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Até 27 de agosto, exposição na USP traz o mundo de Alice, de Lewis Carroll, na interpretação da artista Syl Soares

Algo chama a sua atenção. Curioso, você segue em direção a um buraco. Acaba descendo em meio a muitos livros e descobre um mundo em que, de início, quase nada faz sentido. Foi dessa forma que Alice caiu na toca do Coelho Branco depois de segui-lo, no conto do inglês Lewis Carroll, Alice in Wonderland (Alice no País das Maravilhas), de 1865. E, descendo mais escadas com estantes cheias de livros ao seu redor, você chega à exposição Alice, Eu Não Quero Ficar Entre Gente Maluca, em cartaz na Sala BNDES da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da USP, na Cidade Universitária, em São Paulo. A mostra traz obras da artista plástica e ilustradora Sylvia Soares, também conhecida como Syl.

“Sempre fui aficionada em Alice”, revela Syl. Ela criou a exposição a partir de sua memória de histórias contadas a ela na infância, dando seus próprios sentidos. “Para a criança, quase tudo não tem lógica. Mas o universal de Alice são as suas várias leituras, suas diversas interpretações. E isso podemos ver aqui, quando cada um comenta as obras”, ela conta.

Como um convite para visitar a exposição, mais de 40 mil cartas de baralho foram penduradas em fios de nylon e espalhadas pelo chão da Livraria João Alexandre Barbosa, no Complexo Brasiliana. Quem chega ao local acaba notando a instalação e se convence a descer até o subsolo, onde fica a mostra. Imagens são projetadas nas mesmas cartas. Lá embaixo, em uma parede, são projetadas cenas das várias adaptações do conto de Lewis Carroll para o cinema, além de imagens das peças de Sylvia Soares que estão em exposição. Tudo isso acontece ao som de um piano que toca a trilha do primeiro filme que reproduziu o conto inglês, Alice in Wonderland, de 1903.

Para a artista, o conto de Alice e seus questionamentos lógicos e — aparentemente — ilógicos representam a fase de adolescência da menina que está se transformando em uma mulher. “Ela não entende o pesadelo — ou sonho — que está vivendo. Aquilo tudo causa um certo desconforto. É ser adolescente, para mim. Tem muitas referências a isso.” O processo para criar a exposição vem dos projetos de litogravura que a artista fez tendo Alice como tema.

O coelho apressado com seu relógio, ponto inicial das aventuras de Alice, está presente na exposição. “Pensei no tempo biológico. Pensei na própria Alice. Aliás, no país das maravilhas tudo é a Alice”, conta Syl em frente ao tórax de um corpo em madeira com uma cabeça de coelho feito de gesso e um relógio de pulso parado no ventre da instalação.

Há também a Rainha nada simpática. Em Alice No País das Maravilhas, ela tem uma forte fixação em decapitar aqueles que a irritam. Mas é ela que acaba perdendo a cabeça. A exposição traz um manequim articulado sobre um tabuleiro de xadrez e, no lugar da cabeça, a carta Q do baralho. “É a rainha de copas do jogo. O manequim serve para ilustrar o crescimento da Alice e também lembrar que, no fundo, somos peças de um jogo”, explica Syl.

Ao pé de duas pilastras, o visitante vê duas pilhas de louças quebradas. A primeira forma um amontoado. A segunda tem a forma de meia-lua, podendo lembrar um sorriso ou um rabo de um certo Gato de Cheshire. “É cerca de uma tonelada de louça quebrada. Além de lembrar o Gato Risonho, também é uma referência ao chá eterno do conto.”

Chama a atenção do visitante também uma mesa para o chá. E, quando se aproxima, ele vê olhos no bolo, nas xícaras, nos pires, na cartola de um chapeleiro. “Pensei de início nos olhos do gato, que vive aparecendo e desaparecendo. Depois virou algo onírico. Peguei fixação pelos olhos”, brinca a artista. “Mas também foi para dar a sensação de ser vigiado o tempo todo.”

O chá às cinco da tarde é uma tradição na Inglaterra. Lewis Carroll viveu e escreveu no período da Rainha Vitória, no século 19, marcado por um cunho moralista, além de características da burguesia em ascensão na época, por conta do ápice da Revolução Industrial. Ela reinou durante 63 anos — só perde para a atual rainha Elizabeth —, marcando uma era muito próspera economicamente na Inglaterra, popularmente conhecida como “vitoriana”. Lewis retrata o costume em Alice no País das Maravilhas, quando há um chá de malucos. Na mesa, a Lebre de Março, o Lirão — uma espécie de roedor presente na Europa — e o Chapeleiro Maluco. Alice chega à cerimônia, com os participantes lançando enigmas quase irracionais e a confissão do Chapeleiro de que está exausto daquele rito. Ele está preso no tempo do chá da tarde eternamente.

