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Estudos indicam que o leste da floresta, mais desmatado, virou fonte de dióxido de carbono na última década, enquanto o oeste tenta se manter como sumidouro

Divulgado em dezembro passado, o mais recente relatório do Global Carbon Project estima que, desde a década de 1960, as plantas terrestres retiraram da atmosfera cerca de um quarto do dióxido de carbono (CO2), o principal gás de efeito estufa que contribui para o aumento do aquecimento planetário, emitido pela queima de combustíveis fósseis. Esse efeito benéfico ao clima ocorre porque a taxa com que os vegetais fazem fotossíntese – e, portanto, consomem o CO2 disponível no ar para se manter vivos e crescer – é ligeiramente maior do que o ritmo de emissão de dióxido de carbono por meio da queima de biomassa, da decomposição de material orgânico e da respiração das plantas. A diferença a favor da coluna das absorções em relação à das emissões é pequena, de cerca de 2%, mas suficiente para tornar as florestas, sobretudo as densas e exuberantes matas tropicais, importantes sumidouros de carbono. Esse termo é usado para designar as áreas em que as absorções de carbono superam as emissões.

Por ser a maior floresta tropical, com cerca de 80% de sua área ainda preservada, a Amazônia é considerada um dos mais importantes sumidouros de carbono. Mas estudos feitos ao longo dos últimos 10 anos, com o emprego de diferentes metodologias analíticas, como dados de satélites, registros de crescimento e mortalidade de árvores e amostras sistemáticas do ar sobre a floresta, indicam que o leste da Amazônia virou uma fonte de carbono na década passada, ou seja, a quantidade de CO2 que saiu desse setor do bioma superou a que entrou. A situação é particularmente preocupante no sudeste da Amazônia, entre Pará e Mato Grosso, região em que fica o chamado Arco do Desmatamento, que concentra o grosso das intervenções humanas, sobretudo o desflorestamento, sobre a área. O mais recente trabalho a traçar esse quadro é um estudo de longo prazo coordenado pela química Luciana Vanni Gatti, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), cujos principais resultados foram descritos em um artigo publicado na revista Nature em meados de julho.

Feito a partir de medições de alta precisão da concentração de carbono em amostras do ar obtidas em quatro regiões da Amazônia entre 2010 e 2018, o novo estudo sinaliza que a emissão média de CO2 foi cerca de 10 vezes maior no leste do que no oeste da floresta tropical durante esses nove anos. “Observamos que as áreas com desmatamento superior a 30% do seu total emitiram muito mais carbono do que as com uma taxa de desflorestamento inferior a 20%”, comenta Gatti, que estuda a química da atmosfera da Amazônia por meio de um projeto no âmbito do Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais – PFPMCG  (ver quadro acima). “Dados meteorológicos indicam que, nos últimos 40 anos, o leste foi o setor da Amazônia que sofreu o maior aumento médio de temperatura e a maior redução de chuvas durante a estação de seca na região, entre agosto e outubro.”

Mais úmida e preservada, a seção ocidental do bioma também apresentou um balanço de carbono (soma de todas as emissões e absorções) delicado. No entanto, no setor oeste, a transição da condição de sumidouro para a de fonte de carbono parece ainda estar no começo, embora já se insinue. “Se o oeste da Amazônia sofrer mais impactos de atividade humana, é possível que também ali ocorra o que estamos vendo na parte leste”, diz, em entrevista a Pesquisa FAPESP,  o químico John Miller, do National Oceanic and Atmospheric Administration (Noaa), dos Estados Unidos, que também assina o artigo.

Na porção oriental da floresta, a temperatura média no período de estiagem subiu mais de 2 graus Celsius (˚C) e a incidência de chuvas diminuiu em pelo menos 25% nas últimas quatro décadas, segundo cálculos feitos pela equipe liderada por Gatti. A época de seca também tem se tornado cada vez mais longa, com mais dias sem chuva expressiva. No oeste da Amazônia, houve elevação da temperatura média e diminuição das chuvas entre 1979 e 2018, mas a um ritmo menor. O aumento térmico foi de, no máximo, 1,7 ºC, e a redução média de pluviosidade de 20%, de acordo com o artigo. Na Amazônia, um mês é considerado seco quando chove, em média, menos de 100 milímetros (mm) no período.

