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Por Valéria de Marcos, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e outros autores*

Por Valéria de Marcos, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e outros autores em Jornal da USP | A matéria publicada no Jornal da USP, intitulada Cidades brasileiras apresentam alto índice de agrotóxico na água da torneira, chamou a atenção para a alta presença de agrotóxicos na água de 2.300 cidades em todo o País, entre elas Ribeirão Preto, São Carlos, Bauru, Pirassununga, Piracicaba, Lorena e São Paulo. A matéria impressionou pelos números que expôs (e também pelos que não expôs): 2.300 cidades – 41,30% dos municípios brasileiros (5.568 no total) – identificaram 27 tipos diferentes de agrotóxicos na água destinada ao consumo da população. Se a presença do agrotóxico nas cidades do interior do estado é até esperada – dado que tais cidades são rodeadas por monoculturas de commodities do agronegócio –, pode causar espanto a presença da cidade de São Paulo nesta lista, considerando sua distância em relação às “cidades do agronegócio”, a saber, 157 km da mais próxima (Piracicaba) e 330 km da mais distante (Bauru).

Isso pode ser explicado pelo fato de que os agrotóxicos não são substâncias estáticas e, quando aplicados, contaminam o alimento, ar e água, afetando não só os locais próximos da aplicação, mas também todo o curso dos rios e, assim, alcançam as cidades à jusante dos locais de cultivo. Além disso, as águas das cidades podem ser contaminadas com agrotóxicos usados em áreas de agricultura urbana e periurbana, nas residências e em campanhas de saúde pública para o controle de vetores. Mas há pelo menos três informações importantes que a matéria não mostra, que são:

1) o Sistema de Informação de Vigilância da Qualidade da Água (Sisagua), no qual a matéria se baseia, avalia apenas 27 ingredientes ativos (IA) de agrotóxicos dos mais de 500 IA comercializados no País;
2) grande parte dos 3.268 municípios onde não foram encontrados agrotóxicos não realizaram as medições ou não compartilharam dados com o programa (ou seja, não é possível afirmar que suas águas não estejam contaminadas), e
3) mesmo quando os agrotóxicos encontrados na água para consumo não excedem o Limite Máximo Permitido (LMP), essas substâncias, isoladamente ou em combinação com outros químicos, podem resultar em efeitos crônicos à saúde da população.

Outro fato muito importante para o qual a matéria chama a atenção é que dos 27 tipos de agrotóxicos identificados, “16 [59,3%] são classificados pela Anvisa como extremamente ou altamente tóxicos e 11 [40,7%] estão associados ao desenvolvimento de doenças crônicas”. Consultado sobre o risco à saúde humana, o professor do curso de Medicina da Faculdade de Odontologia de Bauru (FOB) da USP, Luiz Fernando Ferraz da Silva, explica que “o prejuízo à saúde [dos consumidores dessa água contaminada] é desencadeado a longo prazo” e alerta que “alguns elementos químicos presentes nos agrotóxicos podem ter efeito cumulativo, ou seja, você ingere um pouco hoje, um pouco amanhã, um pouco mais para frente. Ao longo de muitos anos, esse efeito pode interferir na função dos órgãos”.

Segundo o professor: “Isso ocorre porque, ao ingerir a substância, o organismo inicia o processo de eliminação do elemento. Esse processo causa um sobrecarregamento dos órgãos, principalmente do fígado, já que ele é responsável por essa função (…). Além disso, o especialista enfatiza que, por conta dessa sobrecarga de metabolização, no longo prazo ela pode causar neoplasias – crescimento do número de células, conhecido como tumor –, gerar inflamações crônicas e doenças autoimunes, doenças em que o sistema imunológico ataca o próprio corpo.”

O quadro descrito – divulgado pelo Ministério da Saúde – gerou comoção entre os ouvintes da Rádio USP e leitores do Jornal da USP, que indagaram sobre formas de evitar estes impactos. Em matéria intitulada Levantamento mostra que água para consumo humano tem alto índice de agrotóxico o jornal voltou a buscar o professor Luiz Fernando Ferraz da Silva, para responder às questões dos leitores.

