Vista área de corais que sofreram branqueamento na localidade potiguar de Rio do Fogo durante onda de calor em 2020 | Laboratório de Ecologia Marinha / UFRN / Reprodução Revista Pesquisa FAPESP
Por Renata Fontanetto – Revista Pesquisa FAPESP | Um tipo de evento extremo triplo que era praticamente inexistente 20 anos atrás no Atlântico Sul – a combinação de ondas de calor marinhas, escassez de clorofila e acidificação acentuada do mar – começou a ocorrer com assiduidade na porção abaixo do Equador desse oceano a partir de 2009, de acordo com artigo publicado em 16 de abril na revista Nature Communications. É a primeira vez que um estudo mapeia a frequência e a intensidade desse fenômeno composto nesse segmento do Atlântico.
A ocorrência dos eventos foi analisada ao longo de dois períodos de 10 anos consecutivos (de 1999 a 2008 e de 2009 a 2018) em seis regiões do Atlântico Sul, três perto da costa brasileira e três do litoral da África. Em todas, durante o primeiro intervalo de tempo, não houve registro de nenhum evento que juntasse concomitantemente os três tipos de extremos. No segundo período, a história mudou completamente. Os episódios de eventos triplos começaram a aparecer e a se tornar relativamente comuns. De acordo com a região em análise, a duração mínima acumulada do total de eventos triplos variou de 17 a 49 meses na segunda década coberta pelo estudo (ver quadro comparativo abaixo). Os episódios concomitantes mais severos reunindo ondas de calor, alta acidez e pouca disponibilidade de clorofila abrangeram áreas que representavam entre 4% e 18% da extensão total de cada região.
“A partir de 2016, esse fenômeno triplo passou a ocorrer praticamente todo ano”, destaca a oceanógrafa física Regina Rodrigues, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), primeira autora do artigo. Segundo o trabalho, o verão da temporada 2015-2016 foi excepcional em termos de intensidade e abrangência espacial de eventos triplos compostos nas seis regiões estudadas.
As áreas analisadas no lado oeste do oceano, próximas à costa brasileira, foram a do Atlântico Equatorial (ao largo do Nordeste), do Atlântico Subtropical (Sudeste) e da Confluência Brasil-Malvinas (Sul). Na margem leste, nos arredores da África, foram alvo do trabalho as regiões conhecidas como Atlântico Equatorial oriental (ao largo da Nigéria, Camarões e Gabão), a Frente de Angola (colada a esse país e à Namíbia) e o Vazamento das Agulhas (ao sudoeste da África do Sul).
Distúrbios climáticos intensos que ocorrem nessas zonas podem afetar a pesca e a maricultura local. Águas mais quentes e ácidas aumentam a mortalidade de espécies marinhas e causam o fenômeno do branqueamento de corais, indicativo de enorme estresse. A menor presença de clorofila no mar, pigmento verde natural indispensável para a realização de fotossíntese em plantas e algas, aponta uma redução na disponibilidade de fitoplâncton, essencial na dieta de muitos organismos marinhos.
Para confirmar a ocorrência de um evento triplo, é necessário que cada um dos três fenômenos extremos se sobreponha simultaneamente em pelo menos 1% da área de interesse. O estudo centrou sua análise nos meses de verão, de dezembro a março. A incidência de ondas de calor no Atlântico Sul se baseou em informações produzidas pela Administração Nacional Oceânica e Atmosférica (NOAA), dos Estados Unidos. A ocorrência de eventos extremos de alta acidez foi obtida a partir de dados do Met Office Hadley Centre, do Reino Unido. Os extremos de baixa concentração de clorofila no Atlântico Sul foram inferidos a partir de um modelo da Nasa, a agência espacial norte-americana, que calcula a concentração do pigmento natural verde nos oceanos.
Para a oceanógrafa Leticia Cotrim, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), que não participou do estudo, o diferencial do artigo é produzir dados sobre a frequência e a extensão de eventos extremos marinhos compostos por três alterações concomitantes. “É um trabalho inovador. Até então, havia apenas estudos que analisavam um tipo de evento extremo de forma isolada ou, no máximo, dois juntos, geralmente em outros oceanos que não o Atlântico Sul”, comenta Cotrim. “Os resultados do trabalho podem orientar projetos de conservação oceânica, além de servirem de subsídio para atividades econômicas que dependem do mar.”
