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Biodiversidade pode sustentar novo ciclo de industrialização no Brasil

A fonte mais promissora de geração de riqueza e valor no Brasil das próximas décadas pode estar bem debaixo dos nossos pés e diante dos nossos olhos. A biodiversidade dos seis biomas do país – ou sete, se considerarmos o mar –, a disponibilidade de terra, água e incidência de sol e as técnicas avançadas de cultivo em várias culturas são a base de um tipo de atividade econômica regenerativa, circular e sustentável que ganha destaque no mundo há mais de uma década: a bioeconomia.

A transição econômica sustentável abre uma oportunidade única para o Brasil, país com a maior biodiversidade do planeta. Além da floresta amazônica, célebre pela profusão de espécies vegetais e animais, o Cerrado é a savana tropical mais biodiversa do mundo e a Caatinga a estepe savânica mais biodiversa, segundo o climatólogo Carlos Nobre, pesquisador sênior do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e copresidente do Painel Científico para a Amazônia, iniciativa da Organização das Nações Unidas (ONU) para reunir conhecimento sobre a região. O mar, nos 8.500 quilômetros de costa, também oferece imenso potencial a ser explorado. Mas a ocasião exige um esforço para adaptar processos econômicos e a mudança precisa ser rápida: com a crise climática e o avanço do desmatamento, o risco de que esses recursos se percam é real.

Há várias definições para a bioeconomia. Em 2009, a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) publicou o documento Bioeconomia até 2030: Projetando uma agenda de políticas, que define o termo como “um mundo onde a biotecnologia representa uma parcela significativa da produção econômica, guiada por princípios de desenvolvimento sustentável”. No Brasil, o então Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC, hoje MCTI) publicou em 2019 um Plano de Ação em Ciência, Tecnologia e Inovação em Bioeconomia (Pacti Bioeconomia), em que o conceito foi definido como o “conjunto de atividades econômicas baseadas na utilização sustentável e inovadora de recursos biológicos renováveis (biomassa), em substituição às matérias-primas fósseis, para a produção de alimentos, rações, materiais, produtos químicos, combustíveis e energia produzidos por meio de processos biológicos, químicos, termoquímicos ou físicos”.

De acordo com o economista Edson Talamini, coordenador do Núcleo de Estudos em Bioeconomia Aplicada ao Agronegócio (NEB-Agro) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a bioeconomia envolve a análise dos processos de produção segundo um conceito de sustentabilidade mais forte do que somente as emissões de gás carbônico. Também entram na conta a sustentabilidade social e econômica, mas, sobretudo, a própria eficiência termodinâmica. “Alguns processos podem parecer sustentáveis do ponto de vista do preço ou da geração de emprego, mas, quando olhamos de perto, o gasto para gerar um efeito é maior, com consequências irreversíveis”, afirma. “A bioeconomia trata de processos no nível molecular e permite comparar atividades produtivas em termos de sustentabilidade.”

Reindustrialização

Pesquisadores brasileiros envolvidos com a bioeconomia identificam no conceito não apenas uma oportunidade de crescimento econômico, mas também o ponto de partida de um novo ciclo de industrialização. O epicentro desse dinamismo viria, provavelmente, da floresta amazônica. O bioma oferece condições para impulsionar indústrias fundadas na inovação e na sustentabilidade, segundo o documento Amazônia e bioeconomia, publicado recentemente pelo Instituto de Engenharia com a colaboração de cientistas da Embrapa, do Inpe e das universidades de São Paulo (USP), Estadual de Campinas (Unicamp), entre outras.

