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Projeto integrado pela UFRGS prevê instalação da primeira plataforma flutuante de energia eólica offshore do Brasil; pesquisadores e órgãos ambientais têm trabalhado na regulamentação desses empreendimentos

Por Amanda Veríssimo – Jornal da UFRGS | Em 2024, o Brasil gerou 107,58 terawatts-hora (TWh) de energia eólica, segundo o boletim anual da Associação Brasileira de Energia Eólica e Novas Tecnologias (ABEEólica). Esse volume seria suficiente para abastecer cerca de 47 milhões de residências brasileiras durante um ano inteiro, considerando o gasto médio de 191 kWh mensais por residência. Com uma participação quase nula até meados de 2005, o avanço do setor é resultado direto da Lei nº 10.438, de 2002, que criou o Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica (Proinfa), consolidando a fonte eólica como uma das principais forças da transição energética brasileira.

Segundo o mesmo relatório da ABEEólica, o Rio Grande do Sul ocupou a quinta posição entre os estados que mais produziram energia elétrica a partir dessa fonte. Agora, tanto o país quanto o RS voltam seus olhos para o próximo passo: o desenvolvimento da energia eólica offshore, isto é, gerada por turbinas instaladas no mar. Até o momento, todos os parques eólicos do Brasil estão em terra firme, concentrados principalmente no litoral nordestino e no extremo sul do país. Mas é o RS que tem o maior número de projetos offshore, com 30 propostas atualmente em processo de licenciamento.

Conforme aponta Saulo Barbosa, engenheiro florestal que trabalha há 24 anos com licenciamentos ambientais de parques eólicos – incluindo projetos pioneiros no Rio Grande do Sul, como os de Osório e Santa Vitória do Palmar –, esses Complexos Eólicos Offshore (CEO) começam a ganhar espaço impulsionados pelo interesse do setor privado. Segundo o especialista, a opção por áreas aquáticas surge principalmente devido à dificuldade de encontrar extensões de terra suficientemente grandes para abrigar novos parques em solo. “No sul, em Santa Vitória [do Palmar], eu acho que tem algumas áreas ainda [para novos parques eólicos], mas em outros locais não”, explica.

Primeira plataforma eólica offshore do Brasil

No Rio Grande do Sul, avança o projeto Aura Sul Wind, que pretende instalar no Porto de Rio Grande a primeira plataforma flutuante de energia eólica offshore do Brasil. A iniciativa reúne a Superintendência de Portos do RS, o Sindicato da Indústria de Energias Renováveis do Rio Grande do Sul (Sindienergia-RS), a empresa japonesa JB Energy, a Technomar Engenharia – responsável pelo monitoramento em tempo real das condições ambientais e das operações – e a Blue Aspirations Brazil, empresa chinesa especializada em sensoriamento ambiental.

O projeto também conta com a participação da UFRGS, por meio do Núcleo de Integração de Estudos, Pesquisa e Inovação em Energia Eólica (NIEPIEE), coordenado pela professora da Escola de Engenharia Adriane Petry. O núcleo reúne cerca de 50 pesquisadores de cinco instituições – UFRGS, FURG, UFSM, UFSC e IFSC – e atua de forma multidisciplinar, integrando engenharia, oceanografia, biologia, meio ambiente e estudos socioeconômicos. 

“O objetivo [do núcleo] é justamente desenvolver soluções tecnológicas que sejam ao mesmo tempo eficientes, ambientalmente responsáveis e socialmente justas. Nós já participamos do projeto Ventos de Libra, que busca o uso de eólica offshore para descarbonizar plataformas do pré-sal. Foi a partir dele que aprofundamos nossa participação em fóruns nacionais e internacionais sobre o tema e amadurecemos a ideia de atuar mais fortemente no Rio Grande do Sul” – Adriane Petry

Foi a partir de uma parceria entre o NIEPIEE e a Blue Aspirations Brazil que surgiu o projeto Terra-Mar, que faz parte de uma das fases do Aura Sul Wind. Nessa etapa, será instalado na costa de Rio Grande um sistema de monitoramento ambiental de alta precisão: uma boia certificada internacionalmente, capaz de transmitir dados em tempo real. Ela coletará informações sobre vento, ondas e condições oceânicas essenciais para o planejamento da eólica offshore gaúcha.

