam pequenos arbustos de espécies da região para reproduzir o ambiente do entorno, além de cercas direcionadoras.

Os dois viadutos integram um conjunto de estruturas que inclui também 30 passagens de fauna de outros tipos, como as subterrâneas. A Vale informou ter registrado 2.194 ocorrências de travessias de animais nesse sistema de passagens entre 2016 e 2019.

O biólogo e pesquisador em impactos de ferrovias sobre a fauna, Rubem Dornas, lembra que as linhas férreas podem ter um efeito barreira ainda maior para animais de pequeno porte. Além de a clareira ser um inibidor para animais de algumas espécies, os trilhos são obstáculos verticais que podem ser intransponíveis para cágados, jabutis e alguns anfíbios, por exemplo. “Os animais encontram os trilhos e, na tentativa de atravessar, podem ter que percorrer vários quilômetros até descobrirem um local com espaço entre a brita e trilho ou uma passagem de nível, que geralmente é para carros. Nesse trajeto, suspeita-se que um grande número deles morra por inanição ou superaquecimento”, explica.

Dornas, que faz parte da Rede Brasileira de Especialistas em Ecologia de Transportes (REET Brasil), afirma que a malha ferroviária brasileira é antiga, sendo raras as linhas com sistema de redução de impactos como o efeito barreira e os atropelamentos.

Como é no exterior

Novidades no Brasil, os viadutos vegetados já são construídos há décadas em diversos países da Europa, nos Estados Unidos, Canadá e Austrália. Na América Latina, a primeira experiência com esse tipo de estrutura é da Argentina.

O viaduto vegetado argentino foi construído entre 2008 e 2010 sobre a rodovia RN-101, na província de Misiones – estado onde ficam as Cataratas do Iguaçu, na divisa com o Brasil. A estrada situa-se ao lado de um grande bloco de Mata Atlântica bem conservada que inclui o Parque Nacional Iguazú e o Parque Provincial Urugua-í. “O que motivou sua construção foi a localização em um corredor biológico no qual, desde 2002, trabalhamos na sua restauração e na criação de reservas naturais privadas”, explica Diego Varela, pesquisador do Instituto de Biologia Subtropical da Universidade Nacional de Misiones (IBS/CONICE) e da ONG Centro de Investigaciones del Bosque Atlántico (CeIBA).

A iniciativa tem resultado positivo. Varela, que avalia a eficiência do viaduto desde 2011, afirma que ano após ano o número de espécies utilizando a estrutura tem aumentado, sendo que 24 mamíferos de médio e grande porte já foram registradas nela. Na região há onças-pintadas (Panthera onca), onças-pardas (Puma concolor), jaguatiricas (Leopardus pardalis), antas (Tapirus terrestres), queixadas (Tayassu pecari), catetos (Tayassu tajacu), veados-mão-curta (Mazama nana) e veados-mateiros (Mazama americana).

Em unidades de conservação, e envolvendo uma única rodovia, a experiência canadense no Parque Nacional Banff é considerada uma referência. São 44 passagens de fauna selvagem, sendo seis viadutos vegetados e 38 passagens subterrâneas, além de 82 quilômetros de cercas ao longo da Rodovia Trans-Canadá, que corta a área protegida. Esse conjunto de medidas começou a ser planejado em 1981, quando o governo canadense resolveu duplicar a estrada, e foi pensado principalmente para atender animais de grande porte, como alces, cervos e ursos. Pesquisas indicaram ter ocorrido uma redução de mais de 80% de atropelamentos de fauna quando consideradas todas as espécies afetadas.

Na Holanda, um grande programa de reconexão de fragmentos de áreas com mata nativa, que inclui viadutos vegetados, foi iniciado em 1990. O trabalho identificou 1.126 pontos de desfragmentação em rodovias, ferrovias e canais hidroviários. Entre 2005 a 2018, 175 desses locais foram alvo de diversas intervenções. Atualmente, há 30 viadutos vegetados e outros 20 planejados.

Em artigo publicado em julho na revista Landscape Ecology, pesquisadores holandeses afirmam que a redução do tamanho dos fragmentos com vegetação nativa, bem como a diminuição da qualidade desses habitat, aumenta as extinções locais de pequenas populações de animais. Outro problema causado pelo isolamento dessas áreas é a dificuldade dessas espécies colonizarem novos fragmentos.

Esse problema motivou a implantação do programa de desfragmentação holandês. Por outro lado, os autores do artigo citam pesquisas que destacam uma ausência de análises de custo-benefício das medidas de desfragmentação de estradas, bem como dos efeitos delas sobre as populações de animais silvestres.

Kindel afirma que os viadutos vegetados associados a cercas são adequados para minimizar danos de rodovias em operação, mas não devem ser utilizados para viabilizar estradas em planejamento. “Se a estrada não se justifica, e isso tem de ser avaliado com indicadores sólidos, ela nem deveria ser cogitada. Essa virada de mesa ainda não foi feita no Brasil, embora vários mecanismos, inclusive de financiamento, já demandem essas informações”, explica o coordenador do NERF. Segundo ele, o ideal é evitar a fragmentação, e quando for necessária a implantação de estruturas que reduzam os impactos negativos sobre a fauna, que sejam parte de um planejamento amplo para toda uma região, e não intervenções pontuais.



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