“É desconcertante omitir a redução do consumo de carne do plano climático da ONU”

A ausência da redução do consumo de carne nas propostas do roteiro da ONU para combater a crise climática e a fome gerou preocupações entre especialistas acadêmicos. O relatório da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) recebeu críticas após desconsiderar o potencial das proteínas vegetais para mitigar o impacto ambiental da agropecuária.

Em um comentário publicado na revista Nature Food, os especialistas destacaram a ausência de uma metodologia transparente na seleção das 120 ações endossadas pela FAO, bem como a falta de uma lista de autores, aspectos que consideraram preocupantes.

Eles instaram a que futuras partes do roteiro sejam mais transparentes, permitindo a avaliação de suas recomendações à luz de diversos estudos científicos. Esses estudos têm consistentemente apontado que a redução do consumo de carne, especialmente em países desenvolvidos, traria benefícios significativos tanto para o clima quanto para a saúde humana.

A FAO, por sua vez, contestou as avaliações dos especialistas, afirmando que estas não refletiram uma análise adequada do relatório e de suas premissas.

No mês de outubro, o jornal The Guardian trouxe à tona denúncias de ex-funcionários da FAO, que afirmaram ter sido censurados e desencorajados pela liderança da organização ao levantarem questões sobre o impacto do metano proveniente da pecuária no aquecimento global. Cientistas têm demonstrado que as metas climáticas internacionais, especialmente a de limitar o aumento da temperatura global a 1,5ºC acima dos níveis pré-industriais, dependem de mudanças substanciais na produção de alimentos. Vale ressaltar que a agropecuária é responsável por 12% a 20% das emissões globais de gases de efeito estufa e utiliza 83% das terras agrícolas, proporcionando apenas 18% das calorias consumidas globalmente.

O roteiro da FAO, divulgado durante a Cúpula Climática Cop28 em dezembro, reconhece a necessidade de mudanças nas dietas para garantir a saúde humana e planetária. No entanto, suas 120 ações negligenciam a redução do consumo de carne e laticínios, principalmente em regiões onde o consumo já é excessivo. Em vez disso, muitas das recomendações visam a intensificar a eficiência das práticas pecuárias.

Cleo Verkuijl, do Instituto Ambiental de Estocolmo, Estados Unidos, e um dos oito autores do comentário publicado, expressou sua surpresa diante dessa lacuna: “É muito surpreendente: a FAO não inclui uma das intervenções mais claras que ajudariam a cumprir as metas ambientais e de saúde”. Verkuijl também criticou a rejeição da FAO às proteínas alternativas, destacando que estas têm impactos ambientais significativamente menores que a carne convencional.

Um relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), divulgado em dezembro, corrobora essa posição, afirmando que as alternativas aos produtos de origem animal têm o potencial de reduzir consideravelmente a pegada ambiental do atual sistema alimentar global.

O professor Matthew Hayek, da Universidade de Nova Iorque, também destacou as falhas do relatório da FAO, ressaltando a falta de embasamento científico para algumas de suas alegações. “Com todos os desafios que os sistemas alimentares enfrentam nas próximas décadas, cortar o consumo de produtos de origem animal se mostra uma solução promissora”, afirmou.

Os especialistas também lamentaram a omissão da abordagem “One Health” no relatório da FAO, que visa conectar a saúde humana, animal e ambiental. Embora a FAO faça parte de uma iniciativa com outras organizações internacionais para implementar essa abordagem, seu roteiro não a menciona.

É evidente que algumas das intervenções propostas pela FAO, como a transição da carne bovina para o frango e a intensificação da pecuária, podem acarretar riscos adicionais, como resistência antimicrobiana e doenças zoonóticas.

Embora o roteiro reconheça esses riscos, destacando a necessidade de aumentar a produtividade de forma sustentável, os autores do comentário reforçam que a transição para uma dieta mais baseada em vegetais é uma solução promissora. David Laborde, diretor da divisão de economia e política agroalimentar da FAO, rejeitou as críticas, salientando a ênfase dada às mudanças alimentares no relatório. No entanto, a falta de menção específica à redução do consumo de carne e laticínios permanece como uma lacuna significativa.

Em última análise, a exclusão desses aspectos cruciais do debate sobre segurança alimentar e mudanças climáticas é, sem dúvida, uma falha preocupante.

Fonte: The Guardian

Stella Legnaioli

Jornalista, gestora ambiental, ecofeminista, vegana e livre de glúten. Aceito convites para morar em uma ecovila :)

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