A Amazônia atrai as atenções também porque nela está o arco do desmatamento, além de sofrer com a degradação ambiental causada pela construção de hidrelétricas e dos garimpos que avançam descontroladamente, inclusive sobre terras indígenas. Conhecido pela tese de que, a partir de um certo grau de destruição da floresta, a região amazônica poderá passar por um processo de “savanização”, com a ampliação do período de seca, Nobre considera que a corrida contra o relógio para manter o bioma a salvo já está apertada. Dados colhidos pelo Inpe sugerem que em partes degradadas da Amazônia, no norte de Mato Grosso e sul do Pará, a capacidade de absorção de carbono já foi perdida e a floresta tem se convertido em emissora do principal gás causador do efeito-estufa.

Nobre é idealizador do projeto Amazônia 4.0, que põe o amplo bioma sul-americano no coração de uma potencial revolução bioindustrial. O cientista se refere ao projeto como “bioeconomia da floresta em pé”, que se desdobraria em produtos com diferentes graus de complexidade e aplicação de tecnologia. Conjugando a pesquisa biotecnológica com técnicas extrativas, de manejo florestal e agricultura regenerativa, a iniciativa se propõe a abrir uma “terceira via amazônica” para a ocupação da floresta. Essa via se contrapõe à ideia de simplesmente reservar grandes áreas para preservação, deixando o restante para atividades econômicas pouco sustentáveis (primeira via) e ao princípio de intensificação da agropecuária, mineração e geração de energia nas áreas já ocupadas (segunda via).

Para José Vitor Bomtempo, coordenador do Grupo de Estudos em Bioeconomia da Escola de Química da Universidade Federal do Rio de Janeiro (GEBio-EQ/UFRJ), a possibilidade de reindustrializar o país em novas bases é uma oportunidade única. Diferentemente do esforço de modernização do século passado, não se trata mais de “correr atrás” de tecnologias e setores já existentes. Dessa vez, tanto a possibilidade quanto o desafio estão em colocar o país na fronteira tecnológica desde o princípio.

Em 2018, o estudo A bioeconomia brasileira em números, publicado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), calculou que o valor de negócios atribuíveis à bioeconomia brasileira somava US$ 285,9 bilhões no país, incluindo exportações. O estudo é assinado por Bomtempo, o engenheiro Martim Francisco de Oliveira e Silva e o engenheiro químico Felipe dos Santos Pereira, ambos do BNDES. À época, o valor correspondia a 13,8% do PIB do país. É uma porcentagem um pouco abaixo daquela calculada em 2013 para a bioeconomia praticada na União Europeia, que ficou em 14,3%.

Isso não significa que o Brasil aproveite bem o seu potencial. “Esse número incorpora a produção e a exportação de commodities agrícolas, que agregam pouco valor. A chamada bioeconomia avançada é pequena no país”, afirma Bomtempo. O estudo mostra que o atual conteúdo da bioeconomia na indústria e nos serviços alcança meros US$ 101,4 bilhões, correspondendo a 2,6% do valor da produção nesses setores no Brasil. “O que esses dados mostram é um ponto de partida. É o piso da bioeconomia brasileira”, completa.

Os mais conhecidos exemplos da bioeconomia no Brasil são os de grandes empresas que exploram a biodiversidade para produzir bens de consumo, combustíveis e materiais biodegradáveis. É o caso da Natura, no setor de cosméticos. O setor de energia apresenta alguns dos principais casos de sucesso. A Raízen produz etanol de segunda geração em uma usina de Piracicaba (SP), assim como a Granbio, em São Miguel dos Campos (AL). O etanol de segunda geração é produzido a partir do bagaço da cana e outros resíduos agrícolas.

Segundo Bomtempo, um obstáculo para o pleno desenvolvimento da bioeconomia é o caráter ainda esparso dessas iniciativas. Ele toma o exemplo das refinarias de petróleo e dos polos petroquímicos para explicar o processo de agregação de processos industriais que deverá se reproduzir com as chamadas biorrefinarias. Assim como o setor petrolífero extrai das matérias-primas uma enorme diversidade de produtos, desde combustíveis até princípios ativos de medicamentos, as biorrefinarias poderiam aproveitar todas as partes de insumos agrícolas e extrativos (casca, polpa, bagaço, palha, caroço) para gerar alimentos, biocombustíveis e outros biomateriais.

