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A arte do povo Kadiwéu vem saindo das aldeias e ganhando destaque no Brasil e no mundo

  • A arte do povo Kadiwéu, usada na pintura corporal e na cerâmica, vem saindo das aldeias e ganhando destaque no Brasil e no mundo.
  • Os 1.500 Kadiwéu que hoje vivem no Mato Grosso do Sul são descendentes dos Guaikuru, cavaleiros habilidosos que lutaram ao lado do Brasil na Guerra do Paraguai.
  • Sua reserva indígena foi a primeira criada no Brasil, no século 19; no entanto, ainda vive sob a ameaça de grileiros, secas e queimadas – 40% do território ardeu nos incêndios de 2020.

Basta uma busca por “Kadiwéu” no Pinterest para se ter uma ideia do sucesso que a arte deste povo indígena do Mato Grosso do Sul tem alcançado nos últimos anos. Seus grafismos, originalmente usados em pinturas corporais e cerâmicas, agora inspiram tatuagens, objetos de design e peças de moda.

A arte Kadiwéu, praticada por um grupo de 1.500 pessoas que vivem em uma área onde Cerrado e Pantanal se encontram, é também um estratégia fundamental de sobrevivência. E uma das pessoas centrais nesse processo é a artista Benilda Vergílio, de 33 anos, cujos vestidos inspirados nos grafismos Kadiwéu, são destaque nas passarelas do Brasil e, cada vez mais, do exterior.

“Fui criada na aldeia Alves de Barros, dentro da terra indígena”, conta a artista. Minha avó, uma matriarca, se chamava Rufina Belizário. Ela plantava, colhia algodão, fazia bolsas, tecia redes e tapeçarias, as enfeitava e fazia leques com folhas de palmeira. Ela pegava tudo o que podia da natureza e transformava.”

A avó, diz Vergílio, estava determinada a manter a cultura Kadiwéu viva. “Todos os anos ela promovia a Festa da Moça [celebração tradicional que marca o rito de passagem das meninas à idade adulta] e organizava cantorias [festivais de canto]. Eu tinha uma ligação muito forte com ela.”

A artista conta que teve a ideia de usar a arte Kadiwéu nas roupas ainda criança. “Uma criança que visitou nossa aldeia deixou umas revistas Capricho. Então pensei que seria divertido usar alguns dos desenhos que criávamos em casa para nossos potes e cestos naqueles vestidos da moda.”

Vergílio ainda mora na região em que nasceu e hoje faz parte da equipe da Subsecretaria de Políticas Públicas para a População Indígena de Mato Grosso do Sul. Apaixonada por sua vocação, ela viaja de aldeia em aldeia, falando com mulheres Kadiwéu e ajudando-as a valorizar sua cerâmica, bolsas e tapeçarias únicas.

“Faço-as enxergar que seu trabalho é bonito e que elas não deveriam vendê-lo barato para atravessadores. Adoro ajudar mulheres desconhecidas a ganhar reconhecimento pelo lindo trabalho que fazem”, diz ela.

Em breve, o esforço de Vergílio deve ganhar um impulso: o governo do Mato Grosso do Sul, a Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) e a Universidade de Manitoba, no Canadá, estão se unindo com a Associação das Mulheres Artistas Kadiwéu para encontrar novas formas de vender seu trabalho. Os planos incluem abrir um centro cultural na aldeia Alves de Barros, onde Vergílio cresceu, além da criação de uma loja online.

“Ver a felicidade da comunidade com esses planos nos traz muita satisfação”, diz Antônio Hilário Urquiza, professor de antropologia da UFMS e coordenador do projeto. A iniciativa está “empoderando essas mulheres e as ajudará a vender seus produtos diretamente para os consumidores.”

Transmissão de conhecimento

A produção de cerâmica e de outros tipos de artesanato não contribui apenas com o sustento – ela desempenha um papel importante na vida familiar, na transmissão da cultura e também conecta as artesãs indígenas com a natureza.