Na nova matéria, o professor diz ser “impossível evitar completamente a presença dos agrotóxicos no cotidiano. A fervura da água antes do consumo e a utilização de filtros barram alguns agrotóxicos, mas não eliminam totalmente a presença dos compostos químicos”. Afirma ainda que “o agrotóxico, quando consumido em baixas quantidades, não apresenta ameaça à saúde humana. O problema dos compostos está no efeito cumulativo no organismo, já que os agrotóxicos estão presentes não só na água, mas também nos alimentos”. Processos inflamatórios crônicos e disfunções metabólicas são as consequências mais comuns causadas pelo excesso de defensivos agrícolas e compostos químicos advindos da poluição. Além disso, os agrotóxicos também podem potencializar problemas já existentes”, conclui o professor.

O problema é que tal afirmação é apenas parcialmente verdadeira. Não é possível afirmar categoricamente que a exposição a baixas quantidades de agrotóxicos não cause efeito algum à saúde humana. As análises de toxicidade dos agrotóxicos (de onde tiramos os valores considerados “seguros” à saúde) são realizadas pelas indústrias em testes com animais de laboratório, usando ingredientes ativos isoladamente (e não utilizando as fórmulas que são comercializadas, que contêm diversos coadjuvantes) ou expondo essas cobaias a misturas de múltiplos agrotóxicos com outros químicos, como acontece nas nossas exposições do dia a dia. A partir desses testes e através de estimativas de risco, estabelece-se uma margem de segurança e definem-se os valores considerados seguros (“aceitáveis”). É razoável que esses limites sejam suficientes para proteger uma pessoa saudável, mas conseguiria proteger toda a população, incluindo os indivíduos mais sensíveis e vulneráveis, como os imunocomprometidos e portadores de doenças crônicas? E as crianças, cujos sistemas biológicos ainda estão em desenvolvimento?

E quais seriam os limites de segurança para uma substância reconhecidamente cancerígena? Uma característica importante dos efeitos carcinogênicos é que não apresentam limiar de dose, ou seja, podem ocorrer mesmo em doses muito baixas, não sendo necessário haver período cumulativo. Além disso, nas últimas décadas, há evidências crescentes de que algumas substâncias podem induzir a alterações no sistema endócrino mesmo em baixas doses, as quais podem resultar em diversos efeitos adversos à saúde, incluindo vários tipos de cânceres, malformações congênitas, problemas reprodutivos e distúrbios no funcionamento do sistema imunológico e sistema nervoso, entre outros. Há evidências importantes de que quando esta exposição ocorre durante períodos muito sensíveis do ciclo de vida, como o desenvolvimento do feto, gravidez, lactação, pode resultar em efeitos severos que poderão ser observados ao longo de toda a vida. Ressaltamos ainda que o critério de “limite seguro de exposição” é definido não só tecnicamente, mas politicamente – na União Europeia, o limite aceitável de resíduos de agrotóxicos em alimentos e água chega a valores mil vezes menores dos definidos no Brasil. Ou seja, aqui o limite “tolerável” é bem maior. De fato, um estudo recente, ao analisar o conteúdo de agrotóxicos na água dos municípios do Paraná, mostrou extensa contaminação por agrotóxicos em 97% dos municípios, em níveis muito mais elevados do que os aceitos na União Europeia. Além disso o estudo estimou um excesso de 542 indivíduos com câncer por milhão de pessoas naquele Estado, atribuíveis ao uso dos agrotóxicos, contrariando a afirmação do professor Luiz Fernando Ferraz da Silva na matéria.

A estratégia mais eficaz de gestão de riscos da exposição aos resíduos dos agrotóxicos é a eliminação do uso de substâncias que já apresentam evidências de carcinogenicidade e de interferência endócrina, com base no melhor conhecimento científico disponível. É imperativo que, com base no princípio da precaução, se busque ainda eliminar o uso de substâncias que têm potencial de toxicidade aquática, que são persistentes no ambiente e/ou que têm potencial de bioacumulação. É fundamental destacar que os danos ecológicos e ambientais do uso intensivo de agrotóxicos também são severos e é totalmente incompatível com as formas sustentáveis de produção de alimentos. A redução do uso em larga escala e a eliminação da pulverização aérea sem dúvida também são fundamentais para que se possa evitar os riscos de danos à saúde de trabalhadores e da população expostos. De acordo com o professor, “lavar bem as folhas, verduras e legumes e, quando possível, retirar a casca das frutas ajudam a diminuir a presença dos compostos químicos no organismo e, consequentemente, minimizam” – mas não eliminam – “as chances de problemas de saúde futuros causados pela intoxicação”. Destacamos que a grande maioria dos agrotóxicos utilizados hoje em dia são sistêmicos, ou seja, se distribuem por todas as partes do vegetal, de forma que o alimento inteiro está contaminado, não sendo possível eliminá-lo com lavagem ou remoção das cascas.

