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Kalungas mapeam ocupação e recursos naturais de seu território utilizando georreferenciamento

Imagem editada e redimensionada de Antonio Afras, está disponível no Wikimedia e licenciada sob CC by 4.0
  • Pela primeira vez em 300 anos, o maior quilombo remanescente do Brasil mapeou a ocupação e os recursos naturais de seu território por meio de georreferenciamento.
  • Apenas metade do território Kalunga foi oficialmente titulado; o restante vive à mercê de garimpeiros e grileiros – o mapeamento digital irá ajudar a comunidade a reconhecer as áreas sujeitas a invasões.
  • Em fevereiro, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente reconheceu o território Kalunga como o primeiro do Brasil a integrar a rede de Territórios e Áreas Conservados por Comunidades Indígenas e Locais (TICCA).

Pela primeira vez em 300 anos, o maior quilombo remanescente do Brasil conhece cada centímetro de seu território. Graças a um projeto inédito de georreferenciamento, os Kalungas puderam mapear a ocupação, os recursos naturais, as melhores terras para cultivo e as áreas sob ameaça de invasões dos 262 mil hectares da área onde vivem, no norte de Goiás.

Situado próximo ao Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, o Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga ocupa um trecho de Cerrado conhecido por sua grande biodiversidade e sua abundância de recursos naturais — o território Kalunga possui nada menos que 879 nascentes, cuja maioria desagua no Rio Paranã, um dos afluentes do Rio Tocantins.

“Agora temos uma ferramenta importante para a gestão e proteção de nosso território. Ela nos ajudará a planejar nosso futuro”, diz Jorge Oliveira, presidente da Associação Quilombola Kalunga (AQK).

Os Kalungas tiveram suas terras oficialmente reconhecidas como território quilombola em 1996, mas apenas 55,3% da área foram titulados até agora. Isso abre espaço para que o restante do quilombo seja invadido por garimpeiros em busca de ouro e pedras semi-preciosas e por grileiros, que vêm limpando ilegalmente a vegetação nativa para cultivar nas terras Kalunga.

Líderes comunitários afirmam que os grileiros frequentemente registram um terreno de 5 hectares fora do território e depois usam esta base legal para criar uma fazenda de 700 hectares, grande parte dela invadindo o quilombo.

Mapear para conhecer e proteger

Para saber quais terras poderiam ser utilizadas para agricultura e quais precisariam de proteção para se defender contra invasões atuais e futuras, os Kalungas realizaram o registro e a classificação adequada de seus recursos via georreferenciamento — ou mapeamento digital. A prática consiste no uso de imagens aéreas para mapear uma grande variedade de características do solo com extrema precisão utilizando um sistema de coordenadas geográficas.

Extremamente cara devido ao tamanho do território, a perspectiva de ajuda para o mapeamento ficou ainda mais desanimadora com a eleição do presidente Jair Bolsonaro, que vem expressando hostilidade em relação ao povo quilombola desde antes da eleição para a presidência, argumentando que “nem para procriador ele serve mais”.

Antes da eleição de Bolsonaro, os Kalungas receberam um importante subsídio do Fundo Internacional de Parceria de Ecossistemas Críticos (CEPF), que é apoiado pela Agência Francesa de Desenvolvimento, a Conservação Internacional, a União Europeia, o Fundo Mundial para o Meio Ambiente, o governo do Japão e o Banco Mundial. O CEPF, criado em 2000, tem como objetivo a promoção da conservação de áreas biológicas de alta prioridade. Em 2018, o projeto de georreferenciamnto da Associação Quilombola Kalunga (AQK) foi selecionado para o programa, tornando-se um das 60 propostas do gênero no Cerrado.

A diretora de subsídios do CEPF, Peggy Poncelet, explica por que a AQK foi selecionada: “É muito difícil para as comunidades tradicionais obterem o reconhecimento de seus territórios, deixando-as vulneráveis à apropriação de terras. E porque esta comunidade está comprometida com a conservação da incrível biodiversidade encontrada em suas terras, foi importante para o CEPF fornecer-lhes os meios para seguir fazendo exatamente isso”.

Munidos de equipamentos e suporte técnico, os Kalungas realizaram um georreferenciamento detalhado de todo o seu território entre 2019 e 2021. Graças ao mapeamento digital, agora eles sabem exatamente onde vivem as 1.600 famílias da área, o que produzem, se têm acesso à eletricidade, o grau de preservação dos recursos hídricos e do solo da comunidade, que tipo de agricultura é adequada à terra, e muito mais.

O CEPF também financia os Kalungas em seus esforços educacionais, construindo uma consciência ambiental na região, particularmente no que diz respeito às 19 espécies ameaçadas da fauna e da flora que se encontram no território. Entre elas estão a Griffinia nocturna, planta que floresce à noite, e duas aves: o jacu-de-barriga-castanha (Penelope ochrogaster) e a águia-cinzenta (Harpyhaliaetus coronatus).