Keyciane Lima Pedrosa, da Funai (Fundação Nacional do Índio), explica: “A forma como elas selecionam o barro, moldam os potes, marcam os desenhos com fibras de caraguatá [uma espécie de bromélia], cobrem os potes com resina de pau-santo e procuram argilas coloridas para pintá-los – todos esses estágios envolvem vários membros da árvore genealógica e têm um papel importante na transmissão do conhecimento tradicional de geração em geração.”

Esse meticuloso processo criativo há muito fascina os acadêmicos. Um dos primeiros a estudar a cerâmica Kadiwéu foi o etnólogo italiano Guido Boggiani, que, no fim do século 19, fez um registro sistemático da cerâmica, das esculturas e pinturas corporais dos Kadiwéu. Nos anos 1930, o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss visitou o território e reproduziu os desenhos em fotos e diagramas em influentes publicações de antropologia.

Muitos desses primeiros visitantes estrangeiros temiam que estivessem testemunhando uma cultura indígena em vias de extinção. Mas não foi o que aconteceu. Heather Roller, diretora do Programa de Estudos Nativo-Americanos da Colgate University, nos EUA, diz que muitas das pistas para a capacidade dos Kadiwéu se adaptarem e sobreviverem estão evidentes nos próprios estudos acadêmicos.

Em artigo publicado em 2018, ela escreveu: “as primeiras etnografias contêm evidência de práticas profundamente arraigadas porém flexíveis de aliança, apropriação e resistência. Como muitos grupos indígenas no interior do Brasil, os Kadiwéu usaram essas estratégias para defender sua autonomia e território durante um século de desafios.”

Herança de luta e sobrevivência

Os Kadiwéu têm uma história notável. Eles são descendentes dos Mbayá-Guaikuru, um dos muitos grupos Guaikuru que habitavam a região do Gran Chaco à época da chegada dos colonizadores espanhóis e portugueses no século 16.

Os colonizadores forçaram os Guaikuru a ir para leste, atravessando o Rio Paraguai e sofrendo perdas terríveis. Já na segunda metade do século 19, apenas o grupo do qual os Kadiwéu descendem havia sobrevivido. De acordo com Giovani José da Silva, professor de História da Universidade Federal do Amapá (Unifap), que viveu entre os Kadiwéu entre 1997 a 2004, eles são o único grupo remanescente no Brasil que fala a língua Guaikuru.

Essa capacidade de se adaptar e sobreviver, citada por Heather Roller, é evidente há muito tempo. Um exemplo antigo conhecido foi a rapidez com a qual eles incorporaram cavalos em seu estilo de vida. Os cavalos não eram conhecidos na América do Sul até que os colonizadores os introduzissem, mas os Kadiwéu logo começaram a criá-los, provavelmente ainda no século 16.

Em seu livro A Reserva Indígena Kadiwéu (1899-1984): Memória, Identidade e História, Silva, da Unifap, diz que os Kadiwéu se tornaram cavaleiros habilidosos, ganhando o apelido de “índios cavaleiros”. Acredita-se que os Kadiwéu, cuja população provavelmente girava em torno de 7 mil a 8 mil indivíduos no século 18, chegaram a ter o mesmo número de cavalos.

Essa rica história de adaptação moldou a identidade Kadiwéu. A artista Benilda Vergílio se lembra das palavras de uma anciã de sua aldeia: “O dia que a família não produzir cerâmica e pintar o corpo, o dia que não criar dois cavalos para seu próprio uso, e o dia que não falar a língua Kadiwéu, esse dia marcará o fim dos Kadiwéu.”

Direito territorial nascido da guerra

Os Kadiwéu tinham tanta fama que Dom Pedro II os recrutou para lutar do lado brasileiro na Guerra do Paraguai, entre 1864 e 1870. O imperador recompensou os Kadiwéu pelo seu papel na guerra criando uma reserva indígena para eles – a primeira do Brasil.