Apesar das ponderações alarmantes, a matéria parece considerar apenas a ponta menos impactada do processo, a dos consumidores da água e alimentos contaminados. Parece desconsiderar o risco das comunidades tradicionais, dos trabalhadores rurais e das populações do campo, da floresta e das águas, por exemplo, que se expõem a esses químicos durantes seus processos de trabalho e ainda estão muito mais expostos ambientalmente, por viverem próximos às áreas de plantio, possuírem familiares que trabalham com agrotóxicos e consumirem mais alimentos in natura (com maiores concentrações de agrotóxicos) do que um indivíduo que vive na cidade. Estimativas apontam por volta de 150 a 200 mil casos de intoxicação por agrotóxicos nos trabalhadores rurais anualmente.

O professor considera que a “presença de defensivos agrícolas é essencial para manter a produtividade e garantir a alimentação da população”, embora aponte que “uma estratégia é tentar diminuir a quantidade de agrotóxicos em larga escala para preservar o meio ambiente e melhorar a saúde pública, garantindo assim uma economia funcional e mais qualidade de vida à população”. Segundo o professor, “o uso de agrotóxicos afeta não só o organismo humano, mas também contamina lençóis freáticos e causa danos ao meio ambiente.” A este respeito, também é importante destacar que a maior quantidade dos agrotóxicos aplicados no Brasil não se destina à produção de alimentos e sim à produção de commodities, entre elas a soja e a cana-de-açúcar. Além de não se caracterizarem como alimentos, esta produção, baseada em um modelo de monocultura em grandes extensões de terra e com grande dependência de agrotóxicos, está na base da devastação dos principais biomas brasileiros, a exemplo do Cerrado, transformado em imensas monoculturas de soja. Ao trocar as florestas e biomas por monoculturas, além dos problemas já mencionados, se está acelerando os efeitos adversos das mudanças climáticas, os quais afetarão todas as regiões do País, com graves consequências socioeconômicas. Além disso, insistimos aqui que a estratégia mais eficaz de gestão de riscos da exposição aos resíduos dos agrotóxicos é a eliminação do uso de substâncias que já apresentam evidências de carcinogenicidade e de interferência endócrina, com base no melhor conhecimento científico disponível.

Como já dito, é imperativo que, com base no princípio da precaução, se busque ainda eliminar o uso de substâncias que têm potencial de toxicidade aquática, que são persistentes no ambiente e ou que têm potencial de bioacumulação. É fundamental destacar que os danos ecológicos e ambientais do uso intensivo de agrotóxicos também são severos e é totalmente incompatível com as formas sustentáveis de produção de alimentos. A redução do uso em larga escala e a eliminação da pulverização aérea sem dúvida também são fundamentais.

A dependência do uso de quantidades cada vez maiores de produtos químicos – agrotóxicos e fertilizantes – que são necessários para produzir a mesma quantidade de alimentos é o resultado da ampla disseminação da chamada Revolução Verde, apresentada como forma de garantir uma maior produtividade agrícola e de resolver o problema da fome no mundo, transformada a partir dos anos 1960 no carro-chefe da modernização agrícola no País. Isso ocorre porque a expansão de monoculturas – seja as do agronegócio, seja a concentração de pequenas e médias produções com o mesmo gênero agrícola – gera um desequilíbrio ambiental que propicia a fácil propagação de “pragas”. Esse ciclo, repetido várias vezes, gera um desgaste do solo e a necessidade de quantidades cada vez maiores de fertilizantes químicos para recuperar a fertilidade natural do solo e de agrotóxicos para combater as “pragas” que, por sua vez, estão ficando cada mais resistentes a esses produtos, demandando a utilização de mais agrotóxicos e o desenvolvimento de novas moléculas, num ciclo sem fim. O resultado deste processo é (1) a presença de quantidades cada vez maiores de resíduos químicos no solo, ar, nos alimentos e na água de consumo; (2) a alta exposição dos trabalhadores a esses compostos, pois normalmente eles possuem pouco apoio técnico e treinamento laboral e, por isso, nem sempre reconhecem os riscos envolvidos ou seguem os protocolos de boas práticas na aplicação dos agrotóxicos; (3) a alta exposição da população que habita as adjacências das áreas produtivas, em especial nos casos de pulverização aérea; e (4) a já mencionada elevada degradação e contaminação do ambiente, comprometendo a qualidade dos rios e lençóis freáticos por esses compostos químicos.