Bomtempo aposta também em biorrefinarias de segunda geração, polos onde diversas empresas atuam de modo coordenado, com os resíduos de umas servindo de matéria-prima para outras e as cadeias integradas, em “simbiose industrial”. Um projeto nessa direção está instalado nas proximidades de Reims, na França, e se chama ARD (Agroindústria Pesquisas e Desenvolvimentos). “Ali ocorrem atividades diferentes, que se complementam. O resíduo de uma indústria é insumo de outra. Usam trigo, beterraba, alfafa, produtos muito diversos, para produzir diferentes tipos de bens. É um núcleo industrial harmonioso, que se complementa, incluindo uma unidade de pesquisa”, resume.

O economista com graduação em engenharia agronômica José Maria Ferreira Jardim da Silveira, do Instituto de Economia da Unicamp, refere-se a essa tendência, que considera essencial para a viabilidade da bioeconomia, como ganho de “economia de escopo”, ou seja, da eficiência da produção que decorre da variedade dos produtos, e não do volume. Assim, se hoje algumas fazendas de cana-de-açúcar geram energia pela queima da palha e do bagaço, Silveira sugere que poderia se desenvolver uma fábrica de biogás de grande porte, que aproveite também o lixo das cidades. Em seguida, outros processos se somariam. “A vinhaça que resulta da produção de etanol de segunda geração pode produzir biogás. Já a celulose tem compostos que também fornecem biocombustíveis. E assim começa a se desenvolver uma biorrefinaria eficiente”, completa.

Por enquanto, esses modelos ainda estão engatinhando, com alguns protótipos de biorrefinarias funcionando em laboratórios de universidades e startups. Na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), no laboratório do Grupo de Intensificação, Modelagem, Simulação, Controle e Otimização de Processos (Gimscop), dirigido pelo engenheiro químico Jorge Otávio Trierweiler, pesquisadores desenvolvem Unidades Modulares Automatizadas (UMA) com usinas descentralizadas e monitoradas remotamente por uma central. Nessas unidades, Trierweiler destaca três pesquisas: a geração de etanol, açúcar e aguardente a partir da batata-doce; a pirólise rápida (um processo necessário para obtenção de óleo a partir de biomassa); e o desenvolvimento de microalgas para uso em biorremediação (limpeza) de solos e água, além da produção de bio-óleo e outros derivados. Segundo Trierweiler, os dois primeiros processos se encontram nas fases de maturação TRL (Technological Readiness Level) 3 e 4, de uma escala com nove níveis.

Pesquisa avançada

A bioeconomia exige algo além da biodiversidade e da disponibilidade de recursos. Ela é intensiva em conhecimento. Precisa tanto da ciência mais avançada, na pesquisa de novos produtos e no aperfeiçoamento dos existentes, quanto dos saberes tradicionais, mantidos pelas comunidades coletoras que manejam a floresta e outros biomas há gerações.

No plano da pesquisa avançada, três programas da FAPESP têm vínculo com a bioeconomia, embora sejam anteriores ao uso do termo no Brasil, observa o físico Carlos Henrique de Brito Cruz, vice-presidente sênior de Redes de Pesquisa da editora acadêmica Elsevier e diretor científico da Fundação entre 2005 e 2020. O Programa de Pesquisas em Caracterização, Conservação, Restauração e Uso Sustentável da Biodiversidade (Biota), lançado em 1999, visa catalogar e caracterizar a biodiversidade brasileira. O Programa de Pesquisa em Bioenergia (Bioen) desde 2009 investiga fontes de energia como bioetanol, biodiesel e biogás, enquanto o Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais (PFPMCG), desse mesmo ano, visa propor medidas e tecnologias de mitigação de consequências das mudanças climáticas.

