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A Serra das Almas se estende por 6.285 hectares e é a maior Reserva Particular do Patrimônio Natural do Ceará; em 20 anos, roças e pastagens foram substituídas por uma vegetação exuberante, que logo atraiu de volta a fauna da região

Por Kevin Damasio em Mongabay |

  • Com mais de 800 espécies animais e vegetais registradas, a reserva abriga boa parte da biodiversidade da Caatinga, incluindo espécies ameaçadas como o raro tatu-bola-da-caatinga, o arapaçu-do-nordeste e o guariba-da-caatinga.
  • A Associação Caatinga, proprietária e administradora da Reserva Natural Serra das Almas, fomenta a criação de áreas protegidas no bioma, com apoio a 26 RPPNs e três Unidades de Conservação públicas, além de 15 planos de manejo, que somam 103,6 mil hectares.
  • Com as nascentes do Rio Poti sempre perenes, a reserva colabora para a segurança hídrica da população das 40 comunidades do entorno. Além disso, fornece ferramentas para melhorar as condições de vida no semiárido nordestino, como cisternas de placa e sistemas de reaproveitamento da água usada nas casas.

A floresta se perde de vista do alto de um dos mirantes da Reserva Natural Serra das Almas, situada em Crateús, a 400 quilômetros de Fortaleza, no Ceará. É abril, final do período chuvoso, e as árvores seguem com suas folhas verdes e floridas no sertão. Essa área protegida de 6.285 hectares abriga, a um só tempo, grande parte das espécies da Caatinga e resguarda nascentes que contribuem para a segurança hídrica das comunidades do entorno.

Desde que virou Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), em setembro de 2000, a paisagem da Serra das Almas transformou-se de roças e pastagens para uma vegetação exuberante, uma recomposição acelerada pela restauração florestal. A fauna logo retomou seu espaço e sua dinâmica natural.

Há registro de 485 de plantas, 45 espécies de mamíferos, 45 de répteis, 230 de aves e 33 de anfíbios. Lá habitam o arapaçu-do-nordeste, a jacucaca e o vira-folha-cearense, espécies que integram o Plano de Ação Nacional para Conservação das Aves da Caatinga, e quatro das seis espécies de felinos do bioma – onça-parda, jaguatirica, gato-do-mato-pequeno e gato-mourisco. Na região houve ainda o reaparecimento do guariba-da-caatinga (Alouatta ululata), primata ameaçado de extinção.

A grande surpresa da biodiversidade da Serra das Almas aconteceu em 12 de julho de 2022.  O biólogo Samuel Portela retornava para a reserva quando avistou, na estrada de terra, um tatu-bola-da-caatinga (Tolypeutes tricinctus) – uma espécie-símbolo do semiárido brasileiro, mas cujo último registro no estado acontecera em 2008.

Portela parou e desligou o carro, tirou as botas, desceu do veículo descalço e começou a filmar com o celular. Por estar contra o vento, conseguiu se aproximar do animal sem ser notado. “Deu para perceber ele caminhando, farejando, comendo alguns insetos na estrada e no campinho. Ele cavou algumas tocas lá dentro, muito provavelmente para buscar alimento dentro da terra”, recorda.

Portela sabia da importância daquele raro encontro. Coordenador técnico da Associação Caatinga, instituição proprietária e administradora da Reserva Natural Serra das Almas, ele organizou duas expedições para o Cânion do Rio Poti, na divisa do Ceará com o Piauí, para investigar a área de ocorrência do tatu-bola-da-caatinga, em 2016 e 2017. Na ocasião, os pesquisadores encontraram indivíduos no leste piauiense, porém, no oeste cearense, nem os relatos de moradores locais davam conta da presença da espécie nos últimos anos.

Os esforços de conservação da Serra das Almas e seu entorno contribuíram para o reaparecimento dessa espécie de tatu no estado, avalia o biólogo Hugo Fernandes, coordenador do Livro Vermelho de Espécies Ameaçadas da Fauna do Ceará, da Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Sustentabilidade. O tatu-bola-da-caatinga, considerado “em perigo” pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), encontra-se em uma situação ainda mais delicada no Ceará, sob o status de “criticamente ameaçado”.

O desaparecimento do tatu-bola-da-caatinga no território cearense é provavelmente um processo secular, mas passou a ser documentado com dados na década de 1980, sobretudo em virtude da caça e perda de habitat – os sedimentos arenosos – para atividades como a mineração, observa Fernandes, que soube do relato de Portela no final de abril. “Considerando que não houve eventos de soltura nesta divisa com o Piauí, essa filmagem de um animal nativo dali representa o registro mais recente dentro do território cearense, e a possibilidade de ter a RPPN Serra das Almas como um local-chave para a preservação do tatu-bola no estado.”