Mas foi apenas em 1984, depois de resistirem a inúmeras tentativas de expulsão de suas terras, que os direitos dos Kadiwéu sobre seu território foram formalmente reconhecidos pelo governo brasileiro. Sua reserva, a Terra Indígena Kadiwéu, está hoje próxima à cidade de Bonito, não muito distante da fronteira com o Paraguai. Tem uma área de 539 mil hectares, dos quais 71% estão no Cerrado e 29%, no Pantanal.

Mesmo depois do reconhecimento formal, os Kadiwéu continuam sofrendo pressões de fora. Inicialmente, 23 fazendeiros, cujas terras ficavam dentro da reserva recém-estabelecida, recusaram-se a sair. Depois de uma longa batalha legal, a Justiça Federal do Mato Grosso decidiu a favor dos fazendeiros em 2012, autorizando-os a reocupar suas terras. A Funai apelou e, em agosto de 2018, um tribunal superior decidiu a favor dos Kadiwéu, concluindo que “não há como ratificar uma decisão para dar posse à terra para não-indígenas dentro de terras indígenas legalmente demarcadas”.

Desde então, os conflitos aumentaram. Vergílio diz que madeireiros ilegais e grileiros estão sempre invadindo os limites da reserva. “Nós patrulhamos a terra para mantê-los fora, mas eles encontram jeitos de entrar, roubar madeira e até animais”, ela explica.

Dois novos invasores: fogo e pandemia

Em 2019 e 2020, a ameaça mais grave aos Kadiwéu foram os incêndios que atingiram o Pantanal e queimaram uma porção significativa de seu território. De acordo com o Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), 247.300 hectares do território Kadiwéu, cerca de 46% do total, foram queimados até o fim de novembro de 2020. Até recentemente, o Pantanal era úmido demais para queimar, mas as mudanças climáticas trouxeram uma seca severa, enquanto muitos incêndios no bioma foram supostamente causados por pecuaristas buscando expandir suas pastagens – a JBS e outros grandes frigoríficos brasileiros também foram implicados recentemente nos incêndios do Pantanal, de acordo com a ONG Greenpeace.

“Até agora, o pior incêndio foi o que ocorreu no fim do ano passado”, diz Benilda Vergílio. “O poço em nossa casa secou. Nossa casa fica bem longe da cidade, e não ter água dificulta muito a vida.”

A situação teria sido pior se não fosse pela criação, em dezembro de 2019, da Associação de Brigadistas Indígenas Kadiwéu (Abink), que promoveu o treinamento de 15 brigadistas indígenas pelo Centro Nacional de Combate e Prevenção de Incêndios Florestais, do Ibama. A Abink não só combate incêndios; ela também reflorestou a área em torno da nascente que leva água para Alves de Barros, a maior das seis aldeias dentro da terra indígena.

Creusa Vergílio, presidente da Associação de Mulheres Artistas Kadiwéu (Amak), conta que os incêndios e a pandemia se combinaram e deixaram os Kadiwéu com menos comida e uma renda reduzida: “Com os incêndios, não conseguimos encontrar muitos dos frutos que comemos normalmente. E a pandemia também dificultou a venda de artesanato.”

Contudo, apesar de todos os desafios históricos e atuais enfrentados pelos Kadiwéu, eles continuam comprometidos como nunca com sua herança cultural. “Durante a pandemia, muitos dos Kadiwéu têm praticado algum tipo de arte. É bom para a alma”, diz Benilda Vergílio. Ela ecoa um sentimento expresso pelo antropólogo Darcy Ribeiro depois de uma visita ao território Kadiwéu em 1948. Eles têm uma “vontade de beleza”, escreveu ele, definindo o fato de que os Kadiwéu insistem que os utensílios domésticos cotidianos não sejam apenas úteis, mas sejam também belos.


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