Hortas comunitárias, saberes tradicionais e cultivo de plantas nativas ganham protagonismo em territórios urbanos, promovendo justiça alimentar, saúde mental e regeneração ambiental
Às margens do concreto e do asfalto, brotam novas formas de vida. Hortas urbanas emergem em terrenos antes negligenciados por governos e planejadores, e, nas mãos de moradores engajados, se transformam em espaços de resistência e renovação. Nessas áreas, o cultivo de alimentos deixa de ser privilégio rural e passa a integrar a paisagem das grandes cidades, redefinindo o conceito de desenvolvimento urbano com base em autonomia alimentar, pertencimento e saúde coletiva.
No Harlem, em Nova York, o projeto Harlem Grown virou referência de como a agricultura urbana pode ser um instrumento poderoso contra a insegurança alimentar. Desde 2011, essa iniciativa ocupa um terreno abandonado com produção de alimentos frescos que abastecem famílias locais — só em 2023, foram mais de 150 mil porções. Além de distribuir comida de verdade, também oferece formação para crianças a partir dos cinco anos, reforçando o vínculo entre juventude e alimentação consciente.
Nova York, aliás, abriga uma rede vibrante de agricultores urbanos, chefs, nutricionistas e coletivos comunitários que unem esforços para encurtar as cadeias alimentares e fortalecer a autonomia de bairros periféricos. Nos bairros mais vulneráveis, como o Bronx, hortas comunitárias surgem como resposta à dominação do fast food e à ausência de mercados com frutas e hortaliças frescas. O contraste com zonas abastadas como o Upper East Side é gritante, evidenciando o papel da agricultura urbana como estratégia de justiça alimentar.
Esses jardins urbanos, no entanto, não se restringem à produção de comida. Estudos mostram que o contato direto com a terra favorece a saúde mental. A simples atividade de plantar estimula a liberação de serotonina — associada ao bem-estar — graças à presença da bactéria Mycobacterium vaccae no solo. Práticas como hortas terapêuticas e agricultura assistida também têm efeito comprovado na redução de ansiedade, depressão e isolamento social.
A experiência escocesa reforça esses benefícios. Em Edimburgo, o Murrayburn and Hailes Neighborhood Garden organiza refeições coletivas que atraem pessoas em situação de solidão ou melancolia leve. Nesses encontros, a comida serve de ponte para a convivência e o cuidado mútuo. E é nesse mesmo contexto que redes de mulheres têm ganhado protagonismo, como no Calders Garden, onde integrantes da cooperativa Grass Roots Remedies cultivam plantas medicinais e trocam conhecimentos ancestrais sobre fitoterapia.
Plantar, colher e transformar alimentos nas cidades também é um ato político. Jovens agricultoras de Nova York formadas na Farm School NYC defendem que a agricultura urbana é ferramenta de resistência — uma forma de confrontar os sistemas alimentares industriais, que dependem de longas cadeias logísticas e combustíveis fósseis, além de substituir culturas alimentares locais por produtos ultraprocessados.
Muitas dessas mulheres entrevistadas, tanto na América do Norte quanto no Reino Unido, estão liderando a ocupação de espaços urbanos negligenciados para criar hortas comunitárias e cozinhas de ervas. Defendem que o consumo consciente não pode se limitar à escolha do que comprar: passa também por produzir, transformar e compartilhar o alimento, integrando esse ciclo ao cotidiano da cidade.
Transformar essa lógica exige mudanças estruturais. É possível vincular o licenciamento de novos empreendimentos urbanos à exigência de áreas verdes destinadas ao cultivo comunitário, dentro ou ao redor dos condomínios. Tal medida pode inserir de forma orgânica a agricultura urbana no planejamento urbano, promovendo regeneração ambiental, redução da pegada de carbono e aumento da biodiversidade.
Localizar os sistemas alimentares, reduzindo a distância entre produção e consumo, é mais que uma tendência. É uma estratégia de sobrevivência urbana que resgata saberes esquecidos, fomenta vínculos comunitários e transforma as cidades em territórios férteis — física, social e emocionalmente. Em vez de esperar por soluções de cima, comunidades assumem o protagonismo de cuidar do solo, da comida e umas das outras. E esse, talvez, seja o maior alimento para o futuro.