1,6 milhão de toneladas de carbono

No final dos anos 1990, o empresário americano Samuel Johnson criou com recursos próprios o Fundo para a Conservação da Caatinga, administrado pela The Nature Conservancy. Parte do aporte serviu para a fundação da Associação Caatinga, em outubro de 1998. Outra parcela destinou-se à compra de uma área que protegesse o habitat natural da carnaúba – uma palmeira emblemática do bioma, cuja cera era explorada economicamente pela família desde os anos 1930. Naquela virada de milênio, as fazendas da Serra das Almas pertenciam a dois latifundiários que aceitaram vender as terras diante da proposta acima do valor de mercado.

“Era muito mato, mas não era muito preservado, porque o pessoal brocava – cortava o mato pra fazer roça e botava o gado dentro. Era bom só por causa do lugar sossegado. Mas era muito desmatado”, lembra Aureliano da Silva Neto, o primeiro guarda-parque da Reserva Natural Serra das Almas.

Ele mudou-se para a região ainda criança, para acompanhar os pais que trabalhavam nas roças de milho, feijão e mandioca. Não aprendeu a ler, nem a escrever, mas desde a infância passava os dias pela floresta, “caminhando, parando, prestando atenção”, e assim se tornou um dos maiores conhecedores da biodiversidade local.

Há 22 anos, Aureliano mora com a esposa e os oito filhos em uma comunidade vizinha, Jatobá Medonho, na zona rural de Buriti dos Montes, no Piauí. Mas ainda volta para a reserva a fim de guiar equipes de pesquisadores, como um levantamento no início deste ano que avaliou o estoque de carbono na Serra das Almas – 1,6 milhão de toneladas; 30% na biomassa acima do solo, 70% no solo, serrapilheira e raízes.

Um bioma vulnerável

A Caatinga ocupa 10% do território nacional (862 mil km2) em oito estados do Nordeste e no norte de Minas Gerais, onde vivem cerca de 27 milhões de brasileiros. Ações antrópicas, como a pecuária e a monocultura de algodão, resultaram na supressão de 46% da vegetação original do único bioma exclusivamente brasileiro.

As pressões à Caatinga continuam fortes, conforme o MapBiomas. De 1985 a 2021, o bioma perdeu 10,1% da vegetação nativa, teve 16% de sua área queimada e redução de 23% dos corpos d’água. No mesmo período, a agropecuária expandiu-se em 24% e as áreas antrópicas alcançaram 31 milhões de hectares.

Já as 234 Unidades de Conservação da Caatinga ocupam quase 8 milhões de hectares do semiárido, segundo o ICMBio. É o terceiro bioma com maior percentual de território protegido (9,14%) e o quarto em área de UCs. Entretanto, os fragmentos de vegetação nativa e secundária desconectados representam um grande desafio para a recuperação da Caatinga.

“É um bioma sazonalmente seco mas, na sua formação original, a mata ciliar era a conexão primordial não só para os fragmentos e grandes áreas contínuas de Caatinga, mas também com a Amazônia e a Mata Atlântica”, observa Hugo Fernandes. “Esses corredores ecológicos, muito dependentes da mata ciliar, historicamente foram extirpados.”

Em 2019, a Associação Caatinga propôs a criação de uma APA federal e mais sete Unidades de Conservação no Piauí e no Ceará, para formar um corredor de 494 mil hectares com 12 áreas protegidas – existentes ou propostas – ao longo do Cânion do Rio Poti, habitat do tatu-bola-da-caatinga. Três UCs foram criadas na região com apoio da associação: uma no Piauí, o Parque Estadual do Cânion do Rio Poti; e duas no Ceará, o Parque Estadual do Cânion Cearense do Rio Poti e a Área de Proteção Ambiental do Boqueirão do Rio Poti.

“Ao longo do rio tem várias áreas bem interessantes com sítios arqueológicos, algum tipo de atrativo ou apelo ambiental”, observa Samuel Portela. “Por ser um grande vazio demográfico, há condições de conectar essas áreas a partir de Unidades de Conservação de Proteção Integral ou de Uso Sustentável nos locais com uma ocupação humana maior.”

A Associação Caatinga já contribuiu para a criação de 26 RPPNs e três UCs públicas, que somam 103,6 mil hectares, além de 15 planos de manejo. Essas ações de fomento se ampliaram em 2011, com o projeto No Clima da Caatinga, patrocinado pela Petrobras, em que direcionaram o foco para o entorno da Serra das Almas e estimularam a criação de outras reservas particulares em Crateús.

