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Como um produto fashion, a Revolução Grisalha foi incorporada ao universo da moda carregada de simbologias libertárias e conflituosas entre discursos de resistência e de permanência em padrões estereotipados de beleza

Por Ivanir Ferreira em Jornal da USP | “Que nada nos limite, que nada nos defina…Que a liberdade seja nossa própria substância, já que viver é ser livre.” A clássica frase de Simone de Beauvoir, filósofa francesa e ativista feminista que apregoa a liberdade de ser quem você quiser ser, abre uma dissertação de mestrado da USP que investiga como a moda se apropriou do movimento de resistência “Revolução Grisalha” como um produto fashion. Em sua pesquisa etnográfica  (estudo do comportamento, das crenças e costumes de uma comunidade), Bárbara Aires apontou que, nas últimas décadas, as mídias deram crescente espaço ao movimento, porém com conteúdos carregados de simbologias conflituosas, com embates entre os discursos de libertação dos padrões de beleza e a valorização de aparências femininas já tradicionalmente cultuadas, como a mulher magra, alta, branca e a “beleza juvenil”.

A pesquisa, apresentada ao Programa de Têxtil e Moda, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, se baseou na revisão de artigos científicos para identificar usos e significados dos termos “cabelo branco” e “grisalhos” em plataformas científicas; em discursos narrativos veiculados nas mídias televisivas e redes sociais; e na análise do conteúdo de 400 edições da revista Elle-Brasil, publicação internacional focada em moda, beleza, saúde, entretenimento. Elle é a maior publicação de moda de luxo do mundo e está presente em mais de 45 países. Temas como liberdades individuais, questões de gênero, feminismo e diversidade são frequentemente abordados em suas edições.

Dos 26 artigos científicos encontrados, apenas um tratou do tema de forma positiva, associando os termos ao movimento identitário feminino que busca romper padrões estabelecidos e normativos. Os demais relacionaram cabelos brancos à negação, decadência, perdas e estereótipos, relata Bárbara Aires, autora do estudo.

Ao analisar os discursos midiáticos televisivos e redes sociais, Bárbara Aires identificou que eles foram fundamentais para a consolidação do movimento, principalmente com a criação de sites e grupos de apoio em redes sociais. Nesses grupos, mulheres de diversas idades narram que estão assumindo os cabelos brancos e grisalhos, em nome da defesa de uma noção libertária e naturalista do processo de envelhecimento humano.

“Como movimento social, nas comunidades e páginas nas redes sociais, percebemos que o movimento Revolução Grisalha é heterogêneo e abrangente, abarcando mulheres de todos os perfis e raças: brancas, negras, orientais, magras, gordas, homo e heterossexuais”, diz.

O Diabo Veste Prada

A indústria cinematográfica e televisiva contribuiu para que o movimento ganhasse visibilidade e houvesse mais reflexão sobre envelhecimento feminino, liberdade e padrões estéticos. No filme O Diabo Veste Prada, de 2006, a protagonista Meryl Streep interpreta a editora de moda Miranda Priestly, com cabelos brancos. Segundo o estudo, Miranda é um personagem que rompe com o padrão estereotipado construído socialmente a respeito da velhice para as mulheres. Ela é a personificação do charme elegante e absolutamente anti-avó.

No Brasil, muitas atrizes e personalidades midiáticas também se conectaram com o movimento adotando publicamente os cabelos naturalmente embranquecidos: Sandra Annenberg, Glória Pires, Cássia Kiss, Fernanda Montenegro e Vera Holtz são algumas delas.

Homem grisalho é charmoso; mulher grisalha é desleixada

Parafraseando Simone de Beauvoir, Bárbara Aires relata que “os padrões de beleza são socialmente construídos e imperaram nos corpos femininos” e nesse contexto, “o cabelo branco e grisalho sempre esteve culturalmente associado a signos que remetem a velhice, decadência física e debilidade”. “O embranquecimento dos cabelos é uma prática quase que exclusivamente permitida aos homens que suscitam em sua aparência um charme ligado à maturidade, à experiência e à segurança afetiva. Já para as mulheres, os cabelos brancos e grisalhos são vistos como um sinal de desleixo, de uma velhice assexuada e desinteressante”, diz.