“Antes mesmo de o mundo falar de bioeconomia, os cientistas trouxeram esse assunto para a FAPESP, chamando a atenção para a importância da bioenergia, da biodiversidade, da mudança climática”, afirma Brito Cruz, um dos participantes do estudo Amazônia e bioeconomia. “São exemplos de como a ciência mostra um caminho para um país, porque é papel do cientista ver mais longe, estudando o que vem pela frente e conectando com os problemas atuais.”

“O Bioen começou com foco em explorar os potenciais da cana-de-açúcar, mas já com uma preocupação forte em expandir as fontes de biomassa, que são riquíssimas no Brasil”, relembra a bioquímica Glaucia Souza, professora do Instituto de Química da USP e integrante da coordenação do programa. “Sabíamos que seria um tema crucial para o futuro aqui e no mundo, com a possibilidade de explorar outros biomateriais, substituindo até mesmo o cimento, a partir da lignina.”

Para o físico Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física da USP e integrante da coordenação do Programa de Mudanças Climáticas, uma das motivações para sua criação  foi a constatação de que “nenhum setor econômico vai ser poupado dos impactos das mudanças climáticas. Vamos precisar mudar nosso sistema socioeconômico, porque o atual não é sustentável nem mesmo a curto prazo em um planeta com recursos naturais finitos”.

“A questão é: como vai ser a transição para um sistema econômico mais sustentável, que use os recursos naturais do planeta de modo mais inteligente e eficiente e que diminua as desigualdades sociais? São questões-chave, que precisam ser respondidas pela ciência. Se a resposta não tiver base científica sólida, nossa sociedade vai estar sempre à mercê de interesses econômicos”, afirma.

De acordo com Brito Cruz, a adoção de tecnologias e conhecimentos desenvolvidos em universidades e laboratórios brasileiros fornece a ocasião para pensar as relações entre o setor privado e o Estado. Em sua avaliação, este último deve atuar onde as empresas não investem, seja por excesso de risco, seja por escassez de retorno. O investimento estatal deve complementar e induzir, mas não substituir, o investimento privado em P&D.

Paulo Camuri, economista sênior do World Resources Institute do Brasil (WRI Brasil), considera que a sinalização do setor público é indispensável, ainda que o país atravesse um momento de restrição fiscal. “O governo dá as diretrizes de política, com planos a serem implementados. Instituições como o BNDES podem investir parte do que é necessário. Em seguida, o capital privado entra com a maior parcela do recurso. As empresas estão procurando projetos para viabilizar uma economia sustentável, mas nem sempre sabem onde. O governo pode reduzir a incerteza”, argumenta.

No estudo “Uma nova economia para uma nova era”, lançado no ano passado,  pesquisadores do WRI Brasil mapearam os benefícios e potencialidades da descarbonização da economia brasileira. A bioeconomia é um componente importante da proposta do WRI. “O capital natural, se bem manejado, vai ser o grande diferencial do novo modelo de crescimento do país, com maior inclusão social. Não é preciso escolher entre crescer mais, com mais inclusão social, e ser ambientalmente mais sustentável. A descarbonização leva a um crescimento maior e a mais inclusão social do que se continuarmos a fazer como hoje”, afirma Camuri.

Na área rural, um exemplo de como o setor público pode dar diretrizes para a atuação do setor privado é o Plano Setorial de Mitigação e de Adaptação às Mudanças Climáticas para a Consolidação de uma Economia de Baixa Emissão de Carbono na Agricultura (Plano ABC), indica Camuri. Lançado em 2010 pelo Ministério da Agricultura, o plano ganhou uma nova versão em abril deste ano, o ABC+. “O plano facilita o acesso a diversas tecnologias que reduzem emissões, como a integração lavoura, pecuária, floresta”, diz. Os maiores obstáculos à sua implantação, explica o economista, têm sido a assistência técnica insuficiente e a falta de recursos. A política federal de financiamento à produção agrícola (plano Safra) movimentou R$ 236 bilhões em 2020, um terço do necessário para a produção agropecuária no Brasil. O plano ABC responde por pouco mais de 1% desse valor: R$ 2,5 bilhões em 2020. Para Camuri, a transição para a bioeconomia requer o fortalecimento do Plano ABC+, “na direção de fazer com que ele seja praticamente todo o plano Safra. Essa seria uma sinalização importante para o setor privado”.

