Matas de cá, florestas de lá

Por Sergio Adeodato, da Página 22 | Com área de 100 hectares, o Museu da Amazônia (Musa) compõe um dos mais importantes remanescentes florestais da metrópole amazonense. Lá foram contadas 1.180 espécies de árvores e 139 de arbustos que integram o acervo da natureza. No caminho para um dos principais atrativos do Jardim Botânico, a torre de observação e seus 42 metros de altura, as trilhas antecipam no chão a beleza que se observa do alto. Ao fim da escadaria até o topo, uma placa avisa ao visitante: “Esse lugar é, de fato, muito especial, pois sua biodiversidade é altíssima em termos de Amazônia. É realmente incrível se pensarmos que estamos tão perto de Manaus”.

De cima, junto à textura verde das copas das árvores, avista-se a mancha cinzenta da paisagem urbana, uma cidade que se espalha horizontalmente e tem ali uma das principais zonas de pressão sobre a floresta. “Estou aqui cuidando das barricadas, provando que sobreviver de teimoso é possível, porque precisamos ir além da marca Amazônia e ter mais propósito e efetividade, mobilizando o ‘chão’”, destaca Ennio Candotti, diretor geral do Musa – há doze anos em Manaus, após uma longa e reconhecida história de lutas pela democratização do País e pelo desenvolvimento científico na Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).

À frente do prédio da diretoria destacam-se instalações que representam a réplica de uma casa de farinha, mantendo vivo – para quem habita a cidade – o tradicional meio de sustento e segurança alimentar na floresta. No local, a exposição Aturás, Mandiocas, Beijus mostra o Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro, herança indígena transmitida de geração em geração sobre o processo produtivo de abrir a mata, queimar, plantar e deixar a floresta se regenerar, juntando saberes ancestrais masculinos e femininos.

O ingresso custa R$ 30 para turistas e R$ 15 para manauaras, com entrada livre às segundas-feiras, quando o museu chega a receber 1,2 mil visitantes diários — a maioria, de comunidades do entorno, por meio de convênios com escolas e universidades. É uma biblioteca viva para a prática de educação ambiental. “Se Manaus está de costas para a natureza é porque os desafios das florestas e das águas não foram incorporados às políticas públicas”, aponta Candotti, ao lembrar o potencial inexplorado da biotecnologia. Isso ocorre, segundo ele, “porque nunca se conseguiu explicar o valor da botânica, que costuma estar na terceira divisão do campeonato”.

A idealização do Musa surgiu após Candotti ter visitado museus e espaços de alto padrão que tratam a temática amazônica na Europa e sensibilizado o governo da época após o artigo que assinou na Folha de S.Paulo sugerindo a necessidade de investimentos científicos de modo a formar “10 mil doutores para a Amazônia”.

Inaugurada em 2009, com o perfil jurídico de direito privado, a instituição ocupou área cedida como comodato pelo governo federal por 20 anos, com autonomia de receita e conselho gestor reunindo atores públicos e privados.

Atualmente o museu é reconhecido por projetos de pesquisa, como os de arqueologia e paleontologia, pelas exposições científicas e culturais que mobilizam uma variada rede de parcerias e pelo tesouro natural da grande floresta que tem sob o seu domínio e requer uma especial atenção no convívio com o meio urbano. Adjacente a zonas que sofrem os impactos da desigualdade social, como o bairro Cidade de Deus, a área natural enfrenta pressões contra as quais foi construída uma cerca de 8 km de extensão.

O Jardim Botânico, com a sua grande extensão de árvores, compõe a Reserva Florestal Adolpho Ducke, criada em 1963 em homenagem a um dos mais respeitados especialistas da flora amazônica. Com total de 10 mil hectares, pertencentes ao INPA, a área protegida é considerada a segunda maior floresta urbana do Brasil, atrás do Parque Estadual da Pedra Branca, no Rio de Janeiro, com 12,5 mil hectares.

Além desse fragmento gigantesco, também a área onde funciona a sede e os laboratórios do INPA, no bairro Petrópolis, representa um refúgio da natureza na cidade, onde o Bosque da Ciência – com 13 hectares de mata nativa voltada à divulgação científica, educação e lazer – é aberto à visitação pública. Ao mosaico verde urbano se somam os 600 hectares da floresta da Ufam, protegida pela comunidade acadêmica como cenário de pesquisas e ilha de vegetação natural que alivia o calor do asfalto.

De acordo com o MapBiomas, o município de Manaus possui 80% do território coberto por floresta, concentrada na zona rural. A zona urbanizada ocupa apenas 2,3% da área total, mas representa o dobro de três décadas atrás. Nela, as manchas verdes também incluem o Parque Municipal do Mindu, um dos mais expressivos cursos d´água da área urbana, símbolo da poluição. São 12 áreas protegidas sob gestão municipal na zona urbana e rural. Entre elas, a Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) do Tupé, que abriga populações tradicionais e remanescentes florestais com praias de areia branca à margem das águas escuras do Rio Negro.

Um diferencial é a política pública municipal que permite a criação de reservas privadas em área urbana – hoje, no total de seis áreas. “É um ponto positivo em meio à realidade da cidade”, observa Henrique Pereira, coordenador do Atlas ODS Amazonas, da Ufam. Dados do projeto indicam desmatamento em torno de 1,26 mil km² no município, em 2019, com baixo crescimento fora da zona urbana, principalmente devido à existência de áreas protegidas.

A região não representa uma fronteira agrícola em expansão. “Contraditoriamente, sendo uma cidade na floresta, Manaus tem um dos piores índices de arborização urbana dentre as capitais do País, decorrente de vários fatores, como a cultura de não haver calçamento e meio-fio com largura suficiente para o plantio de árvores”, avalia Pereira.

Protegendo a “árvore da vida”

A multiplicidade de floresta ao redor contrasta com as poucas árvores nas ruas. Em cenário de paradoxo, o convívio com o verde muitas vezes não ocorre na frente das casas, mas atrás, nos quintais urbanos – abundantes, sobretudo com frutíferas nativas, em zonas menos densamente ocupadas, observa Pereira. “A relação dos manauaras com as florestas urbanas pode gerar sentimentos e percepções diametralmente opostos: em áreas de urbanização precária, predomina a topofobia (aversão ao local), principalmente porque os fragmentos florestais são associados à criminalidade e insegurança. Ao contrário, nos bairros planejados, os moradores são mais positivos e abertos à defesa da floresta”.

Tanto é que duas áreas de Manaus, por exemplo, foram transformadas em áreas protegidas devido à pressão política exercida por esses grupos de vizinhança, como é o caso do Parque Municipal do Mindu e do Parque Estadual Sumaúma – a menor das unidades de conservação estaduais do Amazonas, criada em 2003, com 53 hectares. Em meio ao conglomerado urbano, a área protege um símbolo da biodiversidade da Amazônia, chamado carinhosamente “árvore da vida”. Com até 70 metros de altura, quase um edifício de 24 andares, a sumaúma pode viver mais de 120 anos e proporciona benefícios medicinais únicos. Não à toa, é sagrada para os povos tradicionais da floresta. No parque manauara, a “mãe das árvores” ou a “escada para o céu” é instrumento de educação ambiental.

