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Livro “Banzeiro Òkòtó – Uma Viagem à Amazônia Centro do Mundo”, de Eliane Brum, entrevista moradores da Amazônia e relata as transformações dessa região

  • Por Matheus Lopes Quirino em Mongabay “Banzeiro Òkòtó – Uma Viagem à Amazônia Centro do Mundo” parte da vivência da jornalista em Altamira, no Pará, para onde se mudou em 2017.
  • Em entrevista à Mongabay, ela fala da violência que testemunhou contra os povos da floresta e da necessidade de “amazonizar-se” – colocar a Amazônia no centro do debate.

Quando Eliane Brum resolveu trocar São Paulo por Altamira, seu primeiro desafio foi achar uma casa. Em plena Floresta Amazônica, ela pelejou para achar um lugar que tinha quintal com árvores. Naquela cidade, os terrenos eram cimentados e qualquer resquício de floresta era rapidamente apagado. Na mentalidade da elite local, mato é sinônimo de atraso. Quando finalmente achou um lugar aceitável, outro desafio: minutos antes de fechar o contrato, descobriu que o dono do condomínio era o suposto mandante do assassinato da freira e ativista Dorothy Stang. Mais uma vez, outra casa frustrada pelo destino.

Hoje, Eliane Brum mora no meio do mato, em um lugar distante da cidade O processo de mudança foi um chamado da floresta, como ela mesmo diz, situando o leitor a partir de um lugar desconhecido para muitos: o banzeiro. “Banzeiro é como o povo do Xingu chama o território de brabeza do rio. É onde com sorte se pode passar, com azar não.”

Jornalista, escritora e ativista, Eliane Brum nasceu no Rio Grande do Sul, na pequena Ijuí, em 1966. Cobre a Floresta Amazônica desde a década de 1990. Em 2017, mudou-se para Altamira, no Pará, na outra ponta do país, numa virada radical de sua vida: precisava olhar a Amazônia de perto.

Seu livro, Banzeiro Òkòtó – Uma Viagem à Amazônia Centro do Mundo, é um retrato sobre Altamira, a região do Xingu, mas também sobre o Brasil. Eliane Brum percorre rios e floresta e entrevista beiradeiros, quilombolas, indígenas, grileiros, ativistas, intelectuais e outros tantos personagens que fazem parte da Terra do Meio, a Amazônia, constantemente ameaçada e palco de luta e resistência desde a colonização.

Mongabay: Eliane, nesse tempo de Altamira, qual foi a imagem mais impactante que você capturou com suas palavras?

Eliane Brum: Eu vi o que é ser um refugiado no próprio país, como o seu Otávio. Ele nasceu e viveu em uma ilha do Xingu e foi arrancado de lá. Todo o território que tinha restado de seu Otávio foi o seu próprio corpo, suas cicatrizes. Eu já tinha estado lá, em Belo Monte, e tinha ouvido falar como tinha sido terrível [o Massacre na penitenciária de Altamira, em 29 de julho de 2019], mas foi naquela cena que eu entendi o que era ser reduzido ao seu próprio corpo. Isso é diferente de outros refugiados, que deixam sua terra por guerras ou epidemias, ainda assim fica algo lá, mesmo que ruínas. Para o seu Otávio não, tudo virou água. Ele perdeu tudo assinando um papel que não era capaz de ler. Essas pessoas foram jogadas na cidade, como pobres urbanos.

Mongabay: Como está Altamira após Belo Monte, como você vê a transformação da cidade e de seus habitantes?

Eliane Brum: Altamira se tornou a cidade mais violenta, às vezes do país, às vezes da Amazônia. No começo de 2020, houve uma epidemia de suicídios em adolescentes. Isso foi desencadeado por essa desfiguração em Altamira. Os impactos estão só começando.

Mongabay: Em paralelo com a construção de Belo Monte, a violência em Altamira eclodiu. Muitos ativistas e lideranças foram mortos. Como lidar com esse medo?

