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País tem mais de 20 mil cavernas, com formações incríveis e centenas de espécies ainda não descritas pela ciência. Mudanças na legislação ambiental preocupam pesquisadores

Um dos tesouros mais desconhecidos da biodiversidade brasileira está escondido, literalmente, debaixo da terra. Pouca gente sabe disso, mas permeando as entranhas subterrâneas da Amazônia, do Cerrado e de todos os grandes biomas nacionais existe um universo oculto de milhares de cavernas, habitadas por centenas de espécies únicas na natureza e centenas de milhares de anos de história petrificada do clima e da vida no planeta. São mais de 20 mil cavernas já catalogadas em território brasileiro — de um total que, segundo alguns especialistas, pode chegar a 300 mil. E esse tesouro subterrâneo pode estar ameaçado, alertam os pesquisadores, por conta de alterações na legislação ambiental. 

A maior parte dessas grutas foi descoberta apenas recentemente. Até 2009, pouco mais de 6 mil cavernas eram conhecidas no País; desde então esse número aumentou 235%, e não para de subir. O principal “culpado” por isso é um decreto publicado em novembro de 2008 (Decreto 6640), que criou uma nova classificação de cavernas e passou a exigir o licenciamento ambiental de atividades potencialmente impactantes a elas, como empreendimentos agrícolas, minerários e obras de infraestrutura. Nesse processo de licenciamento, que passou a ser obrigatório, muitas novas grutas acabaram sendo descobertas. E, junto com elas, centenas de novas espécies cavernícolas — incluindo peixes, crustáceos, aracnídeos e uma diversidade de outros invertebrados —, além de um sem-número de paisagens, rios subterrâneos, cachoeiras, salões grandiosos, adornados com espeleotemas fantásticos, e outras formações geológicas de tirar o fôlego.

“Um mundo invisível”, nas palavras do geólogo Francisco William da Cruz Junior — mais conhecido como Chico Bill —, professor do Instituto de Geociências (IGc) da USP e um dos muitos pesquisadores empenhados em divulgar 2021 como o Ano Internacional das Cavernas e do Carste, organizado pela União Internacional de Espeleologia e apoiado localmente pela Sociedade Brasileira de Espeleologia (SBE).

A quantidade de novidades é tão grande que os cientistas mal dão conta de processar tanta informação. Até o momento, são conhecidas cerca de 250 espécies de animais que vivem exclusivamente dentro de cavernas (chamados de troglóbios), segundo um levantamento inédito (ainda não publicado) conduzido pelos pesquisadores Jonas Gallão e Maria Elina Bichuette, do Laboratório de Estudos Subterrâneos da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). “A maioria dos troglóbios é endêmica”, ou seja, são animais que só existem dentro de uma única gruta ou um único sistema de cavernas, explica Maria Elina, que é formada pela USP e também orienta alunos de pós-graduação no campus de Ribeirão Preto da USP.

Esse é o número de espécies formalmente descritas pela ciência — com nome, RG e comprovante de residência, digamos assim —; mas o número “real” de troglóbios que habitam a escuridão das cavernas brasileiras é certamente muito maior. Pesquisadores calculam que o número de espécies novas já coletadas, mas ainda não oficialmente descritas, pode chegar a 1 mil. “A cada nova expedição que fazemos, novas espécies vêm à tona. A fila de descrição é gigantesca”, diz o pesquisador Rodrigo Lopes Ferreira — mais conhecido como Drops —, do Setor de Biodiversidade Subterrânea da Universidade Federal de Lavras.

Maria Elina é mais conservadora e calcula que o número esteja em torno de 500 — ainda assim, uma quantidade enorme. Isso, considerando apenas os bichos já coletados em expedições passadas, que os biólogos conseguem pegar na mão, olhar debaixo de uma lupa e inferir que se trata (provavelmente) de uma espécie nova. Sem contar, portanto, as inúmeras espécies desconhecidas que devem existir nas profundezas subterrâneas das milhares de cavernas que ainda estão para ser descobertas no Brasil. Fazendo uma conta simples, se a estimativa de 300 mil cavernas estiver correta e apenas 1% dessas grutas abrigarem um troglóbio endêmico, já serão 3 mil espécies novas para a ciência.