José Wilmar de Sabóia foi o primeiro proprietário em Crateús auxiliado pela Associação Caatinga na criação de uma RPPN. Sabóia cresceu na comunidade Monte Nebo, para onde os avós se mudaram no final do século 19. “Eu não conhecia nada sobre reserva, mas tinha esse desejo de conservação”, conta. A RPPN Neném Barros, com 63 dos 205 hectares da propriedade, foi criada em 2012 e a associação agora o auxilia na execução do plano de manejo. Suas metas atuais são estruturar a reserva, com abertura de trilhas, adequar as áreas para recepcionar visitantes e contratar um guarda-parque.

“Essa reserva tem duas vertentes: a pesquisa científica e a sensibilização dos estudantes”, diz Sabóia, que planeja expandir a RPPN para 100 hectares. Com apoio da Associação Caatinga, ele reflorestou uma área de 7 hectares ao lado da reserva e, desde o início deste ano, recebe em sua propriedade experimentos de restauração pela técnica de mudas de raízes alongadas, em parceria com o Laboratório de Ecologia da Restauração, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Este método eleva a taxa de sobrevivência das plantas na Caatinga de 30% para 70%. Mais de 15 mil das 20 mil mudas planejadas já foram plantadas. Com pesquisa e educação ambiental, Sabóia acredita que afastará as pressões atuais: queimadas nas propriedades vizinhas e a entrada de invasores para caça e extração de madeira.

Resiliência no semiárido

A vegetação conservada da Serra das Almas contribui ainda para a segurança hídrica das comunidades que a rodeiam. Uma auditoria externa, da LimnoTech, constatou que a reserva evita o escoamento de 4,8 bilhões de litros de água por ano, isto é, se não houvesse floresta, este volume – equivalente a 300 mil cisternas – não existiria.

No Ceará, mais de 100 municípios ficaram em estado de emergência de 2012 a 2017 por uma seca extrema prolongada. Mas as quatro nascentes da Reserva Natural Serra das Almas mantiveram-se perenes. Isso favoreceu a recarga do lençol freático e de sete microbacias do Rio Poti e, consequentemente, o abastecimento das populações vizinhas.

“A Caatinga é um dos biomas mais vulneráveis às mudanças climáticas. Aqui no Ceará já tem três núcleos de desertificação. Isso gera impactos ambientais, sociais, econômicos, inclusive com potencial de termos um novo ciclo de êxodo rural – as pessoas não terem oportunidade de tirar o sustento da terra e migrarem para centros urbanos”, analisa Daniel Fernandes, coordenador-geral da Associação Caatinga.

Ao redor da reserva vivem cerca de 15 mil pessoas em 40 comunidades – 30 no município de Crateús e 10 em Buriti dos Montes –, que se mantêm sobretudo com a agricultura de subsistência, aposentadoria e programas de auxílio do governo. A associação distribui tecnologias sociais às comunidades, que servem para melhorar a convivência com o semiárido e os extremos climáticos cada vez mais intensos. Desde 2007, foram fornecidas 1.419 ferramentas como cisterna de placas, sistema de bioágua e canteiro biosséptico, com a capacitação de 3.381 pessoas.

No quintal de sua casa em Jatobá Medonho, Aureliano da Silva Neto mostra o sistema de bioágua, no qual a água utilizada para o banho e as lavagens da louça e da roupa passa por um filtro biológico e fica apta para a irrigação de suas hortaliças, frutas e legumes. Como era cultivar durante o ano, antes desse sistema? “Era ruim”, conta Aureliano. “Muitas vezes tinha que pegar água lá no poço. Trazia na cabeça, para aguar [as plantas].” No verão, agora consegue manter a horta também? “Todo tempo.”

Na mesma comunidade piauiense, Antonia Elisabete Soares recebeu uma cisterna de placas em 2014, ano de seca extrema. “Sem ela, eu tinha saído daqui pra bem longe, porque não tinha água e na época eu estava grávida”, diz a agricultora. No quintal também está o canteiro biosséptico – uma fossa ecológica para onde é destinado o esgoto do banheiro da casa dela e da mãe. Nessa estrutura, uma bananeira recebe essa água, filtra e evapotranspira, sem contaminar o lençol freático. Elisabete abre a tampa da cisterna e comemora que a capacidade de 16 mil litros está praticamente completa. Com o final de abril, as chuvas de inverno do sertão estão prestes a terminar e serão seguidas por pelo menos oito meses de um verão marcado pela seca inerente ao clima da Caatinga. “A gente já tampou ali, fez a proteção dela todinha, porque agora eu não tô precisando de usar ela, a não ser quando dá uma queda de energia e não tem como puxar lá do poço”, observa Elisabete. “Ainda tá chovendo.”


Este texto foi originalmente publicado por Mongabay de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.


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