O produto que mais se destaca como exemplo bem-sucedido de extrativismo e manejo florestal é o açaí. Na Amazônia, esse fruto da palmeira movimenta R$ 3 bilhões ao ano, com impacto econômico local de R$ 144 milhões na extração e R$ 146 milhões no cultivo, de acordo com o último balanço social publicado pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), em 2019. Consumido originalmente com farinha e peixe, o produto ganhou novas formulações em outras regiões do Brasil e na última década passou a ser exportado. Somando o açaí e produtos como babaçu, castanha, cumaru, a região Norte se destaca na produção florestal não madeireira com 45% da produção nacional, totalizando mais de R$ 700 milhões ao ano. Em segundo lugar, aparece a região Sul, com 29% da produção extrativista, ou R$ 445 milhões anuais.

No total, o extrativismo não madeireiro movimenta anualmente R$ 1,6 bilhão no país, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A engenheira-agrônoma Sandra Regina Afonso, pesquisadora do Serviço Florestal Brasileiro e docente da Universidade de Brasília (UnB), ressalva que o dado não é preciso e certamente subestima o valor gerado por essas atividades. Para produtos como o pequi, colhido no norte de Minas Gerais e no Centro-Oeste e Nordeste, até 2014 era contabilizado somente o pequi utilizado para a produção de óleo, mas não o fruto para alimento. Para o babaçu, do Nordeste e do Norte, entra no cálculo somente a amêndoa, mas não os produtos oriundos do coco.

Afonso organizou o livro Bioeconomia da floresta: A conjuntura da produção florestal não madeireira no brasil, publicado pelo Serviço Florestal Brasileiro. A publicação apresenta informações sobre os principais produtos não madeireiros e aborda políticas e programas que tratam do tema, como o Plano Nacional de Promoção das Cadeias dos Produtos da Sociobiodiversidade, de 2009, e o Programa Bioeconomia Brasil Sociobiodiversidade, de 2019. “Atualmente, o extrativismo de produtos florestais não madeireiros se relaciona com o manejo da floresta. O uso dos produtos está vinculado à cultura das pessoas”, comenta. “A palavra sociobiodiversidade expressa esse novo entendimento. Quando entra a palavra bioeconomia, soma-se o tema da tecnologia e inovação. Os produtos da floresta começam a ganhar valor agregado e qualidade, para serem comercializados em escala maior.”

Desafios

Os pesquisadores alertam que não será simples fomentar o desenvolvimento e a reindustrialização pela bioeconomia no Brasil. A iniciativa exigirá a convergência de atuação do Estado, do setor privado e das instituições científicas. “A bioeconomia é uma bandeira, um princípio de ação que gera políticas públicas e incentivos aos agentes privados”, resume Silveira, da Unicamp. Como exemplo, o economista aponta para a importância de afinar a regulação legal com o avanço da tecnologia. Por meio da regulação, atinge-se o nível de padronização necessário ao desenvolvimento de mercados. O exemplo de Silveira é o biogás, cuja forma mais simples é obtida a partir de resíduos vegetais e animais, servindo apenas para queima. “Com a evolução da tecnologia, surgiu o biometano que pode ser lançado nas redes de gás natural que abastecem, por exemplo, as cidades. Para isso, foi preciso regulação e padronização, que permitiu maior escala”, diz.