É importante ainda alertar que a situação se agravou e muito desde o início do governo Jair Bolsonaro, com Tereza Cristina à frente do Ministério da Agricultura. Desde o início de seu governo, mais de 1.629 agrotóxicos foram liberados, muitos destes com riscos e comportamentos desconhecidos, alguns dos quais desconhecidos e outros tantos banidos dos EUA e União Europeia há 20 anos.

Como se não bastasse todo esse quadro, é preciso adicionar mais alguns fatos que pesam de modo cada vez mais dramático no bolso dos consumidores. Esses produtos químicos usados no processo produtivo agrícola são comercializados em dólar e, em boa parte, são derivados do petróleo, fatores que elevam ainda mais o custo de produção final dos alimentos. E mais, num mercado de alimentos mundializado, não raro o alimento percorre longas distâncias – por via rodoviária e, muitas vezes, aérea – para chegar à mesa do consumidor, fato que, com a alta do dólar e do preço dos combustíveis, impacta ainda mais o preço da cesta básica e eleva o número de pessoas em condição de insegurança alimentar.

Outro ponto importante são os custos sociais e financeiros de milhares de intoxicações agudas, mortes e adoecimento crônico que ocorrem todos os anos (e estão aumentando cada vez mais), associados à perda da capacidade para o trabalho e da qualidade de vida dos trabalhadores agropecuários, por exemplo, que afetam diretamente essas populações, suas famílias, o Sistema Único de Saúde e podem, inclusive, comprometer a própria agricultura e a produção de alimentos.

Ainda sobre este ponto, gostaríamos de retornar à ponderação feita pelo professor Ferraz da Silva na matéria publicada no Jornal da USP, relativa à inevitabilidade de uso de agrotóxicos para a produção de alimentos. É preciso desconstruir a ideia de que essa é a única forma de garantir que o alimento chegue à mesa da população, ideia que alicerça a alegação da “impossibilidade de produção agrícola sem agrotóxicos”. É urgente fortalecer o debate sobre o direito a um trabalho e uma alimentação seguros para quem produz – ou trabalha na produção –, para quem consome e para o ambiente em que essa produção se dá. É preciso garantir o direito à escolha do alimento que se consome e, em especial, à diversificação desse alimento nas dietas, seja em nível local, seja em nível regional. O caminho para que esse direito se torne realidade passa pela ruptura com esse padrão de produção petro e químico dependente, pelo incentivo a práticas mais sustentáveis e seguras de produção agrícola, pela qualificação e apoio técnico aos trabalhadores, pela valorização da produção local e de circuitos curtos de comercialização, pela criação de políticas de incentivo e financiamento à produção de alimentos orgânicos e/ou agroecológicos, seja no campo, seja nas áreas urbanas produtoras de alimentos. Ainda, pela efetivação e fortalecimento da reforma agrária, visto que a maior parte da produção de orgânicos do País é feita pelos movimentos sociais, marcadamente o MST. E, sobretudo, passa pela conscientização massiva dos gestores sobre os riscos dos agrotóxicos e da população sobre o seu direito de ter acesso a uma alimentação segura e de qualidade. Muitos pesquisadores consideram que a transição agroecológica em larga escala da agricultura nos países industrializados seja urgentemente necessária para limitar os impactos da agricultura extensiva na saúde humana e no meio ambiente.

* Também assinam este texto os pesquisadores do Grupo de Estudos de Agricultura Urbana (GEAU) do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP e do Núcleo de Estudos em Avaliação de Riscos Ambientais (NARA), da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP

Este texto foi originalmente publicado por Jornal da USP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.


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