Usina de Belo Monte em Altamira, PA | Foto: Bruno Batista / VPR sob CC BY 2.0 no Wikimedia Commons
Por Tiago da Mota e Silva – Mongabay | No dia 17 de fevereiro de 2016, ocorreu o primeiro giro mecânico da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, entre os municípios de Altamira e Vitória do Xingu, no estado do Pará. Meses depois, em abril, a usina já entrava em operação comercial. Naquele mesmo ano, o pesquisador Jansen Zuanon esteve na Volta Grande do Xingu, o trecho de 130 km do Rio Xingu que teve seu curso desviado, e sua vazão reduzida, devido à operação da usina.
“Estive lá logo que começaram a funcionar as primeiras turbinas. Naquele momento, o reservatório ainda estava enchendo”, relembra Jansen, que foi acompanhado da equipe do Monitoramento Ambiental Territorial Independente (Mati) e de representantes do Ministério Público Federal (MPF). “A gente ia avançando de canoa e encontrava os capararis nas margens, nas águas rasas. Eles estavam claramente desnutridos, com olhos fundos, com feridas, faltando dentes e cheios de parasitas. Eram como peixes zumbis, morrendo aos poucos.”
Hoje, quase dez anos depois do início de suas operações, novos impactos negativos da usina de Belo Monte se revelam. Mais recentemente, neste ano, o mesmo grupo de monitoramento divulgou, em nota técnica, o registro de peixes com alterações físicas visíveis em pescadas (Plagioscion squamosissimus): com o corpo oval, curto e arredondado, diferente do aspecto alongado normal, indicando deformidades na coluna vertebral.
Nascida e criada no Xingu, na vila ribeirinha de Belo Monte, Sara Rodrigues Lima foi uma das pescadoras que encontraram peixes nessas condições e passou a registrá-los em 2021. Ela não só relata as deformidades e o prejuízo no crescimento, como também a incidência surpreendente da ocorrência, estimando-a em quatro a cada dez pescadas capturadas — levantamentos que ainda precisam ser corroborados por pesquisas futuras. Para efeito de comparação, experimentos em laboratório observaram cerca de 15% de deformações em larvas de tambaqui em ambiente controlado e considerado ideal — algo entre um e dois animais a cada dez, apenas.
“Pegaram o nome da nossa comunidade e deram a este monstro”, conta Sara, referindo-se à usina que coloca em risco a pesca e a segurança alimentar de duas terras indígenas (Paquiçamba e Arara da Volta Grande do Xingu) e de dezenas de comunidades ribeirinhas ao longo do trecho.
Sara se tornou uma das vozes ativas na luta contra a atual operação praticada pela Norte Energia. Suas fotos e registros não só alimentam o monitoramento independente, como também motivaram o MPF a abrir ação contra o desvio da vazão da Volta Grande do Xingu para as turbinas de Belo Monte, naquele mesmo ano. Em 2025, durante a COP30, em Belém, o MPF apresentou publicamente a tese do colapso ecossistêmico, incluindo a deformidade de peixes como um dos indicadores mostrados ao público e à imprensa.
Jansen Zuanon destaca como a deterioração dos habitats aquáticos ligada à operação da usina desencadeia uma série de transformações que podem estar associadas à ocorrência tão elevada de deformidades.
A primeira das hipóteses é a própria deficiência nutricional, devido à mudança nas cadeias alimentares do rio. Outra possibilidade é a transformação de um ambiente de corredeiras, únicas na região, em outro cheio de sedimento, com água quente e parada e, por isso, com menos oxigênio disponível, o que afetaria o desenvolvimento dos peixes em fase larval. Também é provável que a água retida no reservatório tenha sido contaminada por substâncias tóxicas, como é o caso do mercúrio, que comprovadamente pode desencadear deformidades.
Doutoranda em biologia de água doce, Anna Paula Costa Scherer tem desenvolvido experimentos em laboratório com larvas de tambaqui em salas que simulam cenários climáticos drásticos, com águas mais quentes e maior concentração de gás carbônico na atmosfera. Nestes experimentos, já se têm observado deformidades de coluna relacionadas a essas condições extremas.
A pesquisadora destaca que o tipo de deformidade encontrada na Volta Grande do Xingu provavelmente se desenvolve nas formas mais jovens do animal, e não são adquiridas já quando adultos. “São muitos fatores que podem desencadear isto”, explica. “Desde a velocidade da água, devido às oscilações bruscas do fluxo, até questões clássicas e bem conhecidas, como acúmulo de material orgânico em decomposição na água. Mas, realmente, as análises feitas nos estudos de impacto ambiental da usina não estavam levando esses pontos em consideração.”