Um dado preocupante do estudo diz respeito ao aumento do processo de acidificação no Atlântico Sul. Entre 1998 e 2008, esse fenômeno praticamente não existia nessa porção do oceano, com exceção de dois pontos mais ao norte, perto do continente africano. A partir de 2009, o Atlântico Sul começou a ficar muito mais ácido. Essa alteração está associada ao aumento da temperatura média global nas últimas décadas decorrente da subida nas emissões de gases de efeito estufa, como o dióxido de carbono (CO₂) e o metano (CH₄), que esquentam o planeta. “Temos episódios de acidificação marinha cada vez mais frequentes. Essa tendência parece aumentar a ocorrência desses eventos compostos triplos nos últimos 10 anos”, diz, em entrevista a Pesquisa FAPESP, o oceanógrafo Thomas Frölicher, da Universidade de Berna, na Suíça, outro autor do artigo.
O clima da Terra, que esquentou cerca de 1,5 grau Celsius (ºC) desde meados do século XIX por conta das emissões de gases de efeito estufa decorrentes de atividades humanas, estaria hoje ainda mais tórrido sem os oceanos. Eles absorvem 90% do calor da atmosfera terrestre e 30% das emissões de CO₂. Mas esses serviços ambientais têm um custo para os mares. A absorção da maior parte do calor terrestre impulsiona as ondas de calor marinhas. A retirada de quase um terço do principal gás de efeito estufa torna suas águas mais ácidas.
Em anos de El Niño, fenômeno caracterizado pelo aquecimento anormal das águas superficiais da parte central e leste do oceano Pacífico equatorial, tudo se intensifica. Essa alteração climática deflagra mudanças na atmosfera que interagem com as condições oceânicas. “O El Niño atua como um agente remoto sobre os fatores locais que observamos. Portanto, em anos com El Niño, como entre 2015 e 2016, a incidência de eventos extremos triplos nas seis regiões do Atlântico Sul é certamente alta”, explica Rodrigues.
Em outro artigo no qual a pesquisadora da UFSC também é coautora, publicado em março de 2025 na revista Communications Earth & Environment, as ondas de calor sozinhas, mesmo quando não há aumento acentuado da acidez marinha, são suficientes para causar danos extensos a recifes de corais em áreas perto do Equador. Em águas muito quentes e com outros fatores de estresse, como excesso de luz solar, os corais expulsam as algas que dão cor aos seus tecidos, provocando seu branqueamento. Desde a década de 1980, esse tipo de evento extremo se tornou 5,1 vezes mais frequente e 4,7 vezes mais intenso em águas tropicais do Atlântico Norte e Sul.
Um episódio recente que chamou a atenção foi a forte onda de calor marinha que atingiu os arredores de Rio do Fogo, município litorâneo do Rio Grande do Norte, entre o verão e o outono de 2020. O aquecimento das águas locais levou ao branqueamento de 85% dos corais duros e de 70% de zoantídeos, animais com corpo geralmente mais mole que habitam recifes. “A água atingiu 32 °C; no verão, o normal ali é 28 °C”, diz o biólogo Guilherme Longo, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), outro autor do artigo. “Várias espécies de coral da região apresentam um limite termal médio de 29,7 °C. Se expostas a temperaturas acima desse patamar, elas começam a sofrer danos biológicos.”
Segundo Longo, as ondas de calor têm aumentado em frequência, intensidade e extensão, afetando mais áreas da costa do Nordeste. Em 2024, ano mais quente na história recente do planeta, um evento extremo térmico sem precedentes assolou a região. “A extensão do fenômeno e a mortalidade de espécies foram um pouco maiores no ano passado que em 2020. Muitas espécies tinham acabado de sair de um distúrbio muito intenso e passaram por outro em seguida”, comenta o biólogo. Com o aquecimento global em alta, novos recordes negativos devem assolar o Atlântico.
Este texto foi originalmente publicado pela Revista Pesquisa FAPESP, de acordo com a licença CC BY-SA 4.0. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.
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