“Tentamos salvar o que foi possível, mas muitas vezes não dava tempo, porque as invasões tomavam conta das terras e derrubavam tudo quase da noite para o dia”, conta Augusto Leite, presidente do Instituto Sumaúma. Ele migrou do interior para Manaus, na década de 1980, e encontrou raros fragmentos de floresta próximos à área loteada para acolher a expansão urbana, no Conjunto General Figueiredo, já com 1,8 mil casas. Lá, mais tarde, se iniciou a luta pela criação do parque, espaço vivo para ações de educação ambiental: teatro de fantoches e gincanas visando criar uma boa relação de crianças e jovens com a natureza.

A esperança aumentou após a chegada de um shopping center e a cidade ter sido escolhida como uma sede da Copa do Mundo da Fifa, com as promessas de recursos para melhorias na área, prevendo centro de visitantes e atrativos cenográficos, como figuras mitológicas da Amazônia – hoje já deterioradas na área, necessitando revitalização. As lições do passado mostram que a história não deve parar. “Foi uma jornada difícil e às vezes frustrante, porque o próprio poder público contribuía com a degradação”, conta Leite. “Sem a existência dessas atividades, ninguém saberia sobre a existência do parque”.

Para a pesquisadora Rita Mesquita, coordenadora de extensão do Inpa, a floresta representa uma relação de amor e ódio em Manaus: “Embora não muito explícito, esse convívio ou relacionamento é mais forte do que imaginamos e do que as pessoas admitem; está presente no imaginário”. É uma visão diferente da que é habitualmente expressada por forasteiros e manchetes nos noticiários que destacam a exuberância da floresta e os males dos impactos, uma narrativa – na opinião da pesquisadora – não muito popular para os manauaras.

“Há uma inegável contradição, porque a natureza na cidade não está aqui onde estou, mas aonde vou”, analisa Mesquita, radicada há 30 anos na capital, período no qual constatou o crescimento urbano não acompanhado pelas políticas públicas de planejamento. “Não há cuidado com o lixo, mas a árvore do vizinho é vista como risco ou fonte de sujeira com folhas”, ilustra. Em sua análise, “há delicados processos sociais envolvidos, cujas mudanças não ocorrem de um dia para o outro, até porque a migração do rural para o urbano é muito recente na sociedade brasileira”.

A questão dos resíduos é emblemática, segundo Mesquita, pelo fato de a Zona Franca de Manaus ter centenas de indústrias sem sistema de reciclagem à altura. “Não reciclamos, por exemplo, o vidro, e não há qualquer preocupação ou movimento para isso”, lamenta. De igual modo, apenas 20% do esgoto do município é tratado antes do despejo do meio ambiente, um problema comum às cidades amazônicas, e o odor que exala por bueiros não interfere na escolha de governantes. Ela pergunta: “Diante dessas questões entranhadas, como fazer a cidade se virar para a natureza?”.

Sauim-de-coleira, o mascote

Um dos marcos da relação entre a metrópole manauara e a floresta foi o movimento de salvar o sauim-de-coleira (Saguinus bicolor), primata mascote de Manaus, criticamente em perigo de extinção. Só existente na região, a espécie sofre intensa pressão pela redução do habitat natural para ceder lugar a casas, indústrias e plantações. As ameaças levaram, em 2015, o casal Maurício Noronha e Deyse Campista a mobilizar atores em diversos campos – empresas, pesquisadores, poder público, ONGs, escolas – para a sensibilização da sociedade e a criação de mecanismos de proteção. “Um dos gargalos da conservação é a baixa visibilidade: a maioria da população não sabe que a espécie existe, muito menos que está ameaçada”, explica Noronha, fundador do Instituto Sauim-de-Coleira.

Em 2021, a instituição lançou um novo livro educacional infanto-juvenil sobre o animal, encontrado em uma área de 7,5 mil km2, nos municípios na Região Metropolitana de Manaus, Rio Preto da Eva e Itacoatiara, até os limites entre os rios Cuieiras e Urubu, na direção das rodovias BR-174 e AM-010. Desde a década de 1980, estima-se uma redução acentuada das populações da espécie com a perda de 250 quilômetros quadrados de habitat por ano.

Após a articulação de várias organizações, com participação do Ministério Público, a agenda ganhou uma dimensão histórica com o mapeamento de zonas prioritárias para o trânsito da espécie nos fragmentos e maciços de floresta, além da proposta de criação de novas áreas protegidas. Um dos resultados foi o estabelecimento do Corredor Ecológico do Sauim-de-Coleira, que acabou se convertendo na Área de Proteção Ambiental (APA) Sauim-de-Coleira de Manaus, concretizada em 2018, com cerca de 1 milhão de hectares.

Além da área protegida municipal, há o projeto de uma APA estadual de 211 mil hectares no município de Itacoatiara, Região Metropolitana. No nível federal, fruto da campanha de mobilização em Manaus, o Plano Nacional de Ação para Proteção do Sauim-de-Coleira, estabelecido pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), reforçou as estratégias ao prever a inserção de pelo menos 30% da área de distribuição do animal em parques e reservas. O objetivo atual é a criação de um plano de manejo sustentável visando a coexistência de ocupações urbanas e áreas verdes, na luta para salvar a espécie enquanto é tempo. Manaus tem a oportunidade de corrigir erros de outras grandes capitais na relação com a biodiversidade: “É importante observar a dinâmica social de conversão da floresta, dentro e ao redor da cidade, considerando as pessoas”, afirma Noronha.

Socorro para os igarapés

Entre os elementos da natureza que povoam a convivência de Manaus com a natureza, um em especial se destaca no vocabulário e na memória afetiva dos moradores: os igarapés. São cursos d’água amazônicos constituídos por um braço de rio ou canal que corre no interior da mata. Importantes na drenagem natural da chuva, funcionam como corredores ecológicos, ligando fragmentos florestais e facilitando o fluxo gênico da fauna e flora. No entanto, na capital manauara, os igarapés simbolizam o drama dos impactos ambientais e da desigualdade social.

Antes usados para lazer, navegação e pesca, hoje quase todos os 150 igarapés da cidade estão poluídos com lixo e outros rejeitos, além do desmatamento das margens. Especialistas alertam que pode levar até 30 anos para recuperá-los; e alguns já são considerados “mortos” – consequência da expansão urbana desordenada, a partir da década de 1970, com a chegada de fluxos populacionais em busca de empregos nas fábricas, nas lojas e nos serviços que se instalavam como suporte à economia industrial. Sem opção de moradia, ocupou-se a beira dos riachos: dados não oficiais indicam que Manaus possui atualmente cerca de 70 mil habitações em faixas marginais dos cursos d’água, onde vivem aproximadamente 300 mil pessoas. São, sobretudo, palafitas precárias em áreas sem saneamento e sujeitas a inundações.

