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Por Sérgio Adeodato em Página 22 Quando se fala em restauração florestal ou ecológica, cada vez mais em alta no esteio dos desafios climáticos, a preocupação costuma estar nas mudas, nas sementes, no crescimento das árvores e no vigor da biodiversidade que é possível monitorar por câmeras ou observar a olho nu. É compreensível, porque os sentidos comumente se vertem para o que reluz de forma aparente na paisagem. Mas nada existiria na superfície da terra – e na vida sobre ela – não fosse um elemento essencial muitas vezes esquecido e relegado a um plano menor: o solo.

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Sob os nossos pés, impera um mundo que não somente permite plantar, criar gado, construir moradias ou retirar minérios e outros materiais para bens de consumo. Além da produção de alimentos e riquezas básicas na redução da fome e desigualdades, o universo abaixo do chão, com a complexidade de seus seres microscópicos, guarda um outro valor. É fonte de serviços ecossistêmicos relacionados às suas funções, capital natural que baliza riscos e oportunidades aos negócios e políticas públicas que visam o uso sustentável, com o casamento entre elos que já não podem estar separados, como produção, controle do desmatamento e mitigação da mudança climática.

Cerca de 95% do que comemos vêm do subterrâneo, morada de um quarto da biodiversidade do planeta. Com o desafio de manter a riqueza biológica para ser saudável e fértil, o solo não representa apenas um recurso para o cultivo de plantas. “Ele regula enchentes, garante segurança hídrica, guarda a herança cultural representada pelos achados arqueológicos e reúne recursos para controle de pragas e doenças, além da regulação do clima global”, afirma Fabiano Balieiro, pesquisador da Embrapa Solos, no Rio de Janeiro.

No solo, a capacidade média de estocar carbono é quatro vezes maior do que na vegetação da superfície. E perturbações em determinados níveis podem fazê-lo retornar à atmosfera, com o agravamento dos impactos climáticos ambientais, sociais e econômicos projetados pela ciência e já sentidos no planeta.

A restauração florestal, como uma Solução baseada na Natureza (SbN), tem entre as funções trazer o carbono de volta para o solo, por meio da fotossíntese das árvores, além de prover a dinâmica hídrica, essencial ao abastecimento público. “É uma grande oportunidade para reverter a degradação e reduzir riscos da dependência de recursos naturais”, observa Balieiro.

O solo é responsável por dois terços do reservatório global de carbono orgânico, segundo dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) – e é por ele que soluções em termos de segurança alimentar, geração de renda, água e clima devem primeiramente passar – até porque, em grande parte, encontra-se em processo de degradação.

A urgência de produzir mais com menos recursos tem estreita ligação com o que vem de baixo da terra. Segundo a FAO, o mundo já perdeu 2 bilhões de hectares de terras degradadas, 80% devido a processos erosivos – hídricos, eólicos ou causados pelo trato da área, o que prejudica a produção de alimentos, disponibilidade futura de áreas à agricultura e a qualidade da água. Em outras palavras, a erosão reduz a capacidade de infiltração e drenagem da chuva, prejudicando a profundidade de enraizamento das plantas e favorecendo a perda de matéria orgânica e nutrientes. O problema afeta diretamente a saúde humana, a biodiversidade do planeta e a subsistência do meio rural.

Os solos são maltratados pelo pisoteio de animais, tráfego de máquinas pesadas e poluição do lixo, efluentes e produtos químicos. Em paralelo, a redução da biodiversidade enfraquece a estrutura do solo e sua capacidade de resistir à erosão, sabendo-se que a formação de 1 cm de solo leva mais de 1 mil anos. Nos últimos 50 anos, a tecnologia agrícola aumentou a produção de alimentos, mas com impactos negativos no solos e no meio ambiente, em contraponto às atuais propostas de manejo sustentável do solo, que podem produzir mais 58% de alimentos no mundo, de acordo com a ONU.  

No Brasil, não é diferente. Mais de 60% das terras agricultáveis, cerca de 140 milhões de hectares, apresentam algum estado de degradação, em diferentes atividades, principalmente pastagens. “No período de seca neste ano, as cenas na TV de gigantescas nuvens de poeira evidenciaram os gravíssimos problemas de conservação do solo”, ressalta Balieiro, à frente de pesquisas no Laboratório de Matéria Orgânica do Solo.

