Loja
Apoio: Roche

Saiba onde descartar seus resíduos

Verifique o campo
Inserir um CEP válido
Verifique o campo

Pesquisa realizada com professores que atuaram num projeto de extensão em uma escola de ensino fundamental mostra que o letramento racial de educadores pode ajudar no combate à discriminação

Por Antonio Carlos Quinto em Jornal da USP | Segundo dados do Censo 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mais de 50% da população brasileira se autodeclara negra. E nessa maioria há pessoas mestiças, de pele nem tão preta. “São aquelas que se autodeclaram pardas, nas quais a mestiçagem se mostra mais evidente”, diz a educadora Janaína Ribeiro Bueno Bastos, autora de uma tese de doutorado, defendida na Faculdade de Educação (FE) da USP, em que analisa a questão racial brasileira, as ideologias de branqueamento e a “trama que envolve a mestiçagem no Brasil”. A pesquisa intitulada Na trama da branquitude mestiça: a formação de professores à luz do letramento racial e os meandros da branquitude brasileira teve a orientação da professora Mônica Guimarães Teixeira do Amaral, da FE.

O objetivo principal da pesquisa, segundo Janaína, foi investigar a branquitude brasileira e os lugares de privilégios que as pessoas não negras – brancas e “mestiças”, estas últimas por vezes percebidas como brancas − acabam ocupando. “O que denomino privilégios são algumas concessões dadas às pessoas percebidas como brancas, ou como quase brancas, de pele nem tão preta, mesmo que de forma implícita. Posso citar como exemplo algumas situações em que o preconceito e discriminação no tratamento aos negros deixam de existir para estas pessoas”, descreve Janaina. “Se uma ou mais pessoas negras, passeando num shopping luxuoso, podem chamar a atenção de forma negativa, isso pode não ocorrer com as pessoas não negras, aquelas de pele mais clara, mas que não chegam a ser, de fato, sempre percebidas como brancas”, exemplifica a educadora ao Jornal da USP. Para ela, são aspectos subjetivos, mas que acontecem e caracterizam o racismo e a discriminação.

Durante o processo, professores que desenvolveram o letramento racial passaram a melhor perceber como a questão da discriminação racial ocorre no dia a dia

De acordo com Janaína, sua pesquisa trata de algumas especificidades da “branquitude brasileira” e seus discursos, que precisam ser rompidos no âmbito da formação escolar e de professores. E foi por esse motivo, principalmente, que o seu estudo de doutorado usou como metodologia a pesquisa-ação. Assim, foi desenvolvido um projeto de extensão com oito discentes da licenciatura do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP), campus São Roque, que atuaram como docentes num projeto de extensão de uma escola pública de ensino fundamental, localizada na periferia daquele município. Lá, durante dois anos, os professores realizaram junto a alunos do ensino fundamental, com idades entre 12 e 15 anos, oficinas de hip-hop e ciências. “Isso tudo visando a valorização do pertencimento étnico-racial dos alunos”, conta Janaína.

Durante dois anos, os oito docentes foram acompanhados por Janaína, por meio de reuniões semanais em que eram discutidas questões étnico-raciais. “Durante o processo, professores que desenvolveram o letramento racial passaram a melhor perceber como a questão da discriminação racial ocorre no dia a dia”, descreve. Na opinião de Janaína, esse letramento é importante para todas as raças e os docentes puderam transmitir aos alunos referências negras positivas. “Os estudantes passaram a perceber que não precisariam ‘embranquecer’ para ter dignidade”, destaca a educadora.

Por meio de oficinas e filmes, foi possível perceber mudanças nos professores. Inclusive, nas formas de discurso. “No início, eles tinham dificuldade até em falar a palavra “negro”’. Houve até o caso de um professor que se autodeclarava branco e que, tempos depois, já se dizia pardo. Enfim, os docentes passaram a ter o hábito de falar sobre o assunto. Até mesmo os professores autodeclarados brancos perderam o medo de abordar a questão”, lembra Janaína.