O aquecimento global, com maior frequência de eventos climáticos extremos, agrava o cenário de impactos. “Não há planejamento e a sociedade não contribui”, adverte Sávio Filgueiras Ferreira, coordenador da área de dinâmica de ambientes no INPA. Morador de Manaus desde 1977, quando frequentava com a família os balneários do bairro Parque 10 com igarapés limpos e cristalinos, o pesquisador enfatiza que a degradação não parou. “O que era para ser útil e valorizado, ninguém quer”, lamenta. Ele reforça: “Necessitamos de gestores públicos que ousem, assim como fez o ex-prefeito de Seul, na Coreia do Sul, ao revitalizar o rio poluído que cruza a cidade e ser posteriormente eleito presidente do país”.

Segundo Ferreira, estudos em áreas que deixaram de ser impactadas em Manaus comprovam que a virada de chave é possível. Mas há outra complexidade, pesquisada por ele: sem abastecimento público nas zonas de ocupação irregular, a perfuração exagerada de poços artesianos pelos moradores provoca o contínuo rebaixamento do lençol freático, interferindo na captação da água da chuva que nutre os igarapés.

A malha hidrológica da cidade pede socorro, como nos casos do Igarapé do 40 e do Igarapé Educandos – o maior de Manaus e o mais emblemático pelas imagens chocantes do tapete de lixo flutuante formado na estação seca, antes de desaguar no Rio Negro. O desafio não é novo. Na década de 1960, a precariedade das condições sociais e ambientais levou à demolição da chamada “Cidade Flutuante” – um bairro inteiro de palafitas sobre as águas do Rio Negro, na zona central da cidade, considerado pelo então governador como “vergonha para a civilização e desenvolvimento de Manaus”. À época, já eram 2 mil casas com cerca de 12 mil moradores. Conta-se que a primeira delas foi construída em 1920 pelo paraibano João Aprigio, que fugiu com mulher e filhos da seca no sertão nordestino. O sonho da borracha caiu por terra na crise econômica da época. Ele cortou toras de árvores na floresta e as carregou pelo igarapé até o local escolhido para erguer a casa sobre a água após vinte dias de trabalho.

Além das ações na Cidade Flutuante, muitas décadas depois, o Programa Social e Ambiental dos Igarapés de Manaus (Prosamim), criado em 2003, retirou moradores de alguns desses locais para alojamento em conjuntos habitacionais, com a requalificação urbana da área. Após três etapas, o programa foi encerrado em 2021, proporcionando o reassentamento de quase 29 mil pessoas dos igarapés do 40, Mestre Chico e São Raimundo. No entanto, sem ações preventivas e estruturantes mais amplas em setores como o planejamento urbano e o tratamento de esgoto, a degradação dos cursos d´água permanece crescente.

“O quadro é agravado pela falta de gestão do lixo, uma vez que a Política Nacional de Resíduos Sólidos não avançou como se previa; é uma responsabilidade não só da população, mas das empresas”, aponta a bióloga Érika Schloemp, criadora do grupo Nossos Igarapés Urbanos em Perigo, no Facebook, com notícias, campanhas e denúncias. A iniciativa surgiu após a ambientalista ter conhecido as histórias de seu Bebé, o último tracaieiro que fazia a travessia dos moradores quando não havia pontes no igarapé do antigo bairro São Raimundo.

“Acordando cedo para assistir aqui ao lado do Conjunto Jornalistas um monumento à ganância e ao desrespeito ao meio ambiente da minha cidade. A obra estava embargada até o ano passado, porém, em dezembro, durante o recesso da Justiça, o caso andou na mais completa discrição e um juiz liberou a obra mais uma vez”, escreveu a bióloga em um dos posts nas redes sociais.

A vegetação ao longo dos cursos d’água é protegida pela legislação federal como Área de Preservação Permanente (APP), mas o apetite econômico – além das questões culturais dessa relação – normalmente se sobrepõe. Não à toa, a luta pela proteção chega ao Ministério Público e vai parar na Justiça, como foi o caso das ameaças de empreendimentos ao Igarapé dos Franceses.

O cenário motiva ações de sensibilização ambiental, como no Igarapé Água Branca, visto como o último curso de água ainda limpo de Manaus, próximo ao aeroporto, onde a ONG Mata Viva mobiliza moradores para plantio de mudas e outras atividades para salvar o que restou. “O desafio afeta pobres e ricos, como no igarapé Tarumã-Açú, uma rara fronteira verde que está sob o impacto do lixo e esgoto de condomínios de luxo”, avalia Schloemp.

Remada contra a poluição

A região é reduto dos famosos flutuantes – bares e restaurantes instalados sobre a água para lazer, banho de rio e até festas noturnas de música eletrônica. Na área, o manauara Jadson Maciel, o Jajá, proprietário de um flutuante, mobiliza campanhas para proteger o meio ambiente como condição de sustentabilidade para o próprio negócio. Um sábado ao mês, a Remada Ambiental reúne voluntários para a coleta de lixo das águas, sensibilizando para novas atitudes e ações da sociedade civil e do poder público contra o problema.

“Tínhamos o hábito de fazer remadas sobre pranchas, caiaques e botes para ver o nascer do sol após as noitadas e víamos uma grande quantidade de resíduos flutuando à nossa frente”, conta o empreendedor, que transformou o passeio em ação ambiental. A ideia é chamar atenção para a poluição levada dos bairros da cidade pelo fluxo dos córregos, o que exige sensibilizar a população de um amplo território de origem dos resíduos, para além da área dos balneários de destino.

Incentivado pela irmã que estava de férias em Manaus e tem doutorado em resíduos urbanos, Jajá decidiu não fazer vista grossa para o que via à sua frente. Na primeira ação, foram 80 sacos de 100 litros com todo tipo de dejeto, principalmente plásticos. “No dia seguinte, vimos que o lixo estava lá novamente e descobri no Google Maps o caminho que fazia pelos igarapés, nos vários bairros da cidade até chegar aqui”, conta. Sem esmorecer, buscou parcerias de empresas, instituições e outras iniciativas ambientais, como o Projeto Igarapés Limpos, de modo a dar amplitude à mensagem das remadas, assim aumentando o raio de influência na cidade. “Além das comunidades locais do Tarumã, chegamos à associação do comércio, cooperativas de reciclagem e prefeitura, com repercussão positiva em programas de TV”, revela Jajá.

Até 2021 foram realizadas mais de 50 edições da Remada Ambiental, mobilizando 50 voluntários, além dos banhistas e donos dos flutuantes, estabelecimentos que nos últimos anos explodiram em número. Já são 792 apenas no Tarumã-Açú — cerca de 70% irregulares, sem o devido controle ambiental. A questão sensibilizou o Ministério Público, que impôs regras de ordenação. Ao mesmo tempo, o Comitê da Bacia Hidrográfica, do qual Jajá é uma liderança, realiza um plano com base na capacidade de uso. “Nunca imaginei que as ações de limpeza nas remadas gerassem tantas parcerias e resultados positivos”, celebra.