Não são apenas o desmatamento e as queimadas que interferem diretamente no balanço de carbono. Áreas de floresta degradada, apesar de ainda se manterem em pé, tornam-se mais secas e passam a emitir mais CO2 do que absorver. “Estamos diante de uma tempestade perfeita, um círculo vicioso em que um processo retroalimenta o outro”, diz o ecólogo Luiz Aragão, do Inpe, especialista em sensoriamento remoto, coautor do artigo. “O avanço das queimadas, do desmatamento e das áreas degradadas aumenta as emissões de carbono na Amazônia e altera o clima local e global. A floresta se torna mais quente e mais seca, especialmente no período de estiagem, e a mortalidade de árvores cresce. Esse efeito afeta novamente o balanço de carbono e impulsiona mais alterações climáticas.”

O físico Paulo Artaxo, da Universidade de São Paulo (USP), destaca a importância dos achados do estudo de seus colegas na Nature. “Alterações no ciclo de carbono na Amazônia produzem impactos não só no clima da região, mas de todo o Brasil e até do planeta”, destaca Artaxo, um dos coordenadores do PFPMCG. Por meio dos chamados rios voadores, uma parte da grande umidade da região Norte processada pela floresta é transportada  pelo Centro-Oeste, Sudeste e outras partes do país. Sem ela, o regime de chuvas se altera nessas regiões e pode causar secas agudas. Coordenador da Divisão de Observação da Terra e Geoinformática (DIOTG) do Inpe, Aragão tem se dedicado a estudar os impactos de longo prazo do desmatamento e especialmente das queimadas, duas formas de agressão à floresta promovidas pelo homem, sobre parcelas da Amazônia com vegetação degradada. Ele também é um dos coautores de outro trabalho, igualmente publicado em julho, mas na revista PNAS, que mostra os efeitos do fenômeno climático El Niño (aquecimento anormal das águas superficiais do oceano Pacífico) na grande seca ocorrida entre o fim de 2015 e o início de 2016 na Amazônia.

De acordo com dados desse estudo, que tem como principal autora a bióloga brasileira Erika Berenguer, da Universidade de Lancaster, no Reino Unido, cerca de 3 bilhões de árvores morreram em uma área equivalente a 1,2% do território da Amazônia brasileira nos três anos seguintes devido à seca extrema e a incêndios florestais. Um dos efeitos desse perecimento anormal de árvores é que toneladas a mais de carbono voltaram para a atmosfera. “Estudos recentes indicam que fogos associados ao desmatamento são mais intensos que os demais tipos de fogos na Amazônia e contribuem para maiores emissões”, explica a climatologista Renata Libonati, chefe do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais do Instituto de Geociências da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Igeo/UFRJ), que não participou do estudo.

O trabalho que saiu em julho na Nature é continuação de um projeto coordenado por Gatti, que, em 2014, rendeu um artigo publicado com destaque de capa nesse periódico científico. Aquele primeiro estudo usava a mesma metodologia de coleta de dados adotada no atual trabalho, mas abrangia um período de apenas dois anos, 2010 e 2011. O novo artigo agregou mais sete anos de informações de campo. “No trabalho de 2014, mostramos que um ano extremamente seco, como 2010, levava a Amazônia a emitir mais carbono do que um ano com clima dentro do esperado, como 2011”, explica a bióloga Luana Basso, membro da equipe de Gatti, que atualmente faz estágio de pós-doutorado na Universidade de Leeds, no Reino Unido. “O foco, então, era na variável tempo. Agora nossa ênfase é mostrar como se comporta o balanço de carbono em áreas da Amazônia com diferentes níveis de desmatamento, de queimadas e de mudanças climáticas.”