Onda de invasões

Os Kalungas esperam que o projeto de georreferenciamento sirva como uma ferramenta valiosa para ajudá-los a deter a mais nova onda de invasores.

Oliveira, da AQK, conta como foi alvo de violência em 2015: “Derrubaram minha casa e depois a queimaram, junto com meus campos, destruindo os 45 sacos de arroz que já havíamos colhido”. Oliveira, sua esposa e os oito filhos passaram dois anos trabalhando para recuperar as colheitas perdidas. Ninguém foi acusado do crime, e as agressões contra os Kalungas continuam. Em fevereiro, uma casa na comunidade de Vão de Almas foi demolida com uma motosserra.

Grileiros também estão destruindo a flora nativa do Cerrado, da qual os Kalungas extraem frutos como buriti, mangaba, cajuzinho do cerrado, pequi e castanha de baru como complemento à sua subsistência. “São exatamente estas áreas, ricas em frutas comestíveis e ervas medicinais, que [os invasores] estão abrindo caminho para as monoculturas”, diz Oliveira.

Em junho de 2020, grileiros limparam 500 hectares de vegetação nativa para plantar soja dentro do quilombo. Eles usaram o sistema de correntão, no qual uma corrente é suspensa entre dois tratores que avançam derrubando tudo o que encontram pelo caminho. Este modelo é amplamente condenado por seus danos ambientais, mas as correntes são facilmente encontradas para compra na internet, com vários vídeos mostrando como são utilizadas.

Os Kalungas prestaram queixa de roubo de terra às autoridades estaduais, que na época estavam preocupadas com a possibilidade de um boicote internacional às commodities brasileiras devido ao aumento de incêndios e desmatamento no Cerrado e na Amazônia. As autoridades investigaram a grilagem da terra e impuseram uma multa de 5 milhões de reais aos criminosos, além de agirem contra a mineração ilegal no quilombo e apreenderem equipamentos dos garimpeiros. Ainda assim, invasores seguem chegando ao território Kalunga.

Territórios para a Vida

Os Kalungas estão resistindo a essas invasões com confiança crescente e com o aumento do apoio internacional. No início de fevereiro, o Centro de Monitoramento da Conservação Mundial do Programa da ONU para o Meio Ambiente (UNEP-WCMC) reconheceu o Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga como o primeiro TICCA (Territórios e Áreas Conservados por Comunidades Indígenas e Locais) no Brasil.

Este título só é concedido a territórios tradicionais bem conservados nos quais as comunidades mantêm uma profunda conexão com o lugar onde habitam, praticam processos internos efetivos de gestão e governança da terra e possuem um bom histórico na promoção do bem-estar do povo —criando o que o UNEP-WCMC chama de “Territórios para a Vida”.

Rafaela Nicola, coordenadora do Consórcio TICCA e diretora da Wetlands International no Brasil, descreve o primeiro passo para conquistar o título: “O que é diferente em nosso processo é que as próprias comunidades, durante as reuniões em que discutem as ferramentas que utilizam para o empoderamento e para o planejamento territorial, trabalham a questão de como se tornar um TICCA se encaixaria nas visões de si mesmas.”

O pedido de reconhecimento de uma comunidade é então revisado não por burocratas, mas por líderes de territórios tradicionais já reconhecidos como TICCAs, para avaliarem se o candidato preenche os requisitos.

Oliveira, presidente da AQK, acredita que o reconhecimento TICCA também ajudará a convencer os jovens a permanecerem no quilombo. “Hoje muitos partem para estudar e não voltam porque querem a segurança do direito à terra e mais oportunidades para aumentarem suas rendas.”

No momento, a pequena renda em dinheiro do quilombo é quase que inteiramente proveniente de um único projeto de turismo sustentável, administrado por apenas uma das comunidades. Durante o período de férias na estação seca, a comunidade Engenho II, no município de Cavalcante, recebe turistas em busca das numerosas cachoeiras da região.

A atividade, suspensa durante a pandemia da covid-19, proporcionou uma renda a 300 guias de diferentes comunidades, todos treinados pela AQK, ao mesmo tempo em que promoveu a venda de artesanato comunitário e produtos do Cerrado.

A conclusão do projeto de mapeamento digital do território Kalunga preparou o caminho para o turismo no futuro ao identificar outros 69 atrativos naturais com potencial para serem promovidos após consulta às comunidades.

Outros benefícios trazidos pelo georreferenciamento são o maior conhecimento dos solos da região e sua fertilidade natural, bem como a melhor compreensão da topografia e da disponibilidade de água, resultando num uso mais eficiente da terra. A adoção de tecnologia apropriada trará maiores rendimentos agrícolas sem a degradação dos recursos naturais do território.


Fonte: Thaís Borges e Sue Branford em Mongabay – Licenciado sob Creative Commons Attribution-NoDerivatives 4.0 International License


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