Encontro das Águas, o “beijo” multicolorido

No exato local onde as águas pardas do Rio Solimões encontram as escuras do Rio Negro, em meio ao verde à frente da metrópole amazonense, uma área estratégica é palco de educação ambiental para um novo comportamento diante da floresta. Com 52 hectares, a Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Dr. Daisaku Ikeda traduz o sonho de um pacifista, filósofo, escritor, poeta, e também um conservacionista, que nunca esteve na Amazônia, mas sempre teve um olhar profundo para a importância desta região e sua biodiversidade. Aberto ao público, o refúgio recebe pesquisas científicas e ações práticas de reflorestamento capazes de serem replicadas. No projeto Sementes da Vida, por exemplo, uma árvore é plantada para cada criança que nasce na maternidade pública Moura Tapajós, em Manaus. Junto com a certidão de nascimento do bebê, os pais recebem um certificado de plantio, emitido com o nome do filho ou filha, identificando a espécie e sua geolocalização – iniciativa realizada em parceria com o Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas, no programa Corregedoria Mais Verde, além de universidades e outras instituições.

Ações assim engrossam as vozes em defesa do Encontro das Águas, ícone das belezas naturais de Manaus que protagoniza o debate sobre a construção de um novo complexo portuário para escoar a produção do polo industrial e sobre os riscos socioambientais inerentes à obra. A questão tem sido alvo de ações na Justiça após o tombamento da área pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em 2010, reconhecendo o alto valor paisagístico e cultural dos mais de 10 km em que é possível observar as águas escuras e transparentes do Rio Negro correndo ao lado das águas turvas e barrentas do Rio Solimões.

De um lado está a justificativa do Estado do Amazonas para a importância econômica do empreendimento, liderado pelo Grupo Simões. De outro, os argumentos dos movimentos ambientalistas e sociais reforçando a proteção, com participação efetiva do Ministério Público na busca de uma solução. Após uma década, o processo chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF), que adiou a decisão por seis meses para dar nova chance a avanços nas tratativas, com previsão de um desfecho em 2022.

“Ninguém discute mais o tombamento, porque não há razões técnicas para discordar”, afirma Daniel Viegas, chefe da Procuradoria do Meio Ambiente da PGE-AM. “O desafio atual é proteger comunidades tradicionais do entorno que utilizam a área para o sustento desde tempos ancestrais”, revela o procurador. Está na mesa a proposta de criação de uma unidade de conservação de uso sustentável pelo governo estadual. No entanto, ele defende o modelo de um “mosaico biocultural”, com a abertura de um diálogo democrático capaz de influenciar a gestão do território como um todo.

“A discussão não se restringe à obra de um porto, mas engloba, de maneira mais ampla, a expansão da Região Metropolitana”, explica Viegas na esperança de envolver maior número de atores – também do poder público federal – no acordo. A solução poderá abrir espaços a investimentos da prefeitura de Manaus, como o uso público do Mirante da Embratel, planejado para a revitalização da área. “Todos ficam amarrados enquanto a questão não se resolve”, diz o procurador.

À frente do Encontro das Águas, a lendária Ilha de Marapatá guarda simbolismos da relação entre a capital e a floresta. De origem africana, o nome significa “alpendre”, “varanda”, espaço aberto na fachada de uma casa que dá acesso ao interior. E não poderia ser mais sugestivo. O lugar, também chamado “Ilha da Consciência”, é famoso pela lenda segundo a qual o forasteiro que chega à região pelo rio deixa a moral e a vergonha por lá antes de aportar em Manaus. Ou seja, o viajante anula a sua ética e raízes culturais para assumir uma nova identidade, modificada pelos hábitos do lugar. O escritor Euclides da Cunha fazia referência à ilha nos relatos sobre a Amazônia, ironizando a crença de que “ali, o recém-chegado deixa a consciên­cia”. Mário de Andrade, em Macunaíma, escrevia: “No outro dia, Macunaíma pulou cedo na ubá (canoa indígena) e deu uma chegada até a foz do Rio Negro pra deixar a consciência na Ilha de Marapatá, deixou-a bem na ponta dum mandacaru de dez metros, pra não ser comida pelas saúvas”.

Sonhos e desafios na floresta do entorno

Para além da mancha urbana, espraiando-se por entre rios e ramais de estradas, o imenso território da Região Metropolitana de Manaus mantém comunidades que guardam o conhecimento tradicional de convívio com a floresta e, ao mesmo tempo, se abrem aos benefícios que a modernidade e a proximidade da cidade grande têm a oferecer. A aldeia indígena Três Unidos, no Rio Cuieiras, é cenário de uma nova história para a etnia kambeba, após o deslocamento de famílias desde a longínqua região de origem, no Alto Solimões próximo à fronteira com o Peru, para a atual área no entorno da capital.

No local, o jovem Tailo Pontes, com nome indígena Xiriri, que significa “gafanhoto”, tem fome de agarrar oportunidades para a conquista de reconhecimento, autoestima e um futuro diferente em relação ao que se apresenta para muitos “parentes” em territórios reféns de atividades predatórias, ilegalidades e violência na floresta. O caminho para Tailo, aos 17 anos, está na chance de evoluir como atleta profissional e ganhar o mundo a partir de uma velha tradição indígena: a canoagem.

“Quero dar melhores condições de vida para a família”, ressalta o rapaz, representante de uma nova geração kambeba na saga de superações que transformou a comunidade Três Unidos em referência de ações socioambientais. Os avanços na saúde, educação e empreendedorismo, por meio de parcerias, se tornam viáveis – entre outros fatores – pela facilidade de logística devido à proximidade com a capital, distante cerca de uma hora e meia de lancha.

“Um dia, estava cortando lenha para minha mãe, e me avisaram para ir à beira do rio porque um barco de Manaus tinha chegado com novidades”, conta Pontes.
A bordo estavam instrutores de canoagem que iniciavam o projeto de caça-talentos em comunidades ribeirinhas e indígenas da região, dentro de uma iniciativa da Confederação Brasileira de Canoagem, apoiada pela Fundação Amazônia Sustentável (FAS). 

Após lições básicas de como entrar na canoa e remar, os instrutores deixaram na aldeia um conjunto de caiaques olímpicos do tipo k1 para treinamento inicial. “A rotina dos treinos, com três horas diárias pela manhã, começa após 7 horas, porque mais cedo há riscos do mosquito da malária”, afirma Tailo, com desempenho de um veterano pouco tempo após as primeiras remadas.

Na comunidade, foi uma grande emoção assistir na TV a façanha do baiano Isaquias Queiroz nas Olimpíadas de Tóquio, e agora Tailo e demais ribeirinhos e indígenas do projeto querem repetir a história de sucesso dos jovens locais que, há poucos anos, se engajaram nos treinamentos com arco e flecha e chegaram a competições interacionais de tiro com arco. Como destaque, a indígena Karapanã Graziela Santos saiu da comunidade Nova Kuanã, na vizinhança de Manaus, e tornou-se campeã sulamericana em 2018 – além de representante do Brasil para a modalidade nos Jogos Panamericanos de Lima, um ano depois.

