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Mudanças de comportamento podem indicar problemas no longo prazo, como agressividade ou depressão

Desde o início da pandemia Lívia e Suzy, ambas cadelas da raça dachshund, de 7 e 10 anos, e Mila, vira-lata de 14 anos, seguem os moradores do apartamento onde moram, na cidade gaúcha de Pelotas, por todos os cômodos. Suspeitando que elas poderiam estar estressadas por causa do confinamento e da convivência contínua com as pessoas, a veterinária Fernanda Krug resolveu mudar seu projeto de doutorado na Universidade Federal de Pelotas (UFPel) para entender a situação. Ela preparou e distribuiu um questionário on-line em português, inglês e espanhol para examinar eventuais mudanças de comportamento – como ansiedade e agitação – em cães que estavam passando mais tempo com seus responsáveis, modernamente chamados de tutores.

Com base em 1.532 respostas, Krug concluiu que a maioria dos animais estava mais dependente das pessoas. Segundo ela, quando as pessoas voltarem a trabalhar fora de casa, os cachorros podem sofrer da chamada ansiedade de separação, que pode levá-los a destruir objetos, chorar ou latir quando estiverem sozinhos. “Sair mais de casa sem eles e deixar brinquedos para se distraírem quando estiverem sozinhos pode amenizar os efeitos da quarentena”, sugere.

Perceber mudanças de comportamento nos cães pode ajudar a detectar distúrbios que talvez se agravem com o tempo, como fobias, agressividade, ansiedade e depressão. Uma pesquisa que avaliou problemas comportamentais em cães no Brasil, cujos dados foram coletados antes da pandemia, mostrou que os animais que dormiam dentro de casa tinham 1,4 vez mais risco de desenvolver problemas de apego excessivo do que os que dormiam fora de casa. De 1.741 cães, 72,4% dormiam em quartos, salas ou nas camas de seus responsáveis. Publicado em janeiro de 2021 na revista Applied Animal Behaviour Science, o estudo avaliou 12 dimensões comportamentais, como agressividade, energia, medos e ansiedade, com base nas respostas dos responsáveis pelos animais de todas as regiões do país.

A mesma pesquisa indicou que um em cada cinco entrevistados (20,6%) não passeava com seus cães. Esses animais, de acordo com esse estudo, tinham 1,6 mais chance de serem agressivos com pessoas desconhecidas e, em comparação com os que saíam com frequência, eram mais agitados e propensos a chamar a atenção de seus donos quando interagiam com outros cães ou pessoas. “Quando vive preso em casa, o cachorro deixa de ver outras pessoas, de se socializar e se exercitar”, comenta Carine Savalli, professora de estatística e coordenadora do laboratório de etologia canina (Leca) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) em Santos, principal autora do artigo.

Nessa pesquisa, 35,5% dos cães eram vira-latas – sem raça definida – e se revelaram mais medrosos que os de raça, com duas vezes mais risco de se assustarem com objetos ou barulhos como fogos de artifício e trovões, e 1,8 vez mais risco de temerem pessoas estranhas. Por outro lado, os vira-latas podem ser mais entusiasmados e festivos – quando ganham um brinquedo novo, por exemplo – e enérgicos que os de raça, observou Savalli em outro estudo, publicado em dezembro de 2019 na revista Scientific Reports como parte de projeto apoiado pela FAPESP por meio do programa Centros de Pesquisa em Engenharia. A alegria poderia ser uma resposta à mudança de espaço: “Quando são adotados, os vira-latas ganham conforto, têm mais tempo para brincar e podem se mostrar mais animados”, diz a bióloga Natalia Albuquerque, pesquisadora em estágio de pós-doutorado no Laboratório de Etologia, Desenvolvimento e Interação Social (Ledis) do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP) e coautora dos dois artigos.

Não é só no Brasil. Ao analisar respostas de 15.391 donos de cães da Alemanha, pesquisadores da Universidade Eötvös Loránd, na Hungria, também observaram que os sem raça definida eram menos calmos e menos sociáveis que os de raça. Como foram adquiridos mais velhos, com mais de 12 semanas de idade, provavelmente tiveram menos oportunidade de socialização quando filhotes, sugere o estudo, publicado em fevereiro de 2017 na PLOS ONE.

Savalli e seus colegas identificaram associações de características dos cães brasileiros com o perfil de seus donos. Nas duas pesquisas, cachorros de mulheres eram mais propensos a apresentar problemas de ansiedade de separação, tinham mais medo de outros cães e se revelavam mais estressados. “Homens e mulheres tratam os cães de forma diferente. As mulheres interagem mais com os animais, que podem desenvolver uma dependência maior e até mesmo ser menos sociáveis com outras pessoas”, diz ela, embora não seja possível afirmar causalidade a partir da correlação.

No estudo da Applied Animal Behaviour Science, Savalli e outros pesquisadores de São Paulo, de Minas Gerais e dos Estados Unidos traduziram, adaptaram e validaram o Canine Behavioral Assessment & Research Questionnaire (C-Barq), instrumento bastante usado em pesquisas que avaliam problemas comportamentais em cães com base nas respostas de seus responsáveis, criado pelo biólogo James Serpell, da Universidade da Pensilvânia, coautor do artigo.

O artigo da Scientific Reports analisou o temperamento dos cães no Brasil com base na aplicação de uma versão traduzida e adaptada do questionário Positive and negative activation scale (Panas). São duas escalas, uma negativa e outra positiva, que funcionam como réguas independentes, avaliadas por meio de relatos de seus cuidadores. Na negativa, quanto mais alta a pontuação, maior o risco de o cão ser medroso ou ansioso. Quanto mais baixo o escore, mais se aproxima de ser calmo e tranquilo. Na escala positiva, cachorros com escores mais altos podem ser mais agitados, festivos e tendem a responder mais a estímulos como brincadeiras, petiscos, afagos ou passeios. O animal com a pontuação mais baixa pode ser mais apático, com tendência à depressão. É o caso dos cães mais velhos, que se mostraram menos enérgicos, enquanto os mais novos tendem a ser mais agitados e curiosos. “Muita gente abandona filhotes porque destroem roupas, sapatos e móveis, mas também são mais maleáveis aos treinamentos que estimulam