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Orquídeas e pererecas rejeitam parceiros do continente, indicando como o isolamento geográfico abre caminhos evolutivos distintos

Gilberto Stam em Revista Pesquisa FAPESP – Caso recebesse a visita de um macho da ilha da Gipoia, na baía de Angra dos Reis, no estado do Rio de Janeiro, uma fêmea da perereca-verde-do-litoral (Boana albomarginata) do continente talvez se impressionasse com seu vozeirão. O canto na frequência de um barítono é de um varão grande e forte, capaz de expulsar rivais que invadam seu território e afugentem as parceiras com as quais poderiam se acasalar.

Na hora da corte, porém, é provável que a fêmea se assustasse com seu corpanzil e fugisse. Os machos do continente são menores que as fêmeas, mas os das ilhas são do mesmo tamanho. Na prática, essa diferença pode dificultar o perfeito pareamento das cloacas durante a fertilização dos óvulos.

Já as orquídeas-da-praia (Epidendrum fulgens) da ilha de Alcatrazes, a 35 quilômetros do litoral norte paulista, são idênticas às do continente, com flores que variam do amarelo ao vermelho-escuro. Mesmo assim, caso cruzassem, as sementes seriam em grande parte inviáveis. Diferenças genéticas nas populações da ilha e do continente tornaram o pólen, estrutura reprodutora masculina, e o óvulo incompatíveis.

“As ilhas brasileiras, especialmente as mais próximas do litoral, geralmente são vistas como ambientes com poucas espécies únicas, chamadas endêmicas”, explica o biólogo Fábio Pinheiro, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), coordenador de um estudo sobre a orquídea-da-praia publicado na revista Plant Systematics and Evolution em abril. “Mas achados como esses indicam que populações insulares com indivíduos iguais ou parecidos aos do continente podem ser espécies novas ou estar caminhando para isso.”

Pinheiro e sua equipe induziram o cruzamento de plantas da ilha e do continente para ver se eram compatíveis. Como resultado, o número de sementes viáveis foi, em média, 35% menor do que o obtido nos cruzamentos com plantas só do continente. Essa redução já tornaria praticamente inviável a sobrevivência dos descendentes. Em alguns casos, o cruzamento não gerou nenhuma semente viável. “É provável que a orquídea-da-praia de Alcatrazes já seja uma espécie nova”, diz Pinheiro.

“Em animais, é mais difícil fazer experimentos para verificar se existe uma barreira reprodutiva porque eles ficam estressados em cativeiro e não se reproduzem”, diz o biólogo Raoni Rebouças, também da Unicamp. Ele é o primeiro autor de um artigo publicado na revista Journal of Zoology, em maio de 2020, que analisa modificações no corpo e no comportamento da perereca-verde-do-litoral em três ilhas do litoral fluminense. “As modificações que observamos já indicam a possível formação de novas espécies.” Rebouças coordenou a produção do Blues do sapo gigante, um vídeo divertido explicando essas diferenças.

“O corpo maior pode ser resultado da disputa intensa por território nas ilhas, que selecionou os mais robustos”, cogita Rebouças. Segundo ele, no continente, quando há conflitos, machos menores – em média com 3,8 centímetros (cm) – têm espaço para fugir e se alojam em poças. Na ilha, com menos espaço, os machos pequenos se reproduzem menos porque as fêmeas escolhem os grandes, em média com 5,4 cm.

“O isolamento de populações pode provocar transformação nos organismos e induzir a formação de novas espécies, que se dá em milhares de anos e em locais específicos”, comenta o biólogo Yuri Leite, da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes, ver box). “Animais e plantas podem se diferenciar ainda mais depois de milhões de anos e com a migração em escala continental.”

Efeitos da separação

Ilhas distantes do continente ficaram conhecidas por suas espécies exclusivas. O exemplo clássico é o arquipélago de Galápagos, formado por atividade vulcânica há cerca de 3 milhões de anos, com 13 ilhas maiores, seis menores e dezenas de ilhotas e rochedos, a mil quilômetros (km) da costa do Equador. O naturalista inglês Charles Darwin (1809-1892) esteve lá em 1835 e usou o que viu para formular a teoria da evolução, um dos pilares da biologia.

Plantas e animais que lá chegaram tiveram tempo de se diferenciar e originar seres únicos, como as iguanas, as tartarugas-de-galápagos e os tentilhões, aves com bicos adaptados a alimentos de cada uma das ilhas, que Darwin apresentou como exemplo de seleção natural. As serpentes de Galápagos viveram um processo similar.

As ilhas mais próximas da costa brasileira têm uma história diferente. Há cerca de 21 mil anos, o nível do mar, 120 metros mais baixo do que o atual, deixava exposta grande parte da plataforma continental, uma região plana com cerca de 80 km de largura que contorna a costa. Hoje submersa, essa área era coberta por Mata Atlântica, um tapetão verde que se espraiava até o oceano. Quando o nível do mar começou a subir, as regiões mais baixas foram cobertas de água e os morros formaram ilhas.