A produção das informações que serviram de base para o mais recente artigo envolveu um extenso trabalho de campo. Com o emprego de um avião de pequeno porte voando entre 300 metros e 4,4 quilômetros de altitude, os pesquisadores recolheram a cada dois meses amostras do perfil do ar sobre quatro pontos da Amazônia: Alta Floresta, em Mato Grosso, no sudeste da região; Santarém, no Pará, no nordeste; Rio Branco, no Acre, no sudoeste; e Tabatinga, no Amazonas, no noroeste. Em alguns anos, as amostras do noroeste vieram de Tefé, mas, para efeitos práticos, os dados de Tefé e Tabatinga são considerados representativos da mesma região. No total, foram obtidas 590 amostras atmosféricas.

O avanço das queimadas e do desmatamento na parte oriental da Amazônia são apontados pelos autores do artigo como as principais causas de essa região ter se tornado uma fonte de carbono. Com menos árvores em pé, a capacidade de retirar CO2 da atmosfera, via fotossíntese, diminui (ver quadro sobre ciclo do carbono na floresta). Se, além de cortada, a vegetação é queimada, o carbono que estava armazenado na biomassa da planta retorna diretamente para o ar. Os autores dizem que, se não houvesse desmatamento e queimadas, a Amazônia como um todo seria um sumidouro de carbono. Porém, seus dados indicam que sua porção sudeste, mais impactada pelo homem, já se comporta como uma fonte de carbono mesmo quando o peso das emissões específicas das queimadas é desconsiderado.

“As espécies de árvores mais longevas da Amazônia podem viver em média 180 anos”, comenta o botânico Marcos Buckeridge, do Instituto de Biociências da USP, que estuda o crescimento de plantas e cultivos em ambientes ricos em dióxido de carbono e não participou do estudo coordenado por Gatti. “A maior parte do carbono absorvido pelas plantas fica armazenada nelas por todo esse tempo e só é liberada quando elas morrem. A decomposição das plantas libera lentamente o carbono enquanto as queimadas fazem isso de forma acelerada. Assim que recomeça o crescimento vegetal em uma área desmatada, o carbono começa novamente a ser absorvido.”

Outros trabalhos chegaram a conclusões semelhantes à do estudo de Gatti, Aragão e seus colaboradores. Artigo publicado na Nature Climate Change em abril deste ano sinaliza que a Amazônia emitiu 18% mais carbono do que absorveu entre 2010 e 2018. Os cálculos do balanço de carbono foram feitos a partir de medições dos fluxos de CO2 realizadas por satélites. O estudo estimou que os setores de vegetação degradada, em geral vizinhos a áreas desflorestadas e a propriedades destinadas à agropecuária, emitiram quantidades significativas de carbono em relação às partes propriamente desmatadas. “A Amazônia brasileira como um todo perdeu parte de sua biomassa e, portanto, liberou carbono. Sabemos da importância do desmatamento para as mudanças climáticas globais”, disse, em comunicado de imprensa, Stephen Sitch, da Universidade de Exeter, no Reino Unido, um dos autores do trabalho. “Nosso estudo mostra como as emissões associadas a processos de degradação florestal podem ser ainda maiores. A degradação é uma ameaça generalizada à integridade futura da floresta e precisa ser pesquisada com urgência.”

Um artigo de 2015, que também ganhou as páginas da Nature, é uma referência obrigatória sobre o tema balanço de carbono na grande floresta tropical. Coordenado por pesquisadores da Universidade de Leeds, com a participação de brasileiros e colegas de outros países, o estudo sugere que a Amazônia vem perdendo progressivamente a capacidade de retirar carbono da atmosfera devido a um aumento de mais de um terço na mortalidade de árvores desde meados dos anos 1990. Além do desmatamento e da degradação da floresta, mudanças climáticas, tanto em nível local como global, estariam impulsionando esse fenômeno. O estudo em campo acompanhou por três décadas a evolução da biomassa (crescimento e diminuição do tamanho das árvores) em 321 parcelas da floresta.

