Por Sarah Schmidt – Revista Pesquisa FAPESP | O biólogo César Favacho, que faz vídeos sobre insetos e aracnídeos e tem 322 mil seguidores no TikTok, adota um procedimento ao receber convites para fazer campanhas publicitárias nas redes sociais: consulta outros divulgadores de ciência sobre eventuais conflitos de interesse e riscos de comprometer sua reputação. Em 2023, ele recebeu um convite para fazer vídeos para uma mineradora e, depois de conversar com colegas, declinou. “Embora o dinheiro pudesse ajudar no meu trabalho de divulgador, área que pretendo seguir, ponderei que minha credibilidade é o meu principal valor”, diz. Segundo Favacho, que cursa doutorado em biodiversidade e evolução no Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém, a atividade da empresa causava danos ambientais e as medidas de compensação nas quais investia eram tímidas. Hoje, discute com colegas uma proposta feita por uma empresa farmacêutica.
Capazes de atingir milhões de pessoas nas redes sociais, divulgadores de ciência são procurados para fazer propaganda de produtos que vão de relógios inteligentes a cosméticos ou promover empresas em vídeos institucionais. Suas escolhas nem sempre são bem recebidas pelos seguidores e têm despertado uma questão: quais limites éticos devem ser respeitados ao aceitar fazer publieditoriais, eufemismo para publicidades com formato de conteúdo informativo? Vincular a imagem a uma empresa é um tema sensível, pois a publicidade é vista como um endosso pessoal ao produto ou serviço. No caso dos divulgadores de ciência, há uma questão adicional, já que sua credibilidade se origina da veiculação de conteúdo embasado em evidências científicas.
Essa discussão ganhou fôlego no final de 2024 após o microbiologista e divulgador científico Átila Iamarino, com 1 milhão de seguidores só no Instagram, participar de uma campanha sinalizada como uma “parceria paga” em suas redes sociais. Três vídeos publicados entre setembro e outubro de 2024 para a empresa petrolífera Shell tratam das qualidades do etanol produzido pela companhia, a complexidade de substituir combustíveis fósseis, cuja importância econômica ainda é grande, por opções sustentáveis, e a expertise da empresa em fabricar derivados de petróleo de modo confiável. Este último criou controvérsia por conta de um trecho em que Iamarino afirma que a Shell tem tecnologia para extrair o insumo de forma segura, “oferecendo energia vital e ajudando a impulsionar vidas”.
Postado em 16 de outubro, já no dia seguinte o vídeo tinha mais de 3 mil comentários, muitos negativos – as peças continuam no ar, mas com comentários fechados após a repercussão. A principal queixa dizia respeito ao microbiologista ter aceitado dinheiro para referendar ideias de uma empresa cuja principal atividade tem como consequência a emissão de gases de efeito estufa. Também houve quem criticasse o influenciador, conhecido por combater o negacionismo científico na pandemia, por defender o “negacionismo climático”, embora os vídeos não contestem nem minimizem o papel dos combustíveis fósseis na crise do clima. Procurado por Pesquisa FAPESP, Iamarino não respondeu aos pedidos de entrevista.
Não foi a primeira vez que o microbiologista deixou seu público contrariado – ou ao menos parte dele. Em 2020, Iamarino publicou no canal Nerdologia, no YouTube, o vídeo O livre mercado é um computador, patrocinado pela bolsa de valores brasileira, a B3, e a corretora Nova Futura Investimentos. O vídeo discute os fatores que determinam a flutuação de preços e traça uma analogia com o funcionamento de formigueiros. Uma menção favorável ao livre mercado em contraposição a ideias do “socialismo” serviu como gatilho para críticas. Um estudo publicado na Revista Fronteiras – Estudos Midiáticos, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), em janeiro de 2022 analisou as reações no Twitter ao vídeo e classificou-as em quatro categorias. Uma delas reunia indivíduos que questionavam a autoridade de um biólogo tratar de economia e ciências sociais, temas alheios a sua especialidade. Outra atacava Iamarino por supostamente apoiar “posicionamentos neoliberais”. Uma terceira tratava de uma alegada contradição entre o histórico de combate à desinformação do divulgador e a publicação de um vídeo com ideias “equivocadas”. E uma quarta o censurava por ter aceitado apoio financeiro da B3.
“Para o grande público, o que o divulgador de ciência diz é como se recebesse uma chancela da ciência. Por isso, a credibilidade que ele constrói traz uma grande responsabilidade”, observa o biólogo Luiz Bento, divulgador científico da Fundação Centro de Ciências e Educação Superior a Distância do Estado do Rio de Janeiro (Cecierj) e um dos coordenadores do grupo de pesquisa Cultura, Educação e Divulgação Científicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “A divulgação científica tem uma função social. Há um problema ético quando o cientista empresta a sua imagem para uma empresa que tem entre suas práticas ações que ignoram as evidências baseadas na ciência”, avalia.
O dilema se coloca porque a rotina dos produtores de conteúdo na internet, para ser sustentável, precisa ser remunerada, e um dos principais caminhos é a obtenção de contratos de publicidade. “Os influenciadores digitais, normalmente, são pessoas que fazem de sua imagem e de sua visibilidade o seu ganha-pão”, explica a profissional de relações públicas Carolina Terra, da Escola de Artes e Comunicação da Universidade de São Paulo (ECA-USP) e autora do livro Marcas influenciadoras digitais: Como transformar organizações em produtoras de conteúdo digital (Difusão, 2021). Diferentemente dos veículos de comunicação tradicionais, eles são, ao mesmo tempo, a pessoa que cria o conteúdo informativo e empresta o rosto para a publicidade.
Para organizar esse ambiente fluido, no qual a publicidade paga pode se mesclar a recomendações espontâneas, em 2021 o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) publicou um guia de publicidade para influenciadores digitais, no qual ressalta que todo conteúdo pago precisa ser sinalizado. “O objetivo é que o consumidor não tenha dúvida de que se trata de um conteúdo publicitário”, explica Terra. “Mas não são abordadas questões éticas de conflito de interesses. Fica a cargo de cada um, em sua área específica, avaliá-los.”
Os limites podem não ser claros para divulgadores de ciência na internet, mas para jornalistas, incluindo especializados em ciência, existem códigos de ética com normas que regem a atividade profissional. Os veículos tradicionalmente separam a publicidade da produção de informação de interesse público. “Dificilmente um jornalista, no exercício de sua função, empresta sua imagem para uma marca. A propaganda é assunto da área comercial da empresa. Os jornalistas que fazem comerciais são aqueles que redirecionam a carreira para o entretenimento”, pondera Luiz Bento.
O jornalista Eugênio Bucci, da ECA-USP e autor do livro Sobre ética e imprensa (Companhia das Letras, 2008), propõe olhar para a história do jornalismo e perceber o que levou ao estabelecimento de regras autônomas para disciplinar o tema. Ele destaca que os códigos de ética importantes da imprensa têm pouco mais de 100 anos e que grandes jornais já separavam opinião, negócios e reportagem. “Isso apareceu para proteger o valor da credibilidade jornalística e para que o público pudesse conhecer as regras que orientavam os veículos de imprensa. E isso, na época, ampliou o público dos jornais”, explica, enfatizando que suas observações se aplicam ao campo do jornalismo de modo amplo e não se referem a casos específicos de influenciadores.
“Essa é uma questão ética nova e importante, à qual pouca atenção foi dada até agora, pelo menos no Reino Unido e na Europa”, afirmou o jornalista de ciência do Financial Times Clive Cookson à Pesquisa FAPESP. Para ele, se uma espécie de código de ética fosse discutida, deveria levar em conta duas questões – a seu ver, problemáticas. “A primeira é o fato de as pessoas usarem sua reputação científica para fazer propaganda de algo fora da sua área de especialização.” A segunda, de acordo com Cookson, envolve influenciadores com histórico científico que promovem visões que vão contra evidências, para influenciar o debate político, como ocorre no caso das mudanças climáticas – sem necessariamente ganhar dinheiro com isso. “Esse parece ser o principal problema que enfrentamos aqui [no Reino Unido]”, diz.
Sem normas compartilhadas, muitos cientistas usam o bom senso para aceitar ou rejeitar campanhas publicitárias. A paleontóloga Beatriz Hörmanseder, que tem 244 mil seguidores no TikTok e faz doutorado em biologia animal na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), conta que se recusou a fazer publicidade para uma loja que vende fósseis importados – essa é uma linha que diz não pretender cruzar. “A loja não tem fósseis do Brasil, mas vende fósseis marroquinos. Patrimônio não se precifica, sou contra a venda de todo tipo de fóssil”, observa. Ela procura recursos em áreas onde não vê conflito de valores. Em 2023, fez uma parceria comercial com uma fabricante norte-americana de processadores. No acordo, a empresa lhe enviou um computador – segundo ela, com valor estimado entre R$ 15 mil e R$ 20 mil – em troca de uma série de vídeos que ela gravou para a marca, veiculados no YouTube, mostrando como uma cientista pode utilizar o computador – no seu caso, para uma pesquisa que envolve digitalização e preservação 3D de fósseis.
Ao ganharem visibilidade na internet, cientistas procuram ou são procurados por agências especializadas. A astrofísica brasileira Duília de Mello, vice-reitora na Universidade Católica da América, em Washington, nos Estados Unidos, está entre os clientes da publicitária Juliana Gongora, fundadora da Vésper Assessoria, especializada em orientar cientistas para publicidade, palestras e contato com a imprensa.
Entre os contratos de publicidade fechados está uma campanha para o Mercado Livre América Latina, estrelada por Mello para a televisão. “Quando chega uma solicitação de uma marca para uma publicidade ou palestra, a primeira coisa a fazer é avaliar riscos e benefícios. Todo o roteiro da campanha precisa ser negociado. Se a imagem do cientista é arranhada, o estrago pode ser grande”, diz Gongora. Ela conta que recusou insistentes propostas de campanhas de bets que a agência recebeu.
Duília de Mello diz que procura apoio da agência para avaliar e triar empresas com que fecha palestras e campanhas. “Como cientistas, precisamos mostrar o nosso rosto e o que fazemos, até para inspirar jovens a seguirem a carreira, mas precisamos avaliar a quem associamos nossa imagem”, pondera a astrofísica.
A farmacêutica-bioquímica Laura Marise e a bióloga Ana Bonassa, criadoras da iniciativa de divulgação científica Nunca Vi 1 Cientista, que soma 1,1 milhão de seguidores no YouTube, Instagram e TikTok, também utilizam o trabalho de uma agência especializada em criadores de conteúdo. Marise explica que, quando uma marca pede que se fale sobre a eficácia de determinado produto, elas solicitam publicações científicas e documentos que embasem os dados. “Já houve casos em que, depois desse pedido, a empresa nunca mais nos respondeu”, conta.
Mesmo com os critérios que adotam, elas não passaram incólumes a críticas por escolhas que fizeram. Em 2024, Marise e Bonassa aceitaram ser apresentadoras do podcast Nossa Energia, da Petrobras. Embora não se tratasse de um publieditorial, foram questionadas por associarem seus nomes ao de uma empresa petrolífera, em um contexto de mudanças climáticas. “Decidimos aceitar porque avaliamos que ter duas mulheres divulgadoras de ciência à frente de um projeto para a maior estatal do país, em um lugar geralmente ocupado por homens, traria uma representatividade e visibilidade”, explica Bonassa.
Desde 2022, elas deixaram a carreira de pesquisadoras para se dedicarem exclusivamente à divulgação científica na internet. No ano passado, emprestaram a imagem a 40 campanhas. “Há uma romantização de que dá para viver da divulgação científica apenas com a monetização dos canais e com algum apoio financeiro dos seguidores. Há meses em que as visualizações são mais baixas e mudanças no algoritmo afetam o desempenho”, afirma Marise.
A jornalista Sabine Righetti, do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Unicamp, sugere que projetos de divulgação científica, incluindo os de divulgadores nas redes, tenham critérios éticos previamente definidos. Isso inclui estabelecer os tipos de apoio ou publicidade que o influenciador não pode aceitar, seja porque contrariam evidências científicas ou pertencem a um campo do conhecimento que o cientista não domina. Ela ressalta que ainda faltam mecanismos de apoio e financiamento para a divulgação científica no país. Por isso pondera que, se as publicidades forem bem avaliadas, têm um papel importante. “Se o setor privado vai financiar o trabalho de alguém nas redes sociais, é bom que seja o de um influenciador de ciência sério e que tenha critérios claros sobre quais tipos de apoio aceita receber”, conclui.
Este texto foi originalmente publicado pela Revista Pesquisa FAPESP, de acordo com a licença CC BY-SA 4.0. Este artigo não necessariamente representa a opinião do Portal eCycle.
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