Já os docentes pardos, que se viam como negros, que segundo a pesquisadora traziam consigo um sentimento de raiva sobre as questões de discriminação racial, passaram a “elaborar essas questões”. “A raiva e a revolta deram lugar à capacidade de falar”, destaca Janaína.

Existe uma pressão implícita para que o indivíduo se autodeclare branco ou negro. Contudo, um mesmo sujeito pode ser percebido como branco em um lugar, e como negro em outro. E, claro, se o mesmo for percebido como branco, poderá ter alguns privilégios. E o embranquecimento permite isso

Dentre os oito professores participantes do projeto de extensão, quatro se autodeclararam brancos e outros quatro pardos. Após as reuniões e a realização de todas as atividades, um dos docentes que se autodeclarou branco passou a se autodeclarar pardo. “Entre os autodeclarados pardos, dois tinham incerteza de serem negros ou não. Por outro lado, os demais, apesar de se declararem pardos, tendiam a ser percebidos como brancos em alguns espaços, o que demonstra a complexidade da questão racial brasileira, no que se refere à concessão de privilégios e desvantagens”, conta a pesquisadora.

Compreendendo a “branquitude”

De acordo com Janaína, sua pesquisa foi realizada com base, principalmente, nos estudos brasileiros sobre a questão racial, para compreender a questão da branquitude. “A principal referência com relação a esse tema é norte-americana. Há estudos aqui no Brasil, mas lá nos EUA a construção sobre essa temática é diferente da nossa. Quando pesquisadores brasileiros buscam estudar a questão da branquitude, certamente, consideram os estudos norte-americanos”, descreve a educadora.

Segundo Janaína, há no Brasil uma tendência de polarização entre ser branco ou negro, o que não favorece a discussão do tema. “Existe uma pressão implícita para que o indivíduo se autodeclare branco ou negro. Contudo, um mesmo sujeito pode ser percebido como branco em um lugar, e como negro em outro. E, claro, se o mesmo for percebido como branco, poderá ter alguns privilégios. E o embranquecimento permite isso”, analisa.

Dentre as diversas conclusões a que chegou Janaína, uma das que mais chama a atenção é que tanto os docentes quanto os alunos passaram a ter um outro olhar sobre a questão da discriminação racial após o período de atividades

A pesquisadora explica que “de forma geral, os estudos americanos indicam que a branquitude seria a experiência de poder e vantagens que o indivíduo branco vivencia. Porém, a análise de como esse fenômeno ocorre no Brasil precisa considerar a nossa realidade, tendo em vista que a própria classificação de branco empregada na sociedade brasileira apresenta uma complexidade que difere muito da empregada nos EUA. E é a análise da realidade que nos auxiliará a identificar o problema como realmente ocorre para, a partir daí, termos condições de pensar em soluções”.

Diluindo identidades

Dentre as diversas conclusões a que chegou Janaína, uma das que mais chama a atenção é que tanto os docentes quanto os alunos passaram a ter um outro olhar sobre a questão da discriminação racial após o período de atividades.

Com o letramento, os professores conseguiram transmitir aos estudantes a ideia de que não precisariam embranquecer para serem reconhecidos. “Alguns alunos diziam claramente que gostariam de ser cientistas, por exemplo”. Na opinião da educadora, existe uma tentativa de se polarizar a questão. “Aliás, essa pressão parte de nossa sociedade, pois há uma espécie de imaginário que o embranquecimento pode trazer uma forma de poder às pessoas”, analisa. Para Janaína, a mestiçagem e o branqueamento acabaram “diluindo identidades” no Brasil, e está ocorrendo um processo que visa resgatá-las, contudo, pela via da polarização, na qual o sujeito tem que optar entre ser branco ou negro, o que nem sempre corresponde à realidade do indivíduo.

A educadora acredita que o trabalho de pesquisa-ação realizado mostra que, com o diálogo constante e aberto sobre o tema, as pressões para o embranquecimento e polarização tendem a se reduzir. “O diálogo é o melhor caminho para o letramento racial”, constata Janaína.


Este texto foi originalmente publicado pelo Jornal da USP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.


Utilizamos cookies para oferecer uma melhor experiência de navegação. Ao navegar pelo site você concorda com o uso dos mesmos. Saiba mais