O climatologista José Marengo, coordenador de pesquisa e desenvolvimento do Centro Nacional de Monitoramento de Desastres Naturais (Cemaden), elogia a importante contribuição científica do estudo. “Vários estudos indicam que o leste da Amazônia está se tornando mesmo uma fonte de carbono e outros trabalhos, inclusive nossos, mostram que o período de estiagem nessa parte da região está ficando mais quente e seco nas últimas décadas”, diz Marengo. “Isso não é bom para o balanço de carbono e aumenta o risco de secas e de incêndios.” No entanto, a Amazônia é uma região muito extensa e fazer generalizações para a toda a área é arriscado. Em simulações climáticas, alguns modelos apontam, por exemplo, que em setores do noroeste da Amazônia pode vir a chover ainda mais nas próximas décadas em razão das mudanças climáticas globais. Atualmente, a porção ocidental, que é mais preservada, é também mais úmida do que o setor oriental. Ali chove até mais de 3 mil mm por ano.

O aquecimento global é a faceta mais visível das mudanças climáticas. Mas isso não quer dizer que vai ficar mais quente todo o tempo e em todos os lugares. Em certas regiões, é possível até que esfrie em alguns períodos do ano. Mas a temperatura média do planeta vai se elevar rapidamente nas próximas décadas devido ao aumento da emissão de gases de efeito estufa, principalmente em razão da queima de combustíveis fósseis. “As pessoas têm de ter em mente que o aumento do aquecimento global induz as mudanças climáticas e leva à maior ocorrência de eventos extremos, que podem ser episódios muito intensos tanto de seca ou chuva como de calor ou de frio”, pondera Marengo. Nesse contexto, embora a Amazônia esteja se tornando mais quente e seca (e emitindo mais carbono) quando vista como um todo ou em sua porção mais a leste, não é paradoxal ter ocorrido a maior cheia em quase 120 anos do rio Negro em Manaus no fim de junho deste ano. Em razão de fortes chuvas, o leito do rio subiu 30 metros e afetou a vida de quase meio milhão de habitantes do estado. Mais ou menos no mesmo período, durante o verão no Canadá e no oeste dos Estados Unidos, em outra anomalia que parte dos cientistas atribui às mudanças climáticas, os termômetros marcaram temperaturas recordes acima de 50 ºC. Em julho, Alemanha, Bélgica e Países Baixos registraram a maior enchente dos últimos 100 anos, imputada também por alguns às mudanças climáticas.

Para o climatologista Scott Denning, da Universidade Estadual do Colorado, nos Estados Unidos, os resultados do estudo liderado pelos brasileiros na Nature coloca em dúvida a capacidade de longo prazo da floresta amazônica em sequestrar carbono da atmosfera e atuar como um importante contrapeso ao aquecimento global. “As observações contínuas feitas em quatro regiões da Amazônia por essa equipe representam um tipo de dado muito difícil de se obter e são um indício de que a condição de sumidouro de carbono da Amazônia está sendo ameaçada pela degradação da floresta e aquecimento do clima”, disse, em entrevista a Pesquisa FAPESP, Denning, que assina, também na Nature, um comentário sobre o artigo do grupo do Inpe. “O futuro da acumulação de carbono nas florestas tropicais sempre foi incerto. Os perfis atmosféricos obtidos por Gatti e seus colegas mostram que esse futuro incerto está ocorrendo agora.”

Projeto

Variação interanual do balanço de gases de efeito estufa na bacia amazônica e seus controles em um mundo sob aquecimento e mudanças climáticas – Carbam: Estudo de longo termo do balanço do carbono da Amazônia (nº 16/02018-2); Modalidade Projeto Temático; Programa Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais; Pesquisadora responsável Luciana Gatti (Inpe); Investimento R$ 4.436.420,43.

Artigos científicos

GATTI, L. V. et al. Amazonia as a carbon source linked to deforestation and climate change. Nature. 15 jul. 2021.
BERENGUER, E. et al. Tracking the impacts of El Niño drought and fire in human-modified Amazonian forests. PNAS. 27 jul. 2021.


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