Os peixes coletados com deformidades foram encaminhados para análise laboratorial e, até a conclusão desta reportagem, não havia informações disponíveis que pudessem excluir ou confirmar algumas dessas hipóteses. Até o momento, também não há estudos que quantifiquem a taxa exata de deformidades na Volta Grande.
O complexo de Belo Monte tem dois sítios principais: o sítio Pimental, cerca de 40 km a jusante de Altamira, onde fica a principal barragem, e o sítio Belo Monte, onde está a casa de força principal. Entre eles, há um canal de derivação de 20 km de extensão, conectando o reservatório principal, de 359 km², ao intermediário, de 119 km², que, por sua vez, alimenta as turbinas.
Porém, ao longo do leito do Xingu, o rio já fazia, naturalmente, uma grande curva, criando ecossistemas únicos até mesmo para a Amazônia. A partir da instalação da usina, cerca de 70% da água do rio que corria para a Volta Grande passou a ser desviada para esse sistema de reservatórios e canais. Com isso, a região recebeu outro nome em documentos oficiais — técnico, supostamente neutro: Trecho de Vazão Reduzida (TGR).
A Volta Grande flui sobre um leito rochoso, formado onde o rio cruza áreas de rochas antigas e duras, conhecidos como escudos cristalinos, criando corredeiras. A sazonalidade do rio, com pico de cheia entre março e maio, se combina ao declive acentuado e aos numerosos canais entrelaçados, gerando um mosaico de habitats que sustenta uma fauna de peixes única no mundo, incluindo espécies ameaçadas de extinção e altamente dependentes dessa água ligeira, de fluxo intenso.
O ritmo dos rios da Amazônia — seus períodos de subida, cheia, vazante e seca, definidos cientificamente como pulsos de inundação — funciona como “os batimentos cardíacos do rio que sustentam a vida”, nas palavras de Josiel Juruna, coordenador do Monitoramento Ambiental Territorial Independente (Mati).
Para descrever essas batidas, a hidróloga Renata Utsunomiya evoca sua pesquisa junto ao povo Arara do Xingu, descrevendo como o comportamento dos peixes é uma das formas de acompanhar esse pulso. “A pescada some das partes fundas do rio anunciando a vazante, assim como os arbustos dos pedrais ficam verdes antes do rio começar a encher”, conta a pesquisadora, mostrando como a vida da Volta Grande está afinada com o ritmo do rio.
Essas condições também criam habitats com vegetação adaptada, em interação direta com a fauna aquática. Os sarobais são formações de baixa estatura sobre as rochas, que florescem no fim de novembro, no início das chuvas, derrubando frutos no rio e oferecendo um banquete aos peixes que começam a entrar nas águas rasas dos canais laterais para desovar e renovar a vida — período conhecido como piracema.
“Mas isso não acontece mais”, descreve o botânico Adriano Quaresma, pesquisador das áreas alagáveis em Volta Grande. “Com a mudança do fluxo, a água não chega. Tem um atraso de dois a três meses. Essas árvores florescem, mas o fruto cai no seco.” Quaresma é autor de um estudo que, recentemente, demonstrou a perda de vegetação dos sarobais na área, assim como a substituição de espécies de plantas dos igapós por outras, que só ocorrem em florestas de terra seca.
O chamado “Hidrograma de Consenso” (HC) é o regime de vazão estabelecido para o Trecho de Vazão Reduzida, aprovado pela Agência Nacional de Águas (ANA) em 2011, com ligeiras modificações em 2014. Na prática, ele funciona como uma espécie de “receita” que define o mínimo de água que deve continuar correndo pela Volta Grande a cada mês. Seus valores são definidos como as vazões médias mínimas mensais a serem liberadas para o trecho, supostamente simulando a sazonalidade do rio.
O Hidrograma de Consenso estabelece dois regimes de vazão mínima mensal que deveria fluir para a Volta Grande do Xingu: o A e o B. No regime A, a vazão mínima em abril, pico da cheia, seria de 4.000 m³/s. Já no regime B essa mínima sobe para 8.000 m³/s. Ano a ano, os regimes A e B deveriam ser alternados. Deste modo, após um ano com menos água, no regime A, a vida no trecho seria compensada no ano seguinte por uma vazão maior, no regime B.
