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Em artigo, o professor Carlos Vainer destaca a necessidade de se retomar os lugares de encontro, de celebração coletiva e de cultura e arte populares

Por Carlos Vainer, da Conexão UFRJ | Foi Emile Durkheim quem chamou a atenção para o fato de que toda sociedade tem uma morfologia (social), isto é, uma forma física, material, que é produzida pela sociedade e simultaneamente concorre para sua reprodução. Assim, o exame da forma como a sociedade se instaura no espaço oferece uma imagem da sociedade. Nesses termos, a cidade contemporânea é um espelho da sociedade capitalista contemporânea, e a cidade brasileira é um espelho em que se projeta a sociedade capitalista periférica e dependente brasileira.

Não surpreende, em consequência, que nossas cidades revelem o que nossa sociedade tem de mais perverso: a desigualdade, o racismo, o machismo, o patriarcalismo, a LGBTQIA+fobia, o desprezo e a invisiblização dos quilombos e territórios indígenas urbanos, o capacitismo que exclui as pessoas com deficiência do acesso aos espaços públicos e culturais.

São várias as facetas da desigualdade urbana: não apenas os mais pobres têm uma renda menor, como vivem em bairros aos quais faltam condições mínimas de urbanidade − água e esgoto, iluminação, transporte e demais serviços públicos, áreas de lazer e equipamentos culturais. Estas desigualdades urbanas agudizam e ampliam as desigualdades de renda e patrimônio.

O entendimento da cidade brasileira, porém, fica incompleto caso não se considere o processo de financeirização da economia e suas profundas consequências na dinâmica urbana. Parcelas da cidade se transformaram progressivamente em ativos financeiros e constituem uma dimensão da especulação que domina o conjunto da economia capitalista. A relevância da cidade contemporânea nos processos de acumulação e financeirização ficou evidenciada na grande crise de 2008, deflagrada pelo estouro da bolha especulativa financeiro-imobiliária nos EUA.

A captura e a colonização da cidade pela financeirização têm sequelas mais que conhecidas: captura e privatização dos espaços públicos, enobrecimento e produção de espaços exclusivos, segregações urbanas, limpezas socioétnicas etc. O capital financeiro se urbaniza, a cidade se financeiriza… e desta forma ganha novo e relevante lugar no processo de concentração da riqueza. A crise econômica e a pandemia vieram agudizar e lançar luz sobre esta realidade trágica.

A Escola de Sociologia Urbana de Chicago definiu a cidade moderna como um aglomerado de grandes dimensões, denso e heterogêneo − a cidade como lugar de encontro do diverso. Ora, quando olhamos para a dinâmica de nossas cidades, assistimos a processos de desdensificação e segregação espacial. Ilhas, enclaves, condomínios fechados, guetos sociais esgarçam o tecido social, descontituindo a própria ideia da cidade e da urbanidade como lugar e experiência de encontro do diverso. A burguesia, que inventou a cidade moderna, paradoxalmente, conduz hoje o processo de destruição dessa cidade, de degradação da urbanidade que foi sua marca e contribuição à história. Assistimos ao urbanicídio.

O urbanicídio da cidade do Rio de Janeiro é exemplar. Nas últimas décadas, sucessivos governantes, submetidos ao apetite do capital imobiliário-financeiro-especulativo, abdicaram de qualquer projeto ou planejamento urbano. A cidade se transformou num grande negócio. As camadas populares, e apenas elas, podem assumir a defesa de uma cidade integrada e democrática que valorize os espaços públicos, os lugares de encontro, de celebração coletiva e de cultura e arte populares.

É isso que está expresso nas lutas populares e na Conferência Popular pelo Direito à Cidade, iniciativa de mais de 450 entidades, movimentos, organizações, coletivos, grupos de direitos humanos, grupos culturais. Ao longo de dois meses, em todo o Brasil, 230 eventos preparatórios reuniram milhares de pessoas, a fim de discutir propostas voltadas para a moradia popular, saúde e saneamento, lutas contra opressões de gênero e LGBTQIA+fobia, pela preservação do meio ambiente, pelos direitos dos povos originários, mobilidade e acessibilidade, lutas antirracistas e contra o capacitismo, pelo acesso a equipamentos culturais, dinamização de atividades artísticas e esportivas, pela cidadania das pessoas jovens e idosas, pelos direitos da população em situação de rua, por trabalho e renda, pela democracia urbana. Em São Paulo, entre os dias 3 e 5/6, teremos o desenlace dessa extraordinária mobilização, mostrando que é possível fazer convergir anseios, esperanças e lutas pelo Direito à Cidade − entendido como o direito de construir uma nova cidade, uma nova sociedade, com novas formas de relações entre os seres humanos e entre estes e o meio ambiente.

Carlos Vainer é professor titular do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional – Ippur

Este texto foi originalmente publicado pelo Conexão UFRJ de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.


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