De remada em remada, é a vez da canoagem cavar espaços para novos sonhos agora que a internet permite o ensino à distância e dá asas aos planos de Tailo: “Quero também ser técnico em enfermagem e ajudar na saúde da comunidade sem precisar ir embora para a capital”, revela o filho de mãe cozinheira e pai trabalhador em serviços gerais na escola. O artesanato, agora turbinado pelo atrativo dos atletas indígenas com produção de miniaturas de canoa e remos de madeira, é uma atividade comum a quase todos na aldeia, aberta aos turistas nas quartas-feiras.

No fim de cada mês, moradores indígenas viajam em barco de linha para pegar o auxílio do Bolsa Família em Manaus, mas a pandemia de covid-19 ensinou sobre a importância de ficar na reserva e depender menos da capital. “Foi um momento difícil, em que precisávamos de apoio para a comunidade não abandonar a área”, revela Neurilene Cruz, enfermeira e empreendedora na aldeia Três Unidos.

No auge do contágio espalhado pelo interior a partir da capital, medo e preocupação assolaram a comunidade, na qual praticamente todas as famílias foram infectadas e obrigadas a mudar hábitos para total isolamento. Além da assistência à distância por telessaúde, o conhecimento tradicional da medicina indígena ajudou na batalha: “Todas as famílias passaram a tomar um chá de folha de maracujá, boldo, jambu, mangarataia (gengibre), urubucaá e mel”, conta Cruz.

De nome indígena Miskui, que significa “mel”, ela tem, na área, uma longa história de liderança, herdada do pai, o cacique Valdemir Triukuxuri. A empreendedora mobilizou mulheres indígenas para criar um restaurante comunitário aberto a turistas com iguarias amazônicas, cuja renda permitiu que investisse em novos rumos profissionais, inclusive na formação em saúde.

“A pandemia demonstrou a incapacidade da capital para as demandas de saúde do interior”, aponta Cruz. Ela montou uma taberna como filão de negócio diante do menor deslocamento das famílias para a compra de gêneros de primeira necessidade na cidade grande, mas avançar nas atividades produtivas requer superar barreiras.

Apesar da localização próxima à metrópole, a comunidade não tem acesso à rede elétrica e depende das limitações do gerador a diesel e seus custos. O desafio tem atraído projetos de energia solar, visando maior acesso a bens duráveis e água gelada. De toda forma, a estrutura atual da aldeia, com duas escolas, posto de saúde bem equipado, estação de reciclagem, restaurante para visitantes, e até o novo galpão com os caiaques da canoagem, é bem diferente da realidade do passado. “Quando as famílias indígenas chegaram aqui pela primeira vez, em 1991, a situação era de exploração desenfreada pela caça, pesca e derrubada de madeira”, conta Cruz. Agora, o cenário mudou: “A próxima pandemia pode ser muito pior para a população até das grandes cidades se não estivermos aqui para cuidar da floresta”. 

Para a indígena, a questão vai além de olhar ou não para os povos da floresta dentro do município, mas olhar e não ver. “Muitas vezes, o sentimento é de que não existimos — invisibilidade que seria maior não fosse a proximidade de Manaus”, revela Cruz. A exceção ao esquecimento é “quando chegam os políticos querendo votos em época de eleição”.

Quem trabalha rotineiramente no transporte entre Manaus e o entorno conhece bem a relação entre esses dois mundos. “Nas comunidades ribeirinhas situadas em unidades de conservação, há melhor infraestrutura do que muitos bairros da capital”, afirma Ezequias Carneiro de Oliveira ao desembarcar na Marina do David — ponto de saída e chegada das embarcações que servem povoados no Rio Negro. O piloto de lancha, morador do bairro Nossa Senhora de Fátima, às margens do igarapé Tarumã-Mirim, sente na própria pele o modo como a metrópole vê a floresta: “Falta um olhar mais digno dos governantes”. Sem coleta regular, o lixo do bairro acaba queimado no fundo dos quintais. E, para ter água, cada qual precisa cavar o próprio poço; não há fornecimento público.

Há 10 anos, Oliveira migrou da Reserva Extrativista Médio Purus, em Lábrea, no Sul do Amazonas, em busca de oportunidades na capital. Antes de tirar a habilitação como piloto, trabalhou na construção de barcos. “Manaus está geograficamente conectada com a floresta, mas poucos cuidam”, reforça o barqueiro, lembrando que a periferia urbana, muitas vezes, é como terra sem lei.

O “sopro” do curupira

A região do Baixo Rio Negro, no município de Manaus e arredores, é cenário rotineiro de navegação para Oliveira, diante da logística demandada por instituições e projetos socioambientais. Na praia do Iluminado, apreciado balneário de areias claras e águas cristalinas em meio às belezas naturais, o barqueiro atraca a lancha e já aponta para o maior inimigo: o lixo descartado na área pelos turistas que chegam, muitas vezes, em iates de luxo. Na vizinhança, a comunidade ribeirinha do Tumbira, inserida no município de Iranduba, Região Metropolitana, é vitrine de histórias sobre a relação entre o homem e a floresta. “Na paixão, fazemos muitas loucuras, mas ela acaba. E daí desperta o amor, que cuida”, ressalta Roberto Brito, ex-cortador de árvores que encontrou uma luz na escuridão da floresta. Ele trocou a derrubada de madeira, antes única alternativa de subsistência, pela conservação da natureza em pé – essencial à nova atividade que sustenta a família: o turismo comunitário.

A área foi transformada, em 2008, na Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) do Rio Negro, com políticas estaduais de apoio a atividades de baixo impacto, mas, antes disso, o dono do restaurante e pousada Garrido viveu um difícil passado que faz questão de contar: “Era muito sofrimento na mata para o corte das árvores, com vários perigos, além da exploração predatória pelos comerciantes de madeira ilegal, vendida para a construção civil”.

O crescimento urbano de Manaus, além da madeira remetida para consumo em São Paulo e outras regiões do País, foi um dos motores do desmatamento no passado. “No ápice da exploração, até a criação da reserva, nossa relação com a capital era distante: o barco dos madeireiros ficava fundeado na comunidade para a troca da nossa madeira por mercadorias trazidas da cidade, em condições injustas de valores. Eles não deixavam os extrativistas irem junto com a carga até o destino final de venda para que não constatassem as diferenças dos preços de revenda e se rebelassem. O mundo da metrópole não existia para nós”, relata Brito. Ele completa: “Hoje, com o turismo, Manaus faz parte do nosso cotidiano, desde o traslado de visitantes até a compra de insumos para a cozinha da pousada”.