Porém, segundo informações levantadas por Renata e outros 42 pesquisadores do monitoramento independente, o hidrograma (seja A ou B) proposto pelo estudo de impacto ambiental da usina visava simular o pulso de inundação natural — o que não ocorre. Considerando que o regime A já foi entendido como inviável pelo Ibama, no parecer 133 de 2019, a demanda de comunidades e pesquisadores é de que todo o hidrograma seja rejeitado.
Segundo Renata, o nome do hidrograma já revela um problema. “A primeira contradição é de que não houve consenso para estabelecer o Hidrograma de Consenso, pois não foi construído com participação, sobretudo daqueles que são atualmente afetados”, relata Renata. “Os critérios adotados focaram nos picos da cheia e seca, nos meses de abril e outubro, respectivamente. Porém, esse critério foi arbitrário, pois não considerava o alagamento de sarobal e das florestas alagáveis, os igapós. Mesmo no regime B, que é o mais volumoso, os valores ainda são muito baixos e com duração de cheia curta demais”, explica. Em 2022, mesmo sob o regime B houve redução de 82% na área alagada das florestas de igapó.
Na seca, o valor mínimo de vazão também ficou abaixo do histórico. Fixou-se uma vazão de 700 m³/s para outubro, abaixo da média histórica para o período antes da usina, de 1.129 m³/s. Ainda assim, em 2023-2024, a vazão caiu abaixo desse mínimo por conta de períodos de estiagem extremos. No auge da seca, em outubro de 2024, foi registrada uma vazão de apenas 536 m³/s.
Na prática, isso prolongou o período de seca extrema. Antes da usina, eram cerca de 44 dias de seca antes da usina, passando para 103,5 dias após a usina. Com períodos tão longos de água baixa e quente, espécies de peixes ficam mais vulneráveis ao calor e a doenças. Além disso, os sarobais também ficam mais expostos por mais tempo, levando a uma alta mortalidade da vegetação observada por imagens de satélite.
Sintetizando os dados, o monitoramento independente denuncia que o fluxo de água liberado para a Volta Grande não é suficiente e não consegue simular o pulso de inundação natural do rio, o que conduz aos impactos ambientais e sociais observados. Renata relembra como, em sua pesquisa, era comum ouvir frases como “agora o rio é controlado” ou “o rio está doido”. Além da redução da quantidade de água, há também um fluxo irregular, com subidas e descidas rápidas no nível do rio, descritas pelas comunidades como “enche-vaza”.
Controlada pela Norte Energia, a usina atende à demanda semanal estabelecida pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), em Brasília, que aciona ou desliga as turbinas para gerar energia sobretudo para o Sudeste do país. Esse abre-e-fecha cria oscilações bruscas, como as registradas entre janeiro e fevereiro de 2025: uma elevação de 1,67 metro em apenas dois dias, o que a Agência Nacional de Águas constatou como uma violação.
A Mongabay teve acesso ao 48º Relatório de Monitoramento Socioambiental do Projeto UHE Belo Monte, elaborado pela Norte Energia para o BNDES e referente ao período de janeiro a março de 2025. Nele, o tema das deformidades em peixes não é mencionado. Porém, um artigo de Luciano Fogaça de Assis Montag e colaboradores, publicado em 2023, já havia registrado deformidades em pescada, embora não tenham sido quantificadas.
Montag é um dos pesquisadores que compuseram a equipe da Universidade Federal do Pará (UFPA) que, em parceria com a Norte Energia, conduziu os estudos de monitoramento da pesca e da ictiofauna. Os dados gerados por esta equipe compõem os relatórios montados pela Norte Energia para os órgãos competentes, como o Ibama. A equipe foi coordenada por Tommaso Giarrizzo e Victoria Judith Isaac Nahum, que não são mais, atualmente, professores da UFPA.
O registro de deformidades em artigos acadêmicos, mas não em relatório, é um indício de descompasso entre o que é observado e registrado em campo, pela própria equipe de monitoramento oficial, e o que de fato é informado aos órgãos competentes.
Por outro lado, o Mati, que denuncia os impactos subestimados pela Norte Energia, também é composto por pesquisadores da UFPA, como é o caso de Juarez Pezzuti, pesquisador e professor do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos. Segundo fonte da UFPA — que prefere manter o sigilo —, a cooperação com a Norte Energia levou a uma situação de tensão praticamente insuportável entre o corpo docente, gerando pressões junto à reitoria para que a parceria não tivesse continuidade. Os contratos e acordos entre a universidade e a operadora ligados ao monitoramento de pesca e ictiofauna se encerraram em fevereiro de 2025, não tendo sido renovados desde então.