A previsão é que a operação comece no primeiro semestre de 2026, após a emissão da licença ODAS (Operações de Dispositivos de Apoio à Navegação em Águas Marinhas) pela Marinha. Os dados coletados servirão de base para o projeto offshore, cuja fase de pesquisas próprias está prevista para 2027, mediante um termo de cooperação com a UFRGS.

Discussões sobre impacto ambiental

A tecnologia dos parques offshore, já consolidada em diversas partes do mundo, tem mobilizado empreendedores, órgãos ambientais e pesquisadores no Brasil; estes dois últimos têm buscado estabelecer diretrizes claras para o licenciamento e a avaliação de riscos. O Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Aves Silvestres (Cemave), vinculado ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), elaborou, em 2022, a 4.ª edição do Relatório de Áreas de Concentração de Aves Migratórias no Brasil. A produção visa sinalizar às autoridades licenciadoras questões relativas às aves que merecem atenção especial nos estudos relacionados ao licenciamento de empreendimentos eólicos. 

No relatório, o tema das eólicas offshore foi aprofundado por seis pesquisadores, dentre eles o professor do Câmpus Litoral Norte da UFRGS Guilherme Nunes e o professor da Universidade Federal do Rio Grande (FURG) Leandro Bugoni. Segundo Guilherme, o capítulo surgiu a partir da crescente demanda por diretrizes claras para o licenciamento ambiental de empreendimentos eólicos no mar. 

O professor lembra que, em novembro de 2020, o Ibama publicou o termo de referência para licenciamento ambiental de usinas eólicas offshore, documento que define os critérios técnicos e ambientais para implantação e operação desses empreendimentos. “Esse termo de referência foi inspirado na experiência da União Europeia, especialmente no Mar do Norte, onde há parques offshore operando há mais de 20 anos”, contextualiza.

De acesso aberto, o capítulo busca traduzir o conteúdo técnico do termo de referência em linguagem acessível, detalhando o que os empreendedores precisam observar desde o diagnóstico inicial até o monitoramento pós-instalação. “A ideia foi ‘mastigar’ o documento [termo técnico], mostrando de forma clara o que precisa ser feito em cada etapa do licenciamento. Queríamos contribuir com o debate público e com o aprimoramento da política ambiental”, explica o professor.

Foto: Reprodução Jornal da UFRGS

Efeitos sobre as aves

Para Leandro Bugoni, os efeitos dessas estruturas sobre a fauna marinha podem ser diretos, por colisão, e indiretos, pelo uso do espaço marinho. “Os impactos diretos são comparáveis a acidentes de carros: as aves colidem nas hélices das turbinas. No mar, quando elas caem na água, raramente vão aparecer numa praia, e caso apareçam, podem ser confundidas a um animal encalhado, ou seja, não vai estar associado a essa causa de morte”, comenta o pesquisador, destacando que esse fator dificulta a medição dos danos. Já os impactos indiretos estão relacionados à ocupação das torres e hélices.

“Quando você instala uma estrutura no mar, você está tirando o espaço que as aves usam para se alimentar ou os corredores que elas usam para se deslocar durante a migração. Isso inclui também espécies que diariamente se deslocam das praias para o mar em busca de alimento e depois retornam. Elas vão ter barreiras. Vão ter locais em que elas não vão poder utilizar em função disso. Essas áreas, para elas, ficam reduzidas. Elas vão ter que procurar outro lugar para encontrar seu alimento” – Leandro Bugoni

Guilherme detalha que as torres atuais têm cerca de 150 metros de altura, com pás de 120 metros. “Considerando a torre com a pá erguida, falamos de 270 metros de altura, abrangendo uma faixa vertical de 30 a 270 metros, que é exatamente a área onde muitas aves sobrevoam”, afirma. O risco de colisão, segundo o professor, não é uniforme: depende da altura e da latitude em que as aves voam, do tipo de voo e do comportamento noturno. Espécies que planam ou voam mais devagar e com mudanças frequentes de direção, como fragatas e trinta-réis, apresentam maior risco.