Eliane Brum: Bem, agora, em novembro, as pessoas ameaçadas de morte já começam a se mover. As instituições que ainda funcionam começam a parar. Nesse ano, várias dessas lideranças que antes só saíam nessa época [final do ano] não conseguiram ficar nas suas comunidades. A base do Bolsonaro na Amazônia é forte, são grileiros, madeireiros. Esse ano foram muitas casas queimadas. O Erasmo, uma das pessoas que eu conto no livro, teve o filho Eduardo nascido no esconderijo. Nesse momento ele está escondido para não ser morto. A realidade está muito pior nesse ano, ano que vem talvez seja muito pior. Eu, como jornalista, tenho um risco, claro. Mas é infinitamente menor do que pessoas como Erasmo, como a Maria Leusa [Munduruku], os povos e lideranças da floresta que estão na mira da bala.

Mongabay: Sem contar os anônimos, não?

Eliane Brum: Tem muitas pessoas anônimas assassinadas, outras pessoas conhecidas que tiveram suas reputações rechaçadas. O Bolsonaro acelerou a destruição da floresta, e isso pode acontecer em anos. A última pesquisa da Nature mostrou que parte da Floresta Amazônica está emitindo mais CO2 que absorvendo. Como o [professor e ambientalista] Antônio Nobre fala há muitos anos, a gente precisa reflorestar a Amazônia.

Mongabay: Você fala no livro que precisamos nos “amazonizar”. De onde surgiu essa ideia?

Eliane Brum: É um termo muito utilizado pelos grupos aqui. Mudar seu jeito de viver nesse planeta. A gente está numa super emergência climática, e precisamos sair disso rápido. Isso significa amazonizar-se, deslocar os centros do mundo. Colocar a Amazônia no centro é mudar o pensamento que vai liderar o processo, aqueles que há milênios vivem na natureza sem destruir a natureza. Não dá para olhar para a Amazônia, para as queimadas e pensar que é algo longe. O primeiro passo é se perceber conectado, a gente está em um momento limite e tem que fazer o que a gente não sabe, junto com os outros. São coisas concretas, como por exemplo lutar para o Bolsonaro sair. Isso é bem concreto.

Mongabay: Agora em setembro, você foi a juíza no Tribunal Permanente dos Povos. Como foi a dinâmica e quais são as metas desse tribunal?

Eliane Brum: Esse processo do Tribunal dos Povos julga o que não está sendo julgado nos países. Esse tribunal vai durar um ano e vão ser ouvidas pessoas de diferentes biomas. Funciona como se fosse um tribunal normal, a gente vai ouvir as pessoas, as denúncias. A Amazônia tem visibilidade, mas o foco é o Cerrado. Existe essa imagem de que o Cerrado é um bioma pobre que pode ser destruído, virar soja, virar gado. No Cerrado estão nascentes estratégicas. O Cerrado ainda sofre o efeito dessa propaganda. Na Amazônia, tem-se um consenso pela estratégia do clima, o Cerrado precisa ser compreendido. Com o tribunal pessoas podem aprender muito sobre o Cerrado, e dar a ele essa visibilidade que ele não tem.

Mongabay: No início do livro, você desvenda o mito de que a Amazônia era uma terra virgem. Por que esse termo é tão errôneo e ainda repercutido?

Eliane Brum: A gente não entende a destruição da Amazônia sem entender que toda sua destruição é atravessada por questões de raça, gênero, espécie e classe. E o Bolsonaro leva isso à literalidade quando ele fala que a Amazônia é a virgem que todo gringo quer, algo assim. A Amazônia foi vista por todos os governos, mesmo os da democratização, como um corpo da exploração. O governo age como um colonizador, vem pra cá para explorar esse corpo. E suas pessoas. A gente precisa entender que não são todos os humanos que são destruidores, é uma parte que destrói. Os ancestrais dos atuais povos indígenas plantaram parte da floresta. Essa também é uma floresta cultural.

Imagem do banner: Campo de soja e floresta de transição na Amazônia. Foto: Rhett A. Butler/Mongabay.Matéria publicada por Xavier Bartaburu

Este texto foi originalmente publicado por Mongabay de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original.


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