“O desafio de recuperar funções ecológicas, em ambiente de maior diversidade e resiliência, exige solos com maior nível de matéria orgânica e ciclagem de nutrientes, nas microbacias hidrográficas”, acrescenta o pesquisador – especialista no estudo das chamadas “espécies pitbull” de restauração, aquelas que têm maior capacidade de reter nitrogênio do ar para estocagem no solo, com menor dependência de fertilizantes químicos.

Um dos estudos tenta isolar organismos no microbioma das plantas de modo a prover o crescimento vegetal e aumentar a tolerância a impactos, como a mudança do clima. Em área de plantio comercial de eucalipto, que necessita de até 150 kg de nitrogênio sintético por hectare, estão sendo testadas plantas arbóreas e leguminosas, na expectativa de extrapolar o modelo para a silvicultura de espécies nativas e para a restauração florestal, antecipando o retorno de funções ecológicas perdidas, principalmente em lugares muito degradados.

Os avanços neste campo são fruto do trabalho da cientista brasileira Johanna Döbereiner (1924-2000), pioneira na biologia do solo: na onda da Revolução Verde, quando proliferava o uso de químicos a qualquer custo para a produção no campo, a engenheira agrônoma apostou na vertente dos bioinsumos baseados em bactérias que ajudam plantas a fixar nitrogênio do ar.

Graças a isso, foi possível reduzir a aplicação de produtos sintéticos nos cultivos. Na soja, a contar pelos seus atuais 3,8 milhões de hectares plantados, o País “exporta” 227 Kg/ha de nitrogênio que veio do ar, fixado por bactérias, segundo Balieiro. No entanto, assim como a água e demais recursos naturais, esse nitrogênio “embutido” nas exportações não é valorado no mercado de commodities: “Poderia ser uma janela para o Brasil no combate à fome”, reflete, ao destacar as atuais oportunidades no mercado de carbono.

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Investir em estudos do solo é fundamental para as políticas de descarbonização da agricultura brasileira. Na COP 26, a recente conferência da ONU sobre clima realizada em Glasgow, a Embrapa lançou novos mapas do estoque brasileiro de carbono orgânico nos solos, com profundidade de 1 metro e 100 km de resolução espacial. O objetivo é subsidiar investimentos e políticas de conservação, recuperação e uso sustentável, uma vez que o Brasil ocupa o primeiro lugar entre os 15 países que detêm o maior potencial de estocagem de matéria orgânica.

Em outro estudo, a Embrapa mapeou as áreas suscetíveis e vulneráveis à erosão hídrica em todo o território brasileiro, o mais abrangente já realizado no País. Os dados, disponibilizados na plataforma tecnológica do Programa Nacional de Levantamento e Interpretação de Solos no Brasil (PronaSolos), visam subsidiar o setor produtivo e o poder público na priorização de áreas para prevenção e restauração, com abordagens mais objetivas e direcionadas para controlar a erosão.

No mundo, as lições vêm de projetos como a construção da “Grande Muralha” de árvores na África, que já atingiu 4 milhões de hectares – e para cada dólar investido, houve um retorno de US$ 1,20 na contenção da degradação. Um total de cerca de US$ 20 bilhões foi prometido internacionalmente para apoiar a ampliação do programa, incluindo US$ 1 bilhão do fundador da Amazon, Jeff Bezos. Neste documentário, cientistas e celebridades revelam como o solo da Terra pode ser fundamental para o combate às mudanças climáticas e para a preservação do planeta.

Há uma ligação muito forte entre o que existe acima e abaixo da superfície. “Quanto mais diverso o ambiente aéreo, mais diverso será o subterrâneo”, reforça Balieiro. Além disso, a necessária biodiversidade de alimentos para suprir a demanda global depende da saúde dos solos, conforme o levantamento da ONU The State of the World’s Biodiversity for Food and Agriculture.

Segundo ele, o desafio é obter conhecimento e dar visibilidade aos dados científicos para dimensionar práticas, investimentos e incentivos à restauração: “Falar que solo está degradado é fácil, mas dizer o quanto está, e o que precisa para recuperá-lo, é o problema”, diz Balieiro. Na análise do pesquisador, “há conhecimento sobre solos, fitologia e diversidade de plantas para projetos viáveis, mas há lacunas sobre os efeitos da mudança climática nos traços funcionais das plantas”.

Solo, clima e comunidades de plantas são os principais fatores para o sucesso da restauração florestal. “Quanto mais soubermos sobre esses elementos, mais teremos resultados, para além dos usos econômicos”, destaca Balieiro. As crescentes demandas em torno da produção orgânica, permacultura e agroecologia, com a expansão de sistemas agroflorestais e métodos conservacionistas no agronegócio, sinalizam uma maior valorização para o que está abaixo da superfície terrestre. “Mas o caminho é longo”, completa.

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Isso sem falar do potencial da microbiologia invisível das florestas, ainda a ser prospectado e desvendado pela ciência para compor insumos biotecnológicos no campo farmacêutico, por exemplo, dando asas à bioeconomia e suas potencialidades. Existem mais organismos vivos em uma colher de sopa de solo do que pessoas na Terra, dizem pesquisadores. O céu é o limite neste mundo desconhecido, palco da vanguarda do conhecimento científico em torno da “comunicação entre plantas”, descortinada no livro A Vida Secreta das Árvores, do cientista alemão Peter Wohlleben.

Pesquisadores tentam entender a complexa relação entre planta, microrganismos e estresses ambientais. “Funciona como uma via de mão dupla: o solo influencia a restauração florestal e vice-versa, e há um grande esforço de pesquisa para entender essa interdependência e municiar ações em áreas degradadas”, aponta Miguel Cooper, pesquisador do Departamento de Ciência do Solo da Esalq/USP, em Piracicaba.

Para ele, o trabalho “exige avaliação antes, durante e após o processo, pois o solo de hoje sob restauração nunca é o mesmo de quando a área foi desmatada”. O pesquisador explica: “Assim como precisamos conhecer a dinâmica do solo para determinar as espécies vegetais mais adequadas na restauração, no sentido inverso é necessário entender como os diversos tipos de vegetação melhoram a terra”.

O maior gap de conhecimento está nessa relação entre solos e vegetação, com uma grande questão a ser respondida: por que árvores das mesmas espécies se desenvolvem de maneira diferente de um lugar para outro? O desafio inspira amplo trabalho de investigação liderado pelo pesquisador Pedro Brancalion, também da Esalq, para entender essas complexas relações por meio de drones, big data e inteligência artificial na zona de transição entre Cerrado e Mata Atlântica, em São Paulo.

Segundo Cooper, a discussão atual não mais se restringe à reconstrução de mata na beira dos rios – as Áreas de Preservação Permanente (APPs) – e outros fragmentos florestais. A problemática vai além e abrange a conservação do solo nas microbacias hidrográficas: “Não adianta restaurar para todo lado, sem considerar a relação solo-água com uma visão mais integrada da paisagem”.

Sem a conservação dos solos a montante dessas áreas, a erosão pode soterrar sementes e mudas, sem possibilidade de crescimento das plantas, explica. E é por isso que a restauração exige caracterizar e entender o solo, levando também em conta a exigência de nutrientes para o crescimento vegetal. Em terras mais pobres, continua Cooper, as plantas sobrevivem basicamente da ciclagem de nutrientes e matéria orgânica da própria floresta; e quando se tira a mata para fazer agricultura, esse ciclo se perde – com a necessidade de adubação na expectativa que novas culturas vinguem, inclusive árvores nativas.

Além do respeito aos processos ecológicos envolvendo a fauna e flora, a conservação dos nutrientes do solo e da água faz parte dessa equação: “com a visão de bacia hidrográfica, o desafio de aliar produção e proteção abre janelas para mecanismos como o Pagamento por Serviços Ambientais (PSA), além do mercado de créditos de carbono, incluindo os benefícios ofertados pelo solo”, reforça Cooper.

Dessa forma, não basta olhar para os troncos, galhos e folhas das árvores, como também para o existe debaixo delas. Segundo novo estudo publicado na Nature Geoscience, a falta de fósforo no solo da Floresta Amazônica diminui em 50% a resposta desse bioma ao aumento de dióxido de carbono na atmosfera. “Os solos são elementos essenciais à vida no planeta, mas muitos só valorizam quando desaparece ou se torna imprestável”, enfatiza o pesquisador. Ele lembra que grandes civilizações do Egito e da antiga Babilônia, no Oriente Médio, desapareceram por causa da degradação do solo.

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Hoje, esses impactos estão diretamente relacionados à pobreza, como ocorre de forma emblemática em países como o Haiti, vivenciada por Cooper, deixando clara a conexão com muitos dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU. A questão cultural, no entanto, pesa. Tratado pela humanidade como local para enterrar o lixo e os mortos, o solo carrega o estigma de que lá tudo pode. “Degradamos muito mais do que conservamos; não conhecemos 20% do que temos abaixo dos pés e já queremos ir para outros planetas”, destaca Cooper. “Precisamos primeiro preservar a vida aqui”.


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