Também optando por não se identificar, um pesquisador que trabalhou dentro do consórcio Norte Energia – UFPA reconheceu que os desenhos amostrais definidos pelo Ibama e executados pela Norte Energia não são suficientes para captar o tipo de impacto que ocorre no Trecho de Vazão Reduzida. Os coordenadores Giarrizzo e Nahum não responderam à Mongabay para esclarecer pontos sobre esses estudos. Vale ressaltar que ambos os pesquisadores estão sob uma cláusula de sigilo com a Norte Energia — contestada pelo MPF — de, no mínimo, 20 anos.
Outros pesquisadores ouvidos pela reportagem ofereceram críticas aos resultados obtidos pelo monitoramento independente. Em linhas gerais, argumentam que as notas técnicas carecem de desenhos experimentais capazes de estabelecer uma relação de causa e consequência entre a construção das represas e fenômenos como as deformidades em peixes. Isto é, segundo essa crítica, seria necessário realizar experimentos que isolassem diferentes fatores (temperatura, poluição, oxigenação, etc.) para se chegar a essas relações de maneira mais contundente.
Em resposta a essas críticas, Juarez Pezzuti definiu as metodologias usadas para o monitoramento da Norte Energia como “um conjunto de estratégias eficientes que funcionam bem para encobrir os impactos crescentes sobre a pesca e o consumo de pescado”. Para ele, “a falácia do nexo causal é um argumento comum sempre apresentado pelo empreendedor e causador do dano ambiental. Essa é uma estratégia que as empresas causadoras de grandes danos usam a seu favor, procurando obter o benefício da dúvida. Mas o que é observado pelo Mati está em grande parte prognosticado”.
Josiel Juruna sabe que não existe, no curto prazo, um horizonte em que as barragens sejam removidas do rio Xingu. “Mas ao menos temos lutado por uma mudança no hidrograma, para um hidrograma que obedeça o pulso de vida dos rios”, defende.
O grupo coordenado por Josiel propõe um novo hidrograma, chamado Hidrograma Piracema. Nele, o pico de vazão, em abril, seria de 14.000 m³/s, o limiar necessário para ocorrência de inundação até os igapós, restabelecendo a sincronia com a reprodução. Em comparação com a vazão histórica (1971-2014), o Hidrograma Piracema resultaria em uma redução de, no máximo, 30% na vazão nos meses críticos (dezembro a maio), ou seja, ainda abaixo do passado, mas menos drástica do que a situação atual.
Para Renata, tal mudança também se mostra crucial diante dos cenários de mudanças climáticas, em que eventos extremos, como as secas de 2023-2024, tendem a se repetir com mais frequência e intensidade — tornaram inviável a operação da usina no modelo atual. “Por isso, aquele período demonstrou que o Hidrograma de Consenso é incapaz de garantir uma vazão ecológica, ou seja, é impossível garantir a vida nesse trecho do rio.”
Em resposta à Mongabay (leia o informe completo aqui), a Norte Energia informou que “o projeto foi concebido para gerar grande quantidade de energia durante o inverno amazônico, entre dezembro e maio, e, nos demais meses do ano, acompanhar e respeitar a sazonalidade do rio”. A empresa também defende que “a Usina Hidrelétrica não promove a seca no rio Xingu”, e que o fenômeno da seca “ocorre naturalmente”.
A empresa notificou que, entre 1931 e 2007, houve 17 ocorrências de vazões médias mensais abaixo de 700 m3/s, sendo que a menor vazão mensal já registrada no Xingu foi de 380 m3/s, em outubro de 1969. “Os estudos mostram, portanto, que o rio possui grande variação natural de vazões ao longo do ano”, argumenta.
Sobre o apontamento de que há mudança brusca na vazão do Xingu, a companhia esclareceu que “segue a outorga, que determina as taxas de alteração da vazão que foram estabelecidas visando a manutenção dos processos ecológicos da Volta Grande do Xingu”.
Sobre a deformidade de peixes, a empresa ainda informou que realiza “o monitoramento contínuo da qualidade ambiental e da ictiofauna na área de influência da Usina Hidrelétrica Belo Monte e não há alterações ambientais provocadas pela implantação da Usina que possam ocasionar deformidades”.
Sobre o sigilo do convênio realizado com a UFPA, a Norte Energia ressaltou que a cláusula de confidencialidade não está restrita a convênios para pesquisas. No entanto, não há proibição de entrevistas.
Este texto foi originalmente publicado pelo Mongabay, de acordo com a licença CC BY-SA 4.0. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.
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