Segundo a pesquisadora, o movimento Revolução Grisalha se apresenta como uma forma de resistência a um modelo de dominação social e envolve a construção e ressignificação da aparência de mulheres que utilizam em suas narrativas identitárias o verbo assumir (e não adotar) quando se referem à adoção natural dos cabelos brancos e grisalhos. Para a professora da EACH Andrea Lopes, orientadora da pesquisa, “trata-se de uma temática de pesquisa original no Brasil” Apesar de recente, as problemáticas sociais em que o grupo de pesquisa e extensão Envelhecimento, Aparência e Significado (EAPS), da EACH se debruça são antigas, recorrentes e encontram na cultura brasileira celeiro fértil de experiências, tensões e conflitos a serem investigados. O tema do movimento da Revolução Grisalha no âmbito da moda é um deles”, diz ao Jornal da USP.

Revista Elle-Brasil

A pesquisadora explica que a revista Elle-Brasil foi escolhida como objeto de estudo pela sua abrangência de abordagem do universo da moda e pelo entendimento de que o setor de moda é um agente ativo no que diz respeito à compreensão das aparências contemporâneas femininas, de seus significados e desafios. Foram avaliadas a produção imagética (imagens e publicidade) e a textual (matérias internas e editoriais) da revista veiculadas ao longo de cinco décadas, desde a primeira edição, em maio de 1988, até setembro de 2021. Os filtros utilizados foram as palavras “cabelo (s) branco (s) grisalho(s)”, “fio(s) branco(s)”, “fio(s) grisalho (s)”, “revolução grisalha” e “poder grisalho”, “cabelo grisalho orgânico” e “cabelo artificialmente produzido”.

No total, foram levantadas imagens de 152 mulheres que apresentavam cabelo branco e grisalho orgânico (naturais) e 255 produzidos artificialmente (descolorido, matizado, com uso de peruca ou acessórios). Das 255 imagens de mulheres de cabelo produzido artificialmente, 220 eram brancos e 35 grisalhos.

As imagens  de mulheres de cabelo branco e grisalho orgânico foram encontradas na capa (1), nas publicidades (16), em matérias (128) e em editoriais de moda (7). As de cabelo branco ou grisalho produzido artificialmente foram encontradas na capa (6), editoriais (2), publicidades (23), matérias (142) e editoriais de moda (2).

Cabelos grisalhos e brancos como tendência da moda

Segundo o estudo, a moda se aproximou do movimento Revolução Grisalha, possivelmente, por identificar um mercado de tendência e de consumo relevante, passando a contratar modelos com esse perfil para desfiles e editoriais de moda. Diversas modelos nacionais e internacionais grisalhas estão transitando com maior frequência na indústria da moda, como é o caso da francesa Yasmina Rossi (65 anos), a americana Kristen McMenamy (56 anos) e a brasileira Rosa Saito (70 anos).

Bárbara Aires verificou que a Revolução Grisalha teve alcance progressivo e ascendente na indústria da moda, mas conviveu com tensões entre o que era produzido pelo conteúdo textual e de imagens e os anúncios publicitários. Nas décadas iniciais da revista, de 1980 a 1990, mulheres com cabelos brancos e grisalhos, seja de maneira natural ou produzida, foram inseridas aos poucos em suas edições.

Nos anos 2010, imagens e conteúdos textuais aparecem em diversas seções da revista legitimando a vertente defendida pela Revolução Grisalha, materialmente encarnada no chamado “look grisalho”.

Nos volumes analisados dos anos 2020, as mulheres com cabelo branco e grisalho passam a ser incorporadas no fluxo dos materiais veiculados não mais de forma tangencial, como no início da revista, mas já como detentoras de certo status identitário.

Produto fashion: tensão de aceitação e negação

Sobre as tensões e contradições verificadas nos conteúdos veiculados pela publicação, o estudo encontrou em uma mesma edição da revista matérias contendo mulheres de cabelo branco e grisalho orgânico e anúncios de tinturas de cabelos, reforçando um discurso negacionista com relação ao ato de deixar o cabelo naturalmente branco e sugerindo a necessidade de eles serem tingidos. A pesquisadora também observou que a inclusão da diversidade, com a valorização da mulher experiente na indústria da moda, não foi efetiva, uma vez que as mulheres idosas e de cabelo branco identificadas na capa, editoriais e em campanhas de moda eram brancas e magras, mantendo assim o padrão social de beleza tradicional.