Nessa nova dinâmica, devido à internet, os jovens locais têm maior envolvimento com pessoas da capital, e mais oportunidades de estudo e experiências de vida, muitas vezes replicando conhecimento de volta na comunidade. Entre os exemplos, Geovane Garrido, filho do empreendedor, cursa faculdade de gestão ambiental, ajuda no monitoramento da fauna e flora pelo órgão ambiental do estado e contribui com trabalhos científicos de pesquisadores na área da reserva. Na atividade, já conheceu a Alemanha e a Guatemala, sinal das chances que se apresentam aos moradores da comunidade com a floresta em pé.

“Com o turismo, que depende da natureza conservada, tenho o desafio de ser uma referência para que muitos pensem igual”, pondera o empreendedor. Além das trilhas, banho de rio, cachoeira e focagem de jacaré, há também atrativos culturais, como causos e lendas da Amazônia contadas por quem vive lá. “Quando dormia na mata para derrubar árvores e retirar madeira, me arrepiava de medo com o assobio do curupira”, revela Brito. “Era uma espécie de grito da natureza, como um ‘ai’ de dor pela agressão — e o castigo poderia ser implacável”, explica. Hoje, sem a ação das motosserras, a floresta bem conservada e suas energias ocultas recebem com paz os forasteiros. E o “sopro” do curupira tornou-se um ativo do turismo. Na mesa de cabeceira de um quarto da pousada gerida pelo ex-madeireiro, o livro Poranduba Amazonense, do autor João Barbosa Rodrigues, sobre lendas mitológicas da região, ilustra o valor dessas histórias.

Floresta empoderada

Os poderes de entidades da floresta estão presentes no imaginário de quem vive na zona rural do município de Manaus, com um toque de modernidade. Que o diga Izolena Garrido, um misto de professora, artesã, empreendedora, liderança comunitária, mulher e mãe, que desde cedo, aos 12 anos, teve a oportunidade de trilhar uma vida independente ao sair da comunidade do Tumbira para estudar em Novo Airão, na Região Metropolitana. Em 1997, ela voltou para o povoado ribeirinho como professora: “Remava 45 minutos no rio cheio para chegar na escola. No período seco do ano, caminhava uma hora e meia”.

Na trilha da educação, despontar como liderança da organização social após a comunidade ter sido oficialmente reconhecida no ano 2000 – e finalmente entrado para o mapa – foi um pulo natural. Na época, o cenário de restrições de uso da floresta e de aperto da fiscalização pelo Ibama na Área de Proteção Ambiental induzia conflitos como um barril de pólvora. “Como viver em local onde não se podia fazer roçado, caçar ou cortar um graveto sob o risco de ser expulso da área ou até preso por crime ambiental?”, questiona Garrido, então única liderança feminina na região. A atividade madeireira, principal meio de sustento, sofreu um baque. “Sem renda, a fome passou a ser uma ameaça real, e as famílias viam a sala de aula não como espaço de aprendizagem, mas de acesso à merenda e segurança alimentar”, conta.

Ela tomou coragem e escreveu ao governador, pedindo uma solução, porque os conflitos se intensificavam após um histórico episódio de apreensão de madeira ilegal, com a prisão de extrativistas, em 2008. A situação só começou a mudar com a transformação da área em uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) e a chegada do Programa Bolsa Floresta, criado pelo governo do Amazonas para recompensar financeiramente, com melhorias socioambientais, quem mora em unidades de conservação e as protege. A iniciativa permitiu menor impacto no uso da floresta e demandou novos avanços da educação e acesso aos órgãos públicos e instituições da metrópole para ações na comunidade.

“Dessa forma, começou uma nova relação entre Manaus e quem vive em áreas de conservação, onde jovens passaram a ter escola de Ensino Médio, além de cursos técnicos para obter renda e um futuro melhor na própria comunidade, na capital ou qualquer parte do mundo”, observa Garrido. “Deixamos de lado a vergonha de ser filhos e filhas de pescador, diferente dos meus tempos de juventude, quando muitos colegas ficavam para trás”.

A internet e o acesso à informação reduziram as distâncias, não apenas geográfica em relação à metrópole. A filha Helena aprendeu a tocar violão em cursos online; a outra, Vitória, aprofundou a técnica de desenho e caricatura; e – por fim – a terceira, Maria Eduarda, utilizou wifipara se tornar manicure. Com a pandemia, muita coisa mudou na forma de pensar das comunidades ribeirinhas, mas Garrido pergunta, com dúvidas: “A capital está preparada para um novo momento?”

Com orgulho, a artesã exibe o colar de fibra de tucumã e semente de açaí, destaque do portfólio como designer de ecobijuterias, com venda pela internet para entrega na metrópole. “É um meio de obter o sustento e devolver ganhos para a natureza, respeitando o tempo dela”, enfatiza a professora-artesã. Com um diferencial: a abertura do atelier para que outras mulheres da comunidade descubram o talento, com inspiração nos materiais da floresta mantida em pé. E também nos desenhos de cerâmicas feitas por índios primitivos e que afloram na beira dos rios e dos roçados. Além da rotina em sala de aula, Garrido se dedica à valorização social de professores e professoras em projeto baseado no resgate de saberes tradicionais e no empreendedorismo para uma bioeconomia, criando alternativa de renda e multiplicando o conceito nas escolas.

Quem foi para a cidade, quem ficou na floresta

As histórias de vida, os sonhos e as realidades dos diferentes territórios marcam a dinâmica entre a metrópole e a “Amazônia profunda”

Maickson, vindo de Vila de Boim, Rio Tapajós, Pará. Macaulay, criado em Borba, Rio Madeira, Amazonas. Henrique, filho da comunidade São Raimundo, Rio Juruá, no mesmo estado. Três pessoas, três histórias de vida e uma origem comum: a floresta. Porém, com destinos diferentes. Os dois primeiros, como muitos jovens dos povoados ribeirinhos, migraram para a metrópole em busca de oportunidades e um futuro mais próspero do que a terra natal, distante dos centros econômicos e do poder, tem a oferecer. O terceiro faz um movimento no sentido contrário ao ver na longínqua floresta um grande campo de trabalho para manter vivas as tradições que historicamente marcam a peculiar região em que vive – e desenvolvem a economia e a renda sem o glamour, o agito e os problemas de uma grande cidade. Três nomes, três testemunhos, três personagens atuais de uma velha história, tão antiga quanto a saga do convívio homem-floresta que mobilizou populações ancestrais no período pré-colonial e hoje influencia as dinâmicas urbanas na Amazônia.

Maickson Serrão, 30 anos, professor e jornalista, encontrou em Manaus, aonde chegou em 2016, fonte fértil de possibilidades para seguir um caminho diferente do que costuma se abrir para os jovens da Vila de Boim, margem esquerda do Rio Tapajós, na região de Santarém (PA). Não foi uma mudança simples. Acolhido de início no bairro da Compensa, periferia da cidade e reduto do tráfico de drogas, conheceu de perto a realidade da violência urbana. Na escola, como docente em início de carreira, precisava de habilidade pedagógica e, também, atenção ao lidar com o cenário do crime organizado.

