Urso andino ou urso de óculos sofre com a fragmentação de seu hábitat, além da perda de variabilidade genética | Foto de BluesyPete sob CC BY-SA 3.0 no Wikimedia Commons
Por Yasmin Constante – Jornal da USP | Um estudo de mestrado defendido na Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da USP avaliou a qualidade do sêmen do urso andino (Tremarctos ornatus), com a intenção de criopreservar o material através do congelamento de células. O trabalho é inédito em relação à técnica, realizada por meio de colheita farmacológica, e por analisar o sêmen de um animal em vida livre. As avaliações espermáticas sugeriram que fatores ambientais, comportamentais e biológicos podem alterar a qualidade seminal. Viver em isolamento e sem contato com fêmeas foram avaliados como condicionamentos prejudiciais para o material.
O urso andino é o único urso nativo da América do Sul e, apesar de não ocorrer fora de cativeiro no Brasil, pode ser encontrado na natureza em cinco países: Peru, Venezuela, Equador, Colômbia e Bolívia. Atualmente, a espécie é classificada como vulnerável à extinção pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), o que aponta que ela pode entrar em extinção caso as condições atuais não sejam alteradas.
O urso-de-óculos, como também é conhecido, corre perigo sobretudo devido à perda e fragmentação de seu hábitat. “Junto com a fragmentação do hábitat vem uma consequência: a perda de variabilidade genética, de forma indireta. Os animais ficam naqueles fragmentos e começam a reproduzir só entre eles, que estão ali”, explica Aléxia Bom Conselho, médica veterinária e autora do trabalho.
Ao todo, seis ursos foram avaliados, com exceção de colheita para dois deles, porque apresentavam fimose ou estavam em idade pré-púbere. As coletas foram realizadas em animais sob cuidados de humanos, em três casos, e em ambiente de vida livre, em um caso. Uma das amostras coletadas em cativeiro foi contaminada com urina e teve que ser descartada, portanto a análise final contou com três amostras.
A pesquisa é um estudo piloto, que busca criar base para que novas pesquisas reprodutivas sejam exploradas. Segundo a autora, a ideia é que seja possível manejar populações, promovendo a transferência genética de indivíduos. Para isso, o trabalho busca responder perguntas base da área.
O manejo em vida livre aconteceu enquanto Aléxia Bom Conselho atuava como médica veterinária no projeto da exploradora da National Geographic, Ruthmery Pillco. Ao longo dos dois meses em que esteve na Wayqecha Biological Station, na região de Cusco, no Peru, realizou check-ups em ursos-de-óculos e coletou o sêmen como parte do processo. Já o manejo em zoológicos aconteceu no Brasil, junto a instituições parceiras, que realizaram as avaliações médicas de rotina e permitiram que a coleta do material acontecesse.
Aléxia compara o manejo em vida livre e em animais sob cuidados humanos, apontando as dificuldades do processo na natureza, como acontecia na coleta dos animais no Peru. “A gente estava no distrito de Kosñipata, que fica a mais ou menos cinco horas de Cusco. É um relevo intenso, de 2 a 3 mil metros de altitude, é difícil de respirar”, explica. A médica veterinária completa relatando que os manejos na região aconteceram enquanto chovia.
A técnica utilizada refere-se à colheita farmacológica, que utiliza um agonista alfa2-adrenérgico no protocolo anestésico. O fármaco promove a contração dos músculos impulsionando o sêmen para a uretra. O método substitui a eletroejaculação, em que ocorrem estímulos elétricos na próstata do animal que é incentivado a ejacular.
Após a colheita do material, foram medidas a concentração e motilidade do sêmen. No processo é analisado o volume de sêmen recuperado e se os espermatozoides “correm” ou se permanecem parados. A qualidade do material é considerada boa se ele apresentar alta concentração e motilidade dos espermatozoides.
A análise é feita exatamente após a colheita, quando o sêmen ainda está “fresco”. Isso porque as amostras podem facilmente sofrer alterações. “Tudo interfere no sêmen: calor demais, frio demais. Como você manipula, quanto tempo ele ficou, como você processou… tudo isso interfere. A ideia era realmente coletar e analisar logo depois”, explica Aléxia.
Estes fatores podem ser avaliados de forma direta, com o uso de microscópio, ou, como foi adotado pela pesquisa, por meio de softwares, como o iSperm mCasa – que não possui configuração específica para ursos, portanto mede o sêmen de forma geral – e o Casa Ceros 2, um sistema acurado, que analisa especificamente o sêmen do urso. “É um equipamento grande e pesado, não dava para levar a campo. Realmente só em zoológico e só quando os nossos parceiros aqui do Brasil pudessem levar”, completa. Segundo a pesquisadora, o ideal é realizar a medição com um analisador computadorizado para padronizar as espécies.
A pesquisadora aponta que a reprodução é uma parte secundária da manutenção animal, portanto a energia é destinada, em primeiro lugar, para as funções vitais, como comer, andar, urinar e defecar. Para se reproduzirem, os animais precisam estar saudáveis e em bem-estar: “Se o animal está desnutrido e doente, ele não vai ter um comportamento reprodutivo adequado ou não vai ter uma qualidade de sêmen tão boa”.
O animal precisa ainda estar em um recinto adequado, no qual possa se comportar o mais próximo possível de como seria na natureza. O trabalho aponta que a interação social com fêmeas e a presença de comportamento de masturbação foram associados a melhores parâmetros espermáticos, enquanto indivíduos que viviam isolados apresentaram menor qualidade.
O estudo avaliou um pequeno grupo de animais, o que o torna qualitativo e não quantitativo. Por essa razão, para a médica veterinária, não é possível fazer comparações entre a qualidade do sêmen obtido, apenas descrever e sugerir possíveis correlações. Ela destaca a necessidade de novos estudos, com maiores amostragens, para se obter mais dados sobre a espécie.
Segundo Aléxia Bom Conselho, é preciso ter conhecimentos básicos de reprodução para que eles sejam aplicados em biotecnologias reprodutivas, que são ferramentas que contribuem para a sobrevivência das espécies. São elas que tornam possíveis procedimentos como a inseminação artificial, a transferência de embrião e o congelamento do sêmen, por exemplo.
“Com as ferramentas de biotecnologia reprodutiva, a gente consegue manter a genética de um animal e torná-lo viável por mais tempo. Podemos translocar geneticamente um animal de forma mais simples, porque é mais fácil levar o sêmen para outra instituição do que transferir um urso de ambiente” – Aléxia Bom Conselho
A pesquisa também cria um biobanco a partir da criopreservação do sêmen, que é congelado para ser usado futuramente, mantendo a fertilidade e genética dos indivíduos conservada. Segundo a médica veterinária, “o momento de intervir e fazer estudos na área reprodutiva, assim como biobancos, é agora, enquanto ainda temos animais viáveis. Depois que extinguir, ou tiverem poucos, fica bem mais difícil salvar essa espécie”.
A tese Análise e criopreservação de sêmen de urso andino (Tremarctos ornatus) está disponível neste link.
Mais informações: alexiabomconselho@usp.br, com Aléxia Pimenta Bom Conselho.
Este texto foi originalmente publicado pelo Jornal da USP, de acordo com a licença CC BY-SA 4.0. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.
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