Para a orientadora do trabalho, Andrea Lopes, nessa dinâmica de contradições, observou-se que houve a presença do cabelo branco no âmbito da moda, inclusive enquanto produto fashion, como bandeira de inclusão do envelhecimento e da velhice como debate contemporâneo. Porém, em sua opinião, é uma pauta cuja forma mantém-se marcadamente elitizada e cujo perfil já se conhece bem: de mulheres brancas, magras e altas. “E ainda, se possível, famosas e não muito velhas. Fluxos e refluxos da construção do imaginário em torno do feminino em meio a mercantilização e capitalização das aparências”, relata a professora.

Liberdade para escolhas individuais

Ao final, o estudo também propõe reflexões envolvendo contrapontos importantes como o de ter autonomia individual quanto à escolha da aparência dos cabelos e o fato de se tornar refém da força de novos padrões e estereótipos de beleza.

“Não basta apenas assumir os cabelos brancos em nome de se libertar da escravidão associada à tintura e aos padrões estéticos sociais. Outras práticas e camadas simbólicas, igualmente normatizadoras, surgem ao redor do próprio movimento, como o surgimento de marcas de cosméticos com linhas de produtos específicos para o cuidado para a saúde e beleza dos fios brancos.”

Bárbara Aires

Sobre os desdobramentos de seu trabalho, Bárbara Aires disse que, no meio acadêmico, pesquisas no tema são bastante incipientes e carentes de dados. E propõe novos estudos para se obter perspectivas mais completas em relação aos dados apresentados em seu mestrado.

A pesquisa Moda, aparência feminina e revolução grisalha foi apresentada na Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP no Programa de Pós-Graduação em Têxtil e Moda, com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

Transição dos cabelos veio junto com a transição de carreira

Kátia Treviso, 50 anos, gestora de comunidade no Facebook “As grisalhas assumidas e em transição”

Em 2019, aos 45 anos, Kátia foi demitida após 20 anos trabalho em uma multinacional, onde atuava como Gestora de Marketing e Vendas. “O processo para assumir os fios de cabelos brancos veio junto a um conjunto de transição de minha carreira”, conta ela. “Foi um processo de luto bastante difícil”.  Demorou mais ou menos um ano, mas depois desse período ela foi se organizando emocionalmente e se reposicionou. Passou  a trabalhar como consultora de empresas para melhorar seus processos comerciais, oferecendo treinamento em um canal do YouTube.

Em julho de 2021 foi a última vez que ela tingiu os cabelos, e lembra que encontrou apoio em uma amiga que tinha trabalhado com ela na multinacional e tinha deixado os cabelos grisalhos durante a gestação. A experiência da amiga a levou a ser gestora de uma comunidade muito atuante no Facebook,  As grisalhas assumidas e em transição. No grupo, ela foi aprendendo com as mulheres a lidar com os preconceitos e com a nova condição da estrutura capilar. “Eu também me beneficiei dos conhecimentos sobre  inteligência emocional que usava como ferramenta de trabalho para entender como eu me sentia e validar a minha escolha”, diz.

“Assumir os cabelos grisalhos significa liberdade para mim e a comunidade no Facebook foi fundamental nesse processo. Gosto de acompanhar os depoimentos das mulheres e entender como cada história se conecta com a minha. Em alguns momentos pensei em desistir, mas a comunidade me ajudou a seguir em frente”, relata Katia.

Ela diz que aprendeu que o preconceito externo só dói quando se tem resquícios dessas crenças dentro da gente. Passou a buscar imagens de mulheres bonitas, poderosas e grisalhas para mudar um conceito interno que ela tinha. “Esse reforço tem sido fundamental. Quando me olho no espelho, já não procuro traços de ‘feiura’ no envelhecer. Esse exercício diário tem me ajudado a aceitar não só a minha aparência, mas a acreditar que, aos 50 anos, tenho muita coisa ainda para construir e oferecer ao mundo”, conclui.