Um estudo conduzido por Nunes junto com a doutoranda em Biologia Animal na UFRGS Natascha Horn estimou o impacto dos CEOs projetados para toda a costa brasileira sobre aves marinhas e costeiras, relacionando sua ocorrência à altura das turbinas e às características de voo. Os resultados apontam que o estado com maior suscetibilidade aos impactos das offshore foi o Rio Grande do Sul, o que pode ser explicado pela alta riqueza de espécies e pela elevada disponibilidade de alimento na região. “No Sul, recebemos espécies tanto do trópico quanto das regiões temperadas. Durante o verão chegam aves típicas de regiões tropicais, e no inverno aves de regiões temperadas, criando um cenário de grande riqueza biológica”, explica o docente.

Foto: Reprodução Jornal da UFRGS

O paradoxo criado

Os pesquisadores alertam que os impactos dessas estruturas sobre a vida marinha são complexos, misturando efeitos positivos e negativos. Essas construções podem, involuntariamente, criar áreas protegidas no mar. Leandro faz um paralelo com as plataformas de petróleo: “No Brasil, elas têm restrição de proximidade para embarcações pesqueiras, então sem querer, essas estruturas criam áreas onde a pesca não é permitida”, explica.

O professor destaca que “a pesca é uma indústria extrativa, que explora os recursos até esgotá-los. No Brasil, o controle é muito limitado, então áreas protegidas associadas a turbinas podem ajudar, mas não é garantido que funcione plenamente.” Apesar das regulamentações, a fiscalização no Brasil ainda é limitada. “Mesmo com a restrição de 500 metros em torno das plataformas [de petróleo, por exemplo], muitos barcos continuam pescando próximo às estruturas. Na prática, a lei muitas vezes se torna apenas uma recomendação.” 

Guilherme destaca que, caso a pescaria cesse com esses empreendimentos, isso pode favorecer a recuperação de estoques historicamente dizimados. “No litoral do Rio Grande do Sul os estoques de peixes demersais [que habitam o fundo do mar] foram praticamente eliminados nas décadas de 1980 e 1990. Com a criação dessas zonas, eles podem se recuperar”, explica o professor.

Outro ponto é que a implementação dessas plataformas no mar – sejam elas de petróleo ou eólicas – atua como recifes artificiais, atraindo peixes e formando pequenos ecossistemas que podem beneficiar a biodiversidade local. Como exemplo, Nunes menciona diversos locais no mundo onde são instalados pontos de agregação de peixes: “O termo em inglês é Fishing Aggregation Device, e eles atraem pequenos peixes que buscam abrigo. Naturalmente, isso também atrai peixes maiores que se alimentam desses pequenos peixes, e assim sucessivamente. Portanto, são pontos muito visados, inclusive para a pesca.”

A ironia da situação é que os impactos positivos também podem se reverter em impactos negativos. O professor alerta que essas zonas podem se tornar armadilhas ecológicas.

“Ao retirar a pesca, você cria mais alimento disponível, atraindo consumidores de topo, como aves marinhas. E o que acontece? Essas aves passam a frequentar ainda mais as áreas próximas às turbinas eólicas, aumentando o risco de colisão. Então, há um impacto paralelo: é bom para os estoques de peixe e potencialmente ruim para as aves” – Guilherme Nunes

Os outros principais impactos das instalações offshore sobre as vidas marinhas ocorrem durante o período de implantação. “Os mamíferos marinhos, incluindo cetáceos e baleias, são mais significativamente afetados nesse estágio, porque há perfuração, concretagem e outros procedimentos de construção. Portanto, é nessa fase que se observa o maior impacto”, explica o professor da UFRGS. Ele acrescenta que o termo de referência do Ibama também deixa claro que o monitoramento e os impactos mais relevantes estão concentrados justamente no período de instalação.