A fila de espera deve-se, principalmente, ao pequeno número de taxonomistas (cientistas especializados na descrição e classificação de espécies) com expertise nesses grupos mais peculiares de animais cavernícolas.

Troglóbio significa vida (bio) em cavernas (troglo). São bichos muito peculiares, com características morfológicas e fisiológicas altamente especializadas para a vida no meio subterrâneo. Os exemplos mais comuns são redução ou ausência de pigmentação e de estruturas oculares (já que não precisam produzir melanina nem enxergar), alongamento de apêndices (como pernas ou pinças) e aumento de estruturas sensoriais (como antenas ou bigodes), que eles utilizam para detectar alimentos e encontrar seu caminho na escuridão. A maioria pertence ao grupo dos invertebrados, como aranhas, escorpiões, besouros, lacraias e caranguejos. Entre os vertebrados, só mesmo os peixes, como o bagre-cego de Iporanga (Pimelodella kronei), de 20 centímetros, que é endêmico das cavernas do Vale do Alto Ribeira, em São Paulo. É um peixe cego e carnívoro, que se alimenta de pequenos invertebrados aquáticos e baratas ou grilos, que porventura caem em suas águas geladas.

Além dos troglóbios, que são exclusivamente subterrâneos, há os organismos troglófilos, que podem viver tanto dentro quanto fora das cavernas (como algumas espécies de grilos e aranhas), e os troglóxenos, que habitam as cavernas, mas precisam sair delas em algum momento para completar seu ciclo de vida. Desse último grupo, o exemplo mais clássico são os morcegos cavernícolas, que dormem no teto de cavidades subterrâneas, mas precisam sair delas diariamente para se alimentar de frutos ou insetos — e, ao fazer isso, prestam um serviço ecológico importantíssimo para a dispersão de sementes na natureza e o controle de pragas agrícolas e urbanas. São eles, também, os principais importadores de matéria orgânica para o interior das cavernas, por meio das suas fezes (o famoso guano), que serve de alimento para muitos dos invertebrados que ali habitam.

Nesse sentido, as cavernas são essenciais para muitos morcegos, assim como os morcegos são essenciais para muitas cavernas. Uma caverna no Tocantins, chamada Gruta dos Moura, chega a abrigar 26 espécies desses mamíferos voadores — um recorde mundial. “São mais espécies de morcegos numa única caverna do que em vários países do mundo”, compara o biólogo Enrico Bernard, especialista em morcegos e coordenador do Laboratório de Ciência Aplicada à Conservação da Biodiversidade, da Universidade Federal de Pernambuco. Na Caatinga e no norte da Amazônia, segundo ele, há grutas com populações gigantescas, de até 150 mil morcegos.

“As cavernas são consideradas uma das últimas fronteiras de pesquisa biológica no mundo”, assim como o dossel das florestas tropicais e as profundezas do oceano, afirma Bernard. “São hotspots para a descoberta de espécies.”

Das sete espécies de morcegos consideradas ameaçadas de extinção no Brasil, quatro são cavernícolas, e estão ameaçadas justamente por conta da perda de cavernas que elas dependem para sobreviver, segundo o pesquisador.

Desde 2008, segundo o Decreto 6.640, a presença de espécies endêmicas ou ameaçadas de extinção é um dos critérios usados para designar cavernas como de “relevância máxima”, que é a única categoria com garantia legal de preservação no Brasil atualmente. “A cavidade natural subterrânea com grau de relevância máximo e sua área de influência não podem ser objeto de impactos negativos irreversíveis, sendo que sua utilização deve fazer-se somente dentro de condições que assegurem sua integridade física e a manutenção do seu equilíbrio ecológico”, diz o Artigo 13 do decreto. Já as cavernas classificadas como de relevância alta, média ou baixa “poderão ser objeto de impactos negativos irreversíveis, mediante licenciamento ambiental”.

Se, por um lado, a exigência de licenciamento proporcionou um boom na descoberta e no estudo de cavernas desde 2008, por outro, o decreto abriu brechas para a destruição desses ambientes. Até então, pela redação original do Decreto 99.556, de 1990, todas as cavernas gozavam de proteção integral, e só podiam ser utilizadas “dentro de condições que assegurem sua integridade física e a manutenção do respectivo equilíbrio ecológico”.