O grisalho como um processo de amadurecimento interno

Valéria Dias, 50 anos, jornalista

“A última vez que tingi os cabelos foi em março de 2020. Eu tinha acabado de romper um relacionamento de quase 11 anos e mudado de apartamento, quando veio a pandemia e o home office. Eu já achava lindas as mulheres grisalhas do Instagram e ficava pensando em como eu ficaria: bonita também ou ‘velha’, ‘feia’, ‘desleixada’? Com o isolamento social, eu comecei a repensar várias coisas da minha vida e fiz um mergulho interior profundo e difícil. Nesse processo, percebi que a opinião alheia não tinha a menor importância. A decisão de parar de pintar e deixar grisalho veio disso.

Os meses de transição, quando a raiz grisalha começa a ficar mais evidente, foram difíceis, porque o cabelo fica bem marcado. Mas eu sabia que seria complicado. Seguia no Instagram várias páginas e hashtags sobre o tema e isso me ajudou a enfrentar essa fase. Nesse período, nunca ouvi diretamente nenhum comentário maldoso. Já tinha pensado a respeito e, se ouvisse, a resposta seria: “Eu gosto assim, e isso não é da sua conta”. Meus pais, irmã e sobrinhos me apoiaram. Minha irmã, nove anos mais velha, decidiu deixar grisalho também. Mas meu principal suporte era eu mesma: eu me olhava no espelho e me apoiava, rs.

Atualmente a transição está completa. O mais interessante é que, no início, a gente não tem a menor ideia de como vai ficar. Completamente branco? Ou apenas uma mecha, como a Vampira, de X-Men? Minha irmã tem menos brancos do que eu. Costumo dizer que meu cabelo tem ‘luzes naturais’, porque os meus grisalhos estão naturalmente misturados aos fios castanhos. Na parte de trás, há pouquíssimos brancos, mas ao redor do rosto e no topo da cabeça tem bastante.  Me pergunto como estarão daqui a 10 anos.

Hoje eu me olho no espelho e vejo uma mulher de 50 anos com um cabelo grisalho lindíssimo. Muito melhor do que antes. Essa visão interna se reflete no externo: pessoas de todos os gêneros falam positivamente sobre os meus cabelos. Meus fios sempre foram cacheados, mas passei a fazer escova para deixá-los lisos e destacar os prateados. Também comecei a usar produtos específicos.

Acho quase impossível voltar a pintar. Mas não critico quem optou por manter a tintura. Meu processo foi difícil. Quando comecei, em março de 2020, estava muito decidida. Leio muito sobre feminismo e empoderamento feminino e acho que a principal lição que fica é: como mulheres, sempre seremos criticadas, sejamos grisalhas ou tingidas. Então é preciso olhar para dentro de si e respeitar os próprios sentimentos, sem se deixar levar por padrões impostos de beleza ou das expectativas de parceiros e familiares. E bancar essa decisão. Se a nossa verdade interna coincide com a deles, ótimo. Mas penso que não ouvir a própria voz é cometer uma autoagressão.”

Libertação de padrões que aprisonam

Salete Aires, 67 anos, administradora de bens imóveis

“Assumir os cabelos brancos representou uma conquista para minha autonomia por  ter me libertado de padrões que me pressionavam”, conta. Mas não foi sempre assim. Salete relata que passou por um processo difícil de transição. Em um determinado momento, desistiu e voltou a usar tonalizante em seus cabelos, já que ela tinha alergia a tinturas convencionais.  Foi muito criticada por amigos e familiares, mas disse que ela mesma não estava preparada para passar por tal processo. Com os cabelos brancos, ela se olhava para o espelho e se sentia triste e envelhecida.

Durante a pandemia de covid-19 em que foi preciso ficar mais reclusa, voltou a pensar em deixar os cabelos brancos, porém, desta vez estava mais determinada e certa do que queria. Recebeu apoio das filhas e do próprio cabelereiro. Seguiu em frente.

Hoje, sente que foi a melhor coisa que fez. Ela recebe elogios de pessoas de várias faixas etárias e gêneros. “A beleza que há em mim é a manifestação do que eu realmente sou e da minha aceitação. Isto me torna bela, leve e feliz”, diz.

Mais informações: Bárbara Santos Aires, e-mail barbara.aires@usp.br ba_aires@hotmail.com e Andrea Lopes, e-mail andrealopes@usp.br


Este texto foi originalmente publicado pelo Jornal da USP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.


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