“Em uma cidade de contrastes imensos, ocupações irregulares estão muito próximas de espaços planejados e com serviço de tratamento de esgoto”, observa Serrão ao lembrar que, em Manaus, pela primeira vez conheceu o tão falado “rip rap”, onde as residências são construídas sobre córregos poluídos, com esgoto a céu aberto. No entanto, foi trabalhando em projetos de educação em uma ONG que ele entendeu a dimensão das faces urbanas e rurais do município, inclusive no entorno de floresta que o fazia de certa forma se lembrar da terra natal.

Em meio à vida urbana, Serrão se voltou mais detidamente ao mundo da floresta impresso em sua genética quando realizou o sonho de cursar Jornalismo, um desejo da infância, e conheceu o universo do podscast – a nova paixão do jovem ribeirinho. Com um diferencial: o foco nos temas da cultura e da natureza amazônicas, abordagem que o colocou no pódio do Sound Up Brasil, concorrido programa do Spotify para garimpagem de projetos de produtores de conteúdo que buscassem surfar na podosfera. Como uma das criações vencedoras da seleção, o podcast narrativo Pavulagem — Contos da Floresta recebeu apoio para construção e será lançado em 2022 pela plataforma.

Em doze episódios, o conteúdo aborda personagens e entidades do folclore amazônico, como, por exemplo, o Taú: um pássaro que come gente. No podcast, as lendas que fizeram parte da diversão na infância de Serrão são contadas por ribeirinhos e indígenas. Ele explica: “Cresci ouvindo essas histórias. Como venho de uma comunidade ribeirinha, a energia elétrica era precária, e, ao invés de assistir à novela ou jornal na TV, a gente ouvia histórias na casa da tia Maurícia. Era uma das coisas que eu mais gostava, porque elas traziam algum ensinamento e mostravam o quanto a floresta é sagrada para a gente. Mostravam que precisamos obedecer a certos princípios, valores e tradições. Caso contrário, acontece algum castigo, alguma punição. Aquilo era muito mágico para mim, muito presente no dia a dia”. 

Na visão de Serrão, Manaus precisa dialogar com a população de comunidades tradicionais e com os indígenas, investir em pesquisas, fomentar a ciência e tecnologia e enxergar a floresta como um ativo que vai impulsionar a cidade.

“Quando viemos de uma ligação muito forte com a floresta, junto ao senso de comunidade temos uma noção harmoniosa sobre a vida, uma abertura de pensar em sustentabilidade, em preservação. Na comunidade, a natureza está muito próxima. Ao ir para a cidade, mantemos isso muito vivo e percebemos o quanto essa realidade é distante para quem já nasce no contexto urbano, em local que gera muito resíduo e que não cuida dele”, afirma o professor.

“Manaus precisa retratar o contexto amazônico em sua própria aparência, na economia mais voltada para a região e na forma como se apresenta para o mundo”, recomenda Ademar Cruz, coordenador de relações institucionais da Fundação Amazônia Sustentável, com longa experiência na chamada “Amazônia profunda” e suas relações com a metrópole.

Segundo ele, na região da Reserva Extrativista do Rio Gregório, distante uma semana de barco ou mais da capital, levas de jovens deixam as comunidades porque não há Ensino Médio. O único futuro é o trabalho pesado na roça. As casas não têm banheiro e água potável, e a energia só dura seis horas por dia. A internet é rara e precária: só existem dois pontos de wifi nas 20 comunidades locais.

Ao mesmo tempo, a maioria dos que vivem nessas áreas de reserva ambiental reconhecem a importância da conservação dos recursos naturais. Devido a isso, dependendo das ações e políticas existentes, as comunidades podem desempenhar papel estratégico como guardiãs da floresta em pé. A fuga para a cidade significaria riscos de desmatamento com a chegada de forasteiros, o que, nas áreas fora das unidades de conservação, constitui ameaça ainda maior.

“O interior olha para a metrópole como terra do ‘doutor’, dono do dinheiro, do conhecimento e do poder. Lugar de oportunidades de emprego para sair da dureza na floresta, além da qualidade em serviços como na saúde e educação, mas não se enxerga o sofrimento com enchentes, falta de moradia, violência e outros problemas urbanos”, analisa Cruz. Segundo ele, um terço da criminalidade está associada ao êxodo do interior.

No sentido inverso, continua ele, Manaus olha para o território fora de seus muros como lugar de atraso, sem qualificação, embora uma parte veja a floresta como área a ser explorada devido à fartura de recursos naturais. Na visão de Cruz, as falas estão cheias de contradições, estigmas e preconceitos, fruto da falta de conhecimento: “Para jovens que fazem concurso público após a graduação, trabalhar no interior costuma ser uma penalização que diminui a patente”. De acordo com ele, a mudança do cenário exige interiorizar políticas públicas e investimentos hoje centrados na capital. “Falta uma política ambiental com recursos compatíveis à altura do Amazonas”.

Lições na agricultura familiar

Da pequena Borba, às margens do Rio Madeira, onde foi criado no cotidiano da agricultura familiar, transpor a distância geográfica e cultural para viver na capital foi trampolim para o atual trânsito em fóruns internacionais, na trajetória do empreendedorismo de impacto – aquele em que os negócios, baseados em propósitos, contribuem para aumentar a escala de efeitos ambientais, sociais e econômicos positivos. No caso de Macaulay Abreu, hoje à frente da startup Onisafra, estava em jogo o projeto de resgatar a história de vida com origem na floresta e levar soluções para uma maior aproximação entre os pequenos produtores de alimentos e os consumidores, com ganhos na renda e na segurança alimentar para o convívio em harmonia com o meio ambiente.

O primeiro pulo ocorreu quando adolescente, com a mudança para estudar no colégio agrícola da capital e seguir os passos do pai, aplicando o conhecimento na comunidade. “Manaus se apresentava como uma ilha de calor cercada por natureza, que não ajudava na qualidade de vida”, conta Abreu. O estresse urbano na periferia da Zona Leste assustou, mas não atrapalhou os planos até a formação acadêmica em Agronomia, na Universidade Federal do Amazonas (Ufam) – primeiro, com foco na botânica e solos; depois, na inclusão produtiva de pequenos agricultores.

Os questionamentos sobre o papel da ciência e a inquietude por autonomia nas ideias eram recorrentes, até que ouviu pela primeira vez o termo startup, em evento sobre empreendedorismo no qual conheceu o atual sócio.

Foi a virada de chave. “Sabia o significado de inovação, mas o conceito de impacto socioambiental era uma novidade”, revela o agrônomo, à época já de olho nos potenciais das tecnologias digitais. A inspiração para levar soluções ao meio rural veio após o desabafo de um amigo que produzia banana em Rio Preto da Eva (AM), Região Metropolitana, e não estava satisfeito com os preços pagos por intermediários. Assim nasceu a Onisafra, propondo mediar a relação entre produtores e consumidores por meio de uma plataforma digital de comércio para a venda e a entrega da alimentos na porta dos manauaras.