“O número de cavernas conhecidas está diretamente associado à pressão econômica para utilização dessas cavernas”, destrincha o espeleólogo Cruz Junior, da USP. “Conhecemos mais cavernas nos últimos anos não graças a um investimento em ciência, mas porque o setor que quer detonar essas cavernas é obrigado a fazer o licenciamento”, acrescenta Bernard.

Novas ameaças

Aos trancos e barrancos, os cientistas até que vinham convivendo de forma pacífica com o novo decreto — aproveitando o que ele tinha de melhor e evitando o que ele tinha de pior a oferecer. Novas tentativas de alterar essa legislação, porém, fizeram ecoar de novo o medo de uma ameaça às cavernas brasileiras na comunidade científica. “Com tanta boiada passando, é claro que as cavernas não ficariam incólumes”, diz o biólogo Rafael Ferreira, doutorando da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Rio Claro e segundo secretário da Sociedade Brasileira de Espeleologia (SBE).

“Mais do que nunca, as cavernas estão sob forte ameaça”, diz o geógrafo Allan Calux, presidente da SBE. O primeiro alarme soou em 2019, quando o Ministério das Minas e Energia propôs uma nova redação para o Decreto 6.640, abrindo a possibilidade de que mesmo as cavernas de relevância máxima “pudessem ser impactadas ou mesmo destruídas”, segundo pesquisadores relatam em um artigo publicado em junho, no site de notícias Mongabay. A proposta, segundo eles, recebeu parecer favorável da Advocacia Geral da União e foi encaminhada ao Ministério do Meio Ambiente, mas ainda não foi efetivada. 

O segundo alerta veio com o projeto de lei que flexibiliza, radicalmente, as regras de licenciamento ambiental no País. Aprovado em maio deste ano na Câmara dos Deputados, e agora aguardando apreciação pelo Senado Federal, o PL 3729 isenta diversas atividades — incluindo a agropecuária — do licenciamento ambiental, e ainda cria uma nova modalidade de “autolicenciamento”, em que empreendimentos são autorizados a emitir suas próprias licenças — inclusive para a instalação de barragens de rejeitos minerários. Some-se a isso o enfraquecimento dos órgãos de controle federais, como Ibama e ICMBio, e a equação de ameaças está montada. “Tudo é possível agora nesse novo cenário”, avalia Calux.

Apesar do PL 3.729 não mencionar diretamente as cavernas, a flexibilização do licenciamento pode trazer consequências graves para elas, alertam os cientistas. Isso porque as cavernas podem ser escuras e profundas, mas não estão isoladas do que acontece na superfície. Pelo contrário: “Se você destrói o ambiente externo, isso chega lá dentro também”, afirma Ferreira. Em especial, por meio dos rios, que são como as artérias das cavernas. Se empreendimentos na superfície assoreiam os rios ou poluem a água que corre para dentro das grutas, a vida subterrânea será diretamente afetada por isso. E como o ambiente dentro das cavernas costuma ser bastante estável, qualquer pequena alteração pode ter consequências muito significativas — talvez até inviabilizando a sobrevivência de alguns organismos.

“A caverna é muito dependente do seu entorno; a maior parte do alimento vem de fora dela”, explica Maria Elina. Se as florestas que os morcegos utilizam para se alimentar são derrubadas, e os morcegos desaparecerem, por exemplo, todos os organismos que dependem da matéria orgânica que eles trazem para dentro da caverna morrerão de fome.

“Você pode extinguir uma espécie cavernícola sem nem encostar na caverna”, sentencia Ferreira. Ou, quem sabe, com o tal do autolicenciamento, ignorar a existência ou até soterrar cavernas inteiras, sem as devidas precauções. “Flexibilizar o licenciamento é liberar a destruição de cavernas que nem tivemos a chance de conhecer”, alerta Cruz Junior. Remetendo à sua fala anterior, seria como transformar o “mundo invisível” num fantasma.