Na mesa há louças e uma riqueza de detalhes. Bules, xícaras e pires amontoados disputam espaço com cartas de baralho, que forram a superfície da mesa e se esparramam no chão. “É uma mesa de chá maluco. São vários elementos que fui garimpando com muito cuidado.”

Com figuras de sapos, coelhos e gatos — alguns com um riso no canto da boca —, a exposição dá espaço espaço também para uma planta carnívora de verdade, tragando uma boneca pequena. “A planta serve para dar um tom de sensualidade nesse sentido da mudança de idade. E ela engole uma criança aqui. Também remete ao início da história, com Alice, no meio dos arbustos, caindo na toca.” Para quem sentiu falta da Lagarta Azul e seu fiel narguilé, eles estão presentes na mudança. Basta se perder ao meio dos mínimos detalhes e reparar que “borboletas são a metamorfose”.

Perto da cadeira do Chapeleiro encontra-se uma white ball, um globo espelhado que reflete o que está ao seu redor. Quem observa a bola acaba se olhando e vendo a mesa com seus inúmeros objetos. “É uma peça utilizada na época vitoriana. Ela tinha duas finalidades especificamente. Uma era que, com o reflexo, dava para observar todo o terreno da casa e ver quem estava chegando. A outra era para espantar os maus espíritos”, comenta a artista. A white ball também faz alusão ao segundo conto de Lewis Carroll sobre a menina, Alice Além dos Espelhos.

Com uma mesa extremamente detalhada, muitas coisas podem passar despercebidas ao visitante em uma primeira observação. “É a metáfora do nosso cérebro. Sua percepção dá uma parte do todo. A mesa brinca com isso. Sempre tem uma nova configuração para achar”, explica o professor Luiz Armando Bagolin, do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP. Ele e Fabrício Reiner realizam a curadoria de Alice, Não Quero Ficar Entre Gente Maluca. Bagolin conta que a artista soube trabalhar uma obra do imaginário comum em um espaço limitado. “Ela se desdobra em várias mídias nesta exposição. A Sala BNDES é restrita em questão de uso do espaço, mas eu sabia que a Syl poderia utilizá-la bem e de maneira lúdica.”

A descida até a mostra em meio aos livros não foi à toa ou por pura coincidência. A Livraria João Alexandre Barbosa abriga centenas de exemplares, além de um café na parte superior. “Precisávamos levar as pessoas para baixo, chamar a atenção delas. Nasceu então a ideia de fazer um redemoinho de cartas. O buraco estava dado, faltava chamar a atenção das pessoas”, explica Bagolin.

Depois da ideia de um redemoinho e sua inviabilidade por conta de recursos e infraestrutura da sala, montaram uma chuva de cartas de baralho visíveis nos três espaços. “Alice tem uma relação com o jogo. A chuva de cartas tem relação com a chuva de moléculas que alguns pré-socráticos defendiam como o início da vida. Cada átomo caia de uma chuva e seguia, até que um deles saí dessa fila e se choca com outros, criando grupos. Usamos isso nas cartas. A origem de um jogo com a origem da vida”.

Para Fabrício Reiner, a exposição parte de um processo de criação da artista, mas que se completa no visitante. “Pensamos na melhor utilização do espaço, de maneira tridimensional, mas que também desse ao expectador uma vivência no universo da Alice. Para os mais jovens e para os mais velhos, ela marcou um período da vida. Tentamos trazer esse mundo do sonho, para que se imaginassem dentro de seu próprio universo, mas que é compartilhado, na literatura”.

Ele ainda destaca questões artísticas que se contemplam na obra de Sylvia. “Está ligada ao surrealismo e ao neo expressionismo da artista. Mas o modo de se fazer é voltado para a experiência das pessoas pensarem em seu próprios universo. A mudança de fase de Alice é que tratamos de maneira surrealista, que não faz sentido. Uma estranheza utilizada como percepção artística”. Nos slides projetados, há uma referência às perspectivas surrealistas. O fotógrafo, pintor e cineasta Man Ray, figura do movimento dadaísta — marcado pela quebra de lógicas — jogando uma partida de xadrez com o também dadaísta Marcel Duchamps, numa cena do filme Entr’acte, do diretor surrealista René Clair.

Mas as referências são para ir um pouco além. No mundo maluco que Alice vai parar, onde nada parece dialogar com sentido e lógica, é que encontramos um diálogo com o atual. “O nome nasceu de nós três. Queríamos trabalhar o aspecto da literatura e do surrealismo, mas também com o que é visto. O universo da Alice não tem realidade, mas é uma relação com a nossa vivência. Um mundo de gente malucas onde até o chapeleiro questiona a sanidade”, diz Reiner.

Serviço

A exposição Alice, Não Quero Ficar Entre Gente Maluca fica em cartaz até 27 de agosto, de segunda a sexta-feira, das 8h30 às 18h30, na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da USP (R. da Biblioteca, 21, Cidade Universitária, em São Paulo). Entrada grátis. Mais informações podem ser obtidas pelo telefone (11) 2648-0841.



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