Hoje, são oferecidas 20 linhas de produtos regionais e nacionais. “Evoluímos ao longo do tempo em questões como a rastreabilidade de alimentos e passamos a abranger também a demanda empresarial e institucional, contribuindo com a profissionalização de cadeias produtivas, inclusão digital e organização social de produtores”, ressalta Abreu.

O atual momento do negócio é reflexo, também, das vivências e percepções do empreendedor sobre a relação entre floresta e cidade. “A capital não tem a dimensão real sobre o interior, e há dificuldade de compreensão sobre a origem dos alimentos e preços; muitos acham que são produzidos na cidade”, diz. O maior entendimento sobre o valor da floresta depende, segundo Abreu, do nível de acesso à informação em cenário de polarização do tema “Amazônia” na internet.

Na metrópole, os quintais florestais das residências mantêm, de certa forma, uma conexão mínima com o interior, “mas há preconceitos nas entrelinhas das conversas, e tinha vergonha dos olhares atravessados após mudar para a cidade”, conta o empreendedor.

Ele lembra que, na periferia da capital, o padrão de vida é diferente do que se tinha na floresta, e vai além: “Como amazônidas, achamos que a região é especial, mas há desafios sociais por trás dos números sobre a floresta em pé. Assim como o mundo olha para o Brasil, o Brasil olha para Manaus, que, por sua vez, olha para a Amazônia como grande potencial, mas fica nisso. Temos noção do que temos em mãos, mas não sabemos usar porque falta informação, e as políticas públicas vêm de cima para baixo. A economia deve crescer utilizando recursos da floresta de forma consolidada para que a sociedade entenda o caminho. Hoje, não temos essas referências para uma relação diferente entre cidade e floresta”.

Ele fica na floresta para continuar a luta dos avós

O mundo de Henrique Cunha, 23 anos, é a floresta. Mais especificamente, aquela da distante Carauari (AM), no médio Juruá. Em uma das curvas desse que é o rio mais sinuoso do planeta, a comunidade São Raimundo se destaca como celeiro de lideranças sociais – herança da lendária luta dos seringueiros por condições justas de trabalho e autonomia nos territórios sob o jugo dos “patrões”. O legado hoje se traduz no propósito dos mais jovens de manter a história viva como guardiões do futuro da floresta de onde se retira o sustento.

Na região, Cunha mobiliza ações de educação ambiental e trabalha no time que faz a vigilância dos lagos e a contagem do pirarucu para o manejo sustentável da espécie, importante fonte de renda. “Junto ao pescado, várias outras espécies da biodiversidade acabam protegidas, como os quelônios”, explica a liderança, também dedicada ao plano de fazer um curso técnico ou a universidade, para evoluir na gestão comunitária.

A organização da pesca, com acesso a mercados e preços favoráveis, se reflete na melhor qualidade de vida – desafio que tem atraído diversos projetos e parcerias institucionais para a região. A tradição de associações e cooperativas fortes é uma vantagem vital nesse processo, viabilizando um acesso mais fácil ao “chão” das comunidades na floresta, para a aquisição de insumos da biodiversidade por indústrias. “Queremos replicar, trocar experiências e expandir esse conhecimento nas redes sociais para ter vez no mundo”, afirma Cunha.

Ele lembra a primeira vez que foi a Manaus, em 2016, para tratamento de saúde, porque o município onde vive não tinha a segurança de médicos ou materiais suficientes. São cerca de sete dias de viagem de barco, quando não se tem dinheiro para pagar caro por uma passagem de avião. “De início, na capital, a impressão não foi o tamanho da cidade, mas o estilo de vida, a correria do consumo nas compras, um mundo de liberdade limitada em que as pessoas não confiam umas nas outras. É uma realidade bem diferente.”

Na comunidade São Raimundo, o conhecimento é transmitido de pai para filho. Lá, o ribeirinho Manuel Reis da Cunha, avô do agente ambiental, já avisa sobre a mudança do clima, agora mais quente, influenciando a rotina de trabalho no roçado. “Está cada vez mais difícil diferenciar o verão do inverno”, constata o neto, também monitor do Instituto Ipê na região.

“No Juruá, crescemos com foco no pensamento como liderança, e a grande cidade não têm essa visão”, compara Cunha. Segundo ele, há muita coisa que acontece na floresta e que o pessoal de Manaus não tem o mínimo conhecimento, sendo necessário maior nível de diálogo para unir os dois lados. “Seria importante falarmos a mesma língua, termos maior aproximação para ampliar o trabalho da conservação ambiental, bem como os recursos, hoje centralizados na metrópole”, sugere. Ele conclui: “Manaus poderia contribuir mais para manter a floresta, porque todos dependemos dela, inclusive quem vive nas cidades”.

Quando saí do vilarejo ribeirinho em que morava, minha expectativa era ganhar o mundo, mas um dia voltar para lá. De início, quando cheguei, em 2016, a metrópole me causou medo, porque estava sozinho e era tudo novo, mas aos poucos fui desbravando e me encantando. Nela, alcancei muitos voos na vida. Primeiro, como professor da rede pública estadual; depois, por integrar coletivos de jovens, como o Global Shapers, e pela conquista do diploma de jornalista. E agora submergi no mundo dos podcasts como contador de histórias sobre a Amazônia e sua floresta, povos, lendas e tradições. Espero que Manaus aprenda com os erros do passado e seja uma cidade com mais qualidade de vida; que dialogue com o verde, a sustentabilidade, a garantia dos direitos básicos dos cidadãos

MAICKSON SERRÃO, PROFESSOR, JORNALISTA E PRODUTOR DO PODCAST PAVULAGEM

“Precisamos de uma Manaus amazônida e não paulista“

ADEMAR CRUZ, FUNDAÇÃO AMAZÔNIA SUSTENTÁVEL

É necessário gerar valor ao produto da agricultura familiar para que meu negócio exista. Não fazemos nada surreal, de outro mundo. Devemos tornar essa relação o normal. Quem pensa em inovação normalmente acha que tecnologia está longe da floresta, mas está mais próxima do que imaginamos. Temos o desafio da bioeconomia digital, sabendo-se que há diferentes culturas e modelos mentais. É preciso jogar outro game: entender e respeitar o tempo da Amazônia

MACAULAY ABREU, EMPREENDEDOR E FUNDADOR DA ONISAFRA

Nossa realidade é bem diferente de Manaus, porque lá os jovens normalmente não estão engajados em movimentos sociais para melhores condições de vida como aqui. É claro que há exceções, com coletivos urbanos operantes, mas no geral falta uma maior visão sobre a desigualdade. Nossa responsabilidade aqui é outra, não apenas se formar na faculdade e ganhar dinheiro. Isso é importante como direito de todos

MACAULAY ABREU, EMPREENDEDOR E FUNDADOR DA ONISAFRA

Este texto foi originalmente publicado por Página 22 de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.

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