Segundo Souza, da USP, um dos principais entraves ao avanço da bioeconomia é a falta de “um esquema claro, transparente, estável, previsível, de políticas públicas em escala global”, que harmonize padrões e legislação, proporcionando a segurança necessária para empresas investirem. “Se uma grande empresa de navegação decidir adotar um biocombustível, por exemplo, como garantir que haverá um mercado capaz de fornecê-lo em escala suficiente?” Souza também considera que é necessário evoluir em mecanismos de certificação e rastreamento dos produtos, evitando que a bandeira da sustentabilidade seja usada de maneira leviana para comercializar produtos poluentes.

A legislação foi um grande entrave para o desenvolvimento do setor no Brasil ao longo das últimas décadas, de acordo com o biólogo Carlos Alfredo Joly, professor do Instituto de Biologia da Unicamp e integrante da coordenação do programa Biota FAPESP. “Desde o começo, o Biota contempla uma dimensão importante de bioprospecção [busca e identificação de moléculas e processos metabólicos de plantas, animais e microrganismos  com potencial de aproveitamento econômico] com aplicação econômica direta. Mas as medidas provisórias que regularam a matéria [2.052/2000 e 2186-16/2001] trouxeram incerteza jurídica e afastaram o setor produtivo. Tínhamos contatos com a indústria farmacêutica e a de cosméticos, mas essa regulação foi um golpe quase fatal”, lamenta. “Isso só mudou depois da Lei da Biodiversidade [13.123/2015] e do Decreto que a regulamentou [8772/2016].” Embora tenham diminuído, as dificuldades persistem, relata o biólogo, citando a lentidão para implementar o Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Genético e do Conhecimento Tradicional Associado (SisGen).

Para Nobre, o desenvolvimento da bioeconomia amazônica passa pela instalação de “laboratórios criativos” na região, em conjunção com o ecossistema de universidades e centros de pesquisa hoje subaproveitados. O projeto Amazônia 4.0 conta com instalações experimentais em São José dos Campos, em São Paulo, e busca financiamento para operar na própria Amazônia. Esses laboratórios já produzem derivados de cacau e cupuaçu (chocolate e cupulate), além de azeites gourmet a partir de castanha, tucumã, bacuri e patauá.

Apesar da existência do Pacti Bioeconomia, Talamini, da UFRGS, lamenta que os planos para as políticas públicas sejam modestos. “Pelo potencial que tem, o Brasil está acordando tarde para a bioeconomia. Existem iniciativas interessantes, na Embrapa, nas universidades, nas empresas, mas sem uma coordenação central”, adverte. “Como é um país de base agrícola forte, fala-se em aproveitar resíduos, fala-se em gerar energia, mas não se vai muito além. A produção de conhecimento é pouco explorada”, enumera Talamini, e propõe uma comparação: na Europa, as pesquisas se concentram em modos de aproveitar a biomassa. Nos Estados Unidos, a ênfase está na biotecnologia. “O Brasil poderia atacar as duas frentes, porque tem água, luz e terra para produzir biomassa. Tem uma biodiversidade incrível. E tem pesquisadores para desenvolver tecnologia que transforme a biodiversidade em valor”, observa.

Bomtempo, por sua vez, chama a atenção para iniciativas recentes do projeto Oportunidades e Desafios da Bioeconomia (ODBio), derivadas do Pacti e conduzidas pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), do ministério. Segundo o professor da UFRJ, o ODBio é um esforço para acelerar os avanços no setor.

Para Talamini, a pandemia abriu os olhos do mundo para a necessidade de uma recuperação econômica ecológica, o que configura uma oportunidade enorme para o Brasil. No entanto, o potencial da bioeconomia vai depender das escolhas do país. “No passado, escolhemos ser exportadores de commodities. Temo que o mesmo aconteça com a bioeconomia. Vamos exportar biodiversidade e importar materiais de alto valor agregado, se pusermos o foco só no insumo. É preciso lembrar dos processos. Isso envolve integrar, incentivar e promover conhecimentos”, diz.