Diversidade geológica

Como é possível haver tantas cavernas desconhecidas — ou não cadastradas — no Brasil? A estimativa de 300 mil cavernas possíveis no País é dos pesquisadores Jocy Brandão Cruz e Luís Piló, no guia Espeleologia e Licenciamento Ambientalpublicado em 2019 pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Ela leva em conta a extensão das formações geológicas em que predominam rochas solúveis, propícias à formação de cavernas — chamadas de paisagens cársticas, ou simplesmente carste —, e faz uma extrapolação, com base no número de cavernas já conhecidas para cada tipo de relevo.

“Parece seguro afirmar que, hoje, menos de 5% das cavernas existentes tenham sido identificadas”, escrevem Piló e o espeleólogo Augusto Auler no Capítulo 1 do guia. “Nosso potencial espeleológico situa-se seguramente na faixa de algumas centenas de milhares de cavernas. Apenas a título comparativo, em países mais desenvolvidos na identificação e exploração de cavernas, como Itália e França, com áreas equivalentes ao Estado de Minas Gerais, cerca de 40 mil cavernas são conhecidas. A ausência de pesquisa, o pequeno número de espeleólogos, as dificuldades de acesso, dentre outros motivos, justificam o reduzido conhecimento que ainda temos do potencial espeleológico brasileiro.”

É perfeitamente possível, segundo os espeleólogos, que haja cavernas imensas escondidas por aí no subterrâneo brasileiro, esperando para serem descobertas. Grandes cavernas não têm necessariamente grandes portais; elas podem ter entradas singelas ou camufladas em áreas de difícil acesso. Só mesmo se aventurando dentro delas para saber. Son Doong, a maior caverna do mundo em volume (com 38,5 milhões de metros cúbicos), no Vietnã, só foi descoberta por pesquisadores em 2009, por exemplo. A maior caverna do Brasil é a Toca da Boa Vista, em Campo Formoso, no sertão da Bahia, com 114 km de galerias mapeadas, e sua verdadeira extensão só começou a ser iluminada cientificamente no fim dos anos 1980 — apesar de a sua entrada já ser conhecida pela população local há bastante tempo.

A diversidade biológica não é a única coisa que chama a atenção nas cavernas brasileiras. Existe, também, uma incrível diversidade geológica a ser admirada e estudada. As mais comuns são as cavernas em calcário, que é uma rocha abundante e altamente solúvel em água; mas há também cavernas formadas em vários outros tipos de rochas, como quartzito e arenito, cada uma com características próprias. Uma peculiaridade do Brasil, que emergiu nos últimos anos, é o grande número de cavernas de ferro — principalmente na região de Carajás (PA), que é a maior produtora de minério de ferro do País.

Preservados nessas rochas estão milhares de anos de história da geologia e do clima dessas regiões, que os cientistas conseguem “ler” por meio dos elementos químicos que são depositados pela água no processo de formação dos espeleotemas (estalactites e estalagmites). São testemunhos de rocha que guardam informações sobre como eram o clima e o ambiente ao redor dessas cavernas no momento em que foram formados, tal qual os testemunhos de gelo extraídos de geleiras. “Cada estalagmite é um patrimônio natural de informações do passado”, afirma Cruz Junior, especialista no assunto. Informações que, segundo ele, são essenciais para entender o que pode acontecer no futuro.

O mesmo vale para os vestígios fósseis e arqueológicos, comumente preservados em cavernas — já que elas, historicamente, sempre foram um local de abrigo para seres humanos e outros animais. A Serra da Capivara, no Piauí, por exemplo, abriga alguns dos vestígios mais antigos de ocupação humana nas Américas; assim como as cavernas da região de Lagoa Santa, em Minas Gerais, onde viveu o chamado “povo de Luzia”.

“Temos um baita patrimônio espeleológico no Brasil”, diz o explorador, fotógrafo e divulgador científico de cavernas Daniel Menin, cujas imagens ilustram esta reportagem. Um mundo invisível, que precisa se tornar visível para ser preservado.

Correção (19/07/21): A citação retirada do Capítulo 1 do guia “Espeleologia e Licenciamento Ambiental” é de autoria de Luís Piló e Augusto Auler; não Piló e Brandão, como citado originalmente.


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