Como a flora e a fauna das ilhas são as mesmas do continente, elas não eram vistas como locais de grande biodiversidade. Para Pinheiro, essa visão pode mudar conforme novos estudos revelem mais espécies em diferenciação. Desde que se separou do continente, há cerca de 11 mil anos, a orquídea de Alcatrazes sofreu mutações genéticas que formaram uma barreira reprodutiva com as populações do continente.

“No caso das pererecas, quanto maior o tempo de separação, maior o tamanho do corpo”, explica o biólogo Luís Felipe Toledo, da Unicamp, coordenador do trabalho sobre as pererecas. Os animais dessa espécie são maiores na ilha da Gipoia, isolada há 10 mil anos. Os tamanhos intermediários são encontrados em Marambaia, formada há 8 mil anos. E bichos do mesmo tamanho do continente vivem em Itacuruçá, de apenas 3 mil anos.

Pinheiro observa que essas ilhas ficam mais próximas do continente do que Alcatrazes — Itacuruçá, por exemplo, fica a apenas 300 metros —, indicando que mesmo isolamentos geográficos pequenos, mas intransponíveis (pererecas morrem na água salgada), são capazes de iniciar a diferenciação de populações de plantas ou animais da mesma espécie.

Relacionamento aberto

Em meados do século passado, dois zoólogos, o alemão Ernst Mayr (1904-2005) e o russo Theodosius Dobzhansky (1900-1975), definiram espécie como um conjunto de indivíduos que não produzem descendentes férteis com outras espécies — ou seja, os grupos seriam isolados por uma barreira reprodutiva. Mas os biólogos perceberam que não é bem assim que as coisas funcionam na natureza.

O exemplo mais emblemático é a identificação de genes de neandertais (Homo neanderthalensis) em Homo sapiens, que indicam hibridização ou mistura entre hominídeos extintos e o ser humano moderno. Para que esses genes chegassem até nós foi preciso que nossos antepassados e os neandertais se sentissem atraídos um pelo outro, se reproduzissem e dessem origem a seres híbridos que depois voltaram a se reproduzir com nossos antepassados, introduzindo o DNA neandertal em nossa linhagem. “Isso não torna o conceito de espécie inválido, mas mostra que as barreiras reprodutivas podem ser incompletas ou permeáveis”, explica Pinheiro.

Hoje os pesquisadores olham para um conjunto maior de aspectos biológicos, além das barreiras reprodutivas, ao descrever espécies novas. “Pode ser que o metabolismo das orquídeas da ilha e das do continente seja diferente ou que suas raízes se associem com fungos distintos”, cogita Pinheiro. Por enquanto, a única forma de diferenciar novas espécies é com testes genéticos, que indicam as mutações acumuladas pelas plantas da ilha ou do continente.

Divisão dos continentes teria favorecido a biodiversidade

Há 140 milhões de anos, quando o supercontinente de Gondwana começou a se dividir, a América do Sul, a Antártida e a Austrália, que então se formavam, teriam funcionado como ilhas que dividiram populações e originaram novas espécies.

A evolução de uma família de efêmeras, insetos chamados assim porque vivem poucos dias na fase adulta, reflete a divisão dos continentes, segundo artigo publicado na revista Journal of Zoological Systematics and Evolutionary Research em março. O estudo foi baseado na análise do DNA de 76 exemplares de espécies atuais.

“O ancestral da família Atalophlebiinae vivia em Gondwana e, conforme o supercontinente se dividiu, gerou novas linhagens”, presume o biólogo Yuri Leite, da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). “Em Madagascar, a primeira porção de terra a se separar, teria surgido o gênero Radima, deixando para trás seus primos, que constituem o ancestral comum mais recente de todos os Atalophlebiinae.”

Naquela época, a Antártida era coberta por florestas tropicais e conectava a Austrália e a América do Sul. Há cerca de 95 milhões de anos, as populações de efêmeras que migraram para a Austrália passando por essa região originaram o gênero Garinjuga. Na América do Sul, que se desconectou da Antártida há 85 milhões de anos, surgiu o gênero Massartella.

O mesmo padrão das efêmeras é encontrado em outras espécies. “Fósseis de marsupiais de espécies diferentes das que existem na América do Sul e da Austrália — como gambás e cangurus — já foram encontrados na Antártida, indicando que esse continente serviu de passagem para outros”, comenta Leite.

A fragmentação de Gondwana seria uma das causas da grande biodiversidade do hemisfério Sul. “Como o supercontinente do norte, a Laurásia, que incluía Eurásia e América do Norte, sofreu menos fragmentações, a riqueza de espécies no Norte é menor hoje”, explica Leite.

Projetos

  1. Sobrevivência no limite: Como gradientes ambientais podem limitar a distribuição geográfica de uma espécie de orquídea distribuída ao longo do litoral? (nº 20/02150–3); Modalidade Auxílio à Pesquisa ‒ Regular; Pesquisador responsável Fábio Pinheiro (Unicamp); Investimento R$ 181.730,98.
  2. Sinalização acústica, sísmica e visual: Investigando a comunicação multimodal em anuros neotropicais (nº 19/03170-0); Modalidade Bolsa de Doutorado; Pesquisador responsável Luís Felipe Toledo (Unicamp); Bolsista Guilherme Augusto Alves; Investimento R$ 250.795,08.

Artigos científicos


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