Na pele e no cabelo

O caso mais citado de iniciativa empresarial bem-sucedida que utiliza insumos oriundos da sociobiodiversidade em produtos vendidos mundo afora é o da Natura, empresa brasileira do setor de cosméticos fundada em 1969. “É um caso interessante, porque, de fato, os cosméticos são um setor em que o Brasil tem muito potencial para avançar em produtos de base biológica”, afirma o economista e engenheiro químico José Vitor Bomtempo, coordenador do Grupo de Estudos em Bioeconomia da Escola de Química da Universidade Federal do Rio de Janeiro (GEBio-EQ/UFRJ). De acordo com a consultoria Euromonitor, o setor de higiene pessoal, perfumaria e cosméticos faturou R$ 122,4 bilhões no Brasil no ano passado, com crescimento de 4,7% em relação a 2019, enquanto o PIB do país caiu 4,1%.

A principal marca ligada à sociobiodiversidade da empresa é a linha Ekos, lançada em 2000, com produtos de cuidados para o corpo e cabelo que empregam ingredientes naturais. Esse material vem substituindo os sintéticos, no processo que passou a ser chamado de “vegetalização dos ingredientes”. Segundo estudo da consultoria Grand View Research, o mercado global de cosméticos naturais deve atingir US$ 48 bilhões em 2025.

Data desse período o foco da Natura na região amazônica, que culminou em 2011 com a criação do Programa Amazônia, graças ao qual a empresa afirma ter conseguido preservar um território de 2 milhões de hectares no bioma, contabilizando as áreas de fornecimento das comunidades com as quais mantém parcerias e a área de três unidades de conservação, as reservas de Desenvolvimento Sustentável Uacari (Amazonas) e Rio Iratapuru (Amapá) e a reserva extrativista do Médio Juruá (Amazonas).

O programa põe em ação diversos pontos associados por pesquisadores à bioeconomia, com destaque para o investimento em pesquisa de ponta e a parceria com produtores locais e co-operativas agroextrativistas. O principal símbolo do investimento em pesquisa científica é o complexo industrial Ecoparque, instalado no município paraense de Benevides, em uma área de 172 hectares. Além da fabricação de sabonete em barra, o centro pesquisa o desenvolvimento de novas cadeias produtivas a partir de espécies vegetais ainda não aproveitadas. Outras empresas também se instalaram no local para fazer pesquisa, como a alemã Symrise.

O complexo está vinculado ao Núcleo de Inovação Natura na Amazônia (Nina), que mantém parcerias com entidades como a Universidade Federal do Amazonas (Ufam), o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam) e a Empresa Brasileira de Agropecuária (Embrapa).

Em 2020, a Natura anunciou um volume de negócios vinculados à sociobiodiversidade da ordem de R$ 2,14 bilhões. Segundo a empresa, seus produtos empregam 38 bioingredientes, com 17,8% dos insumos oriundos da Amazônia, em parceria com comunidades fornecedoras que somam 7.039 famílias. O primeiro contrato foi com a Cooperativa Mista dos Produtores e Extrativistas do Rio Iratapuru (Comaru), do município de Laranjal do Jari, no Amapá. A cooperativa maneja a castanha e o breu branco, usados na linha Ekos. Em todo o país, a empresa contabiliza parcerias em 40 comunidades nas cadeias produtivas da sociobiodiversidade, envolvendo 8.300 famílias.

No ano passado, a Natura anunciou a iniciativa “Nós da Floresta” com a Rede Jirau Agroecologia e as organizações não governamentais Saúde e Alegria e Conexões Sustentáveis (Conexsus), visando fortalecer o ecossistema de inovação e empreendedorismo na região. A iniciativa identifica três desafios que devem ser superados para promover o avanço da bioeconomia: fomentar a criação de negócios locais, solucionar impasses em cadeias produtivas e aumentar o faturamento de organizações comunitárias.


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