O processo regulatório evolui

No relatório produzido pela Cemave/ICMBio, os pesquisadores do centro Manuella de Souza, Patrícia Serafini, Érika Lima e Andrei Roos também analisam os impactos ambientais gerados pela expansão dos parques eólicos no país, destacando que a escolha adequada da localização dos empreendimentos é decisiva: um parque eólico grande, mas bem posicionado, pode causar menos danos do que um menor instalado em área sensível.

Há também no texto uma reflexão acerca do monitoramento de aves nos parques eólicos onshore, isto é, em terra, feita pelos biólogos Ivan Campos e Marcos Fialho. Nesses empreendimentos, a biota (plantas, animais e microrganismos) terrestre é a mais vulnerável, sofrendo impactos como supressão da vegetação, abertura de vias de acesso, aumento do tráfego e instalação de torres e redes de transmissão. Para os pesquisadores, o tema ganha relevância diante do compromisso brasileiro com a Convenção sobre a Conservação das Espécies Migratórias de Animais Silvestres (CMS). A Resolução nº 7.5 da CMS delimita que o país deve harmonizar a exploração do potencial eólico com a proteção das espécies migratórias, consideradas de interesse global e especialmente sensíveis a essas intervenções.

Saulo Barbosa explica que o processo regulatório evolui junto com descobertas de impactos como essas. Ele recorda que, em seus primeiros anos de atuação, não havia regras específicas sobre iluminação das torres. “Usavam luzes brancas, o que atraía muitos insetos – e, consequentemente, mais morcegos e aves noturnas. Isso aumentava o risco de colisões”, relata. “Hoje as luzes das eólicas são vermelhas e regulamentadas pelo comando aéreo para piscarem todas juntas, não só por segurança no tráfego aéreo, mas também porque a cor vermelha atrai menos insetos”,

Como explica Barbosa, os processos de monitoramento ambiental ajudaram a identificar esses problemas e a adequar os procedimentos: “Os monitoramentos continuam mostrando necessidades de novas adequações, e elas sempre vão ocorrer.”

Tanto Guilherme quanto Leandro destacam a importância de reconhecer que essa fonte de energia não emite gases de efeito estufa e representa um avanço diante da crise climática global. Assim, as pesquisas realizadas ajudam a definir ações mais adequadas para cada região do Brasil, garantindo melhores resultados, uso mais eficiente dos recursos e menor impacto sobre a biodiversidade.

Foto: Reprodução Jornal da UFRGS

Estudos para mitigar impactos ambientais

Além da vertente acadêmica liderada pela UFRGS, o projeto Terra-Mar avança com planejamentos ambientais e técnicos coordenados pela JB Energy, responsável por definir a área do piloto. Em nota enviada ao JU, a empresa destaca que a localização escolhida – a 60 km da costa, em lâmina d’água de 45 metros – decorre de um estudo multicritério, que identificou a faixa de até 40 km do litoral como altamente sensível. A região mais próxima concentra berçários da baleia-franca, presença de toninhas, rotas de aves migratórias e intensa atividade de pesca artesanal. Ao afastar o projeto desses pontos críticos, a empresa destaca que busca reduzir conflitos socioambientais desde o início.

A JB Energy também afirma que planeja estudos de linha de base sobre avifauna, morcegos e mamíferos marinhos, além de utilizar tecnologias de radar e hidrofones para monitorar aves e toninhas. A opção por uma plataforma flutuante de concreto, que dispensa obras invasivas no fundo do mar, é apresentada como uma estratégia adicional de mitigação ambiental, comenta a empresa.

Durante a produção desta reportagem, o JU também entrou em contato com a Superintendência de Portos do RS, o Sindicato da Indústria de Energias Renováveis do Rio Grande do Sul (Sindienergia-RS) e a Technomar Engenharia – atores envolvidos no Aura Sul Wind –, para obter mais detalhes sobre o projeto, mas não obteve retorno até o fechamento do texto.

Este texto foi originalmente publicado pelo Jornal da UFRGS, de acordo com a licença CC BY-SA 4.0. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.


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