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Ministério da Saúde não considera casos de indígenas que vivem fora de terras homologadas

A realidade da pandemia para os indígenas da Amazônia brasileira é muito pior do que mostram os registros oficiais do Ministério da Saúde. Na prática, o número de mortos é 103% maior do que o divulgado pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). Já a diferença para o número de casos identificados é de 14%.

Os dados são de um levantamento independente feito pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) considerando o período entre 23 de fevereiro e 3 de outubro de 2020. O estudo, feito em parceria com outras instituições, como o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) e a Fiocruz, foi publicado na revista Frontiers.

De acordo com Valéria Paye, da Coiab, essa omissão é proposital. “É uma tentativa de negar a própria identidade indígena, fruto do preconceito estrutural. O que acaba sendo utilizado para negar o direito de acesso às vacinas e aos serviços de saúde”, afirma.

A diferença entre os dados oficiais e os identificados pelo estudo, segundo ela, se dá sobretudo porque o Ministério da Saúde não considera casos de indígenas que vivem fora de terras homologadas. É como se os indígenas que vivessem em cidades não existissem para a autoridade máxima da saúde pública brasileira.

Um erro grave, já que o número de indígenas nesta situação representa cerca de 36% da população total, de acordo com dados já defasados do IBGE, de 2010, mas ainda os últimos disponíveis. Isso acaba também excluindo os indígenas que vivem em zona urbana da lista de prioritários na vacinação contra a covid-19.

Os estudo mostra que, na Amazônia Legal, a taxa de incidência de covid-19 é 136% mais alta do que a média nacional e 70% maior do que a média entre todos os habitantes da região. A taxa de mortalidade indígena por 100 mil habitantes é 110% superior à média brasileira e supera a média da região em 89%.

Para Paulo César Basta, da Fiocruz, um dos autores do estudo, essa subnotificação é extremamente prejudicial. Se o governo só reconhece metade do problema, ele direciona apenas metade do orçamento e dos recursos necessários para solucionar a questão.

“Com isso você vai destinar menos profissionais qualificados pra tratarem do assunto, vai investir menos, destinar menos testes e terá uma visão distorcida da realidade, vendo o problema menor do que ele realmente é”, diz Basta.

É um caso clássico de incapacidade proposital de obter, filtrar e divulgar dados confiáveis e detalhados para municiar uma política pública insuficiente diante da perseguição aberta do governo federal aos indígenas e do orçamento da União reduzido ao mínimo graças ao teto de gastos.

Mesmo com a pandemia, o orçamento da saúde indígena é o menor dos últimos 8 anos. Os gastos parciais de 2020 representam queda de 14% em relação ao início da gestão de Jair Bolsonaro, em 2018, segundo levantamento feito pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). E o orçamento da Fundação Nacional do Índio (Funai), que representa meros 0,02% do orçamento da União, é o mais baixo dos últimos 10 anos.

Diante da situação, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) precisou recorrer ao Supremo Tribunal Federal, que votou de forma unânime obrigando o governo Bolsonaro a tomar medidas emergenciais para combater a pandemia entre os povos indígenas em agosto de 2020.

Entre as medidas ainda não integralmente cumpridas determinadas na época, estão a criação de barreiras sanitárias, a garantia do atendimento dentro da rede da Sesai e a expansão do atendimento a indígenas que vivem em cidades e em terras que estejam em qualquer fase de demarcação.

“Depois de mais de um ano de pandemia, parece que o governo federal não aprendeu nada com a situação e coloca em prática um plano orquestrado de prejudicar especialmente os indígenas”, critica Basta, da Fiocruz.

Dados incompletos e infecção pelos próprios profissionais de saúde

Os dados atualizados até o momento pela Coiab, referentes à Amazônia, são detalhados por etnia, o que não é divulgado pelo Ministério da Saúde. Segundo a Coiab, são mais de 37 mil casos confirmados e 894 mortes na Amazônia entre 150 povos de diferentes etnias atingidos pela covid.

Além dos dados da Sesai, a Coiab leva em conta também informações de lideranças indígenas, de profissionais de saúde que trabalham em campo e organizações que formam a rede da Coiab. Considerando o Brasil todo, pelos dados da Apib, são 1.038 indígenas mortos e mais de 52 mil casos entre 163 povos diferentes. Um comitê nacional atualiza periodicamente as informações. Já de acordo com o último boletim do Ministério da Saúde até o fechamento deste texto, em 16 de abril, o Brasil teria 46,5 mil casos confirmados e 639 óbitos entre indígenas.

As diferenças entre os dados simplificados do Ministério da Saúde e o levantamento da Coiab é um dos pontos destacado por Martha Fellows, pesquisadora do Ipam e uma das autoras do estudo.

“Se você quer pensar numa política pública de saúde, você tem que saber o que está acontecendo em detalhes. E para isso é importante ter o dado mais preciso possível. Isso faz muita falta”, diz.

Outro agravante é o fato de que a covid-19 chegou até as aldeias levada por agentes de saúde que não tomaram os devidos cuidados, como testes e isolamento por no mínimo 14 dias antes de adentrarem em áreas isoladas na Amazônia.

“Em muitos casos a porta de entrada da doença foram os profissionais da própria Sesai. Como na minha terra, a Tucumaque (entre o Pará e o Amapá). Acompanhamos vários casos como esse”, relata Valéria Paye.

Isso também aconteceu, por exemplo, com indígenas que vivem no Vale do Javari, no extremo oeste do Amazonas, região com maior número de grupos isolados e de recente contato do mundo.

A dificuldade de acesso ao sistema de saúde é outro fator determinante para o quadro geral: a distância média de uma terra indígena na Amazônia até um município com leitos de UTI é de 271 quilômetros, ultrapassando mais de 700 km no caso de algumas aldeias no Alto Rio Negro, no Amazonas.

Procurado para comentar o estudo, os problemas e os casos relatados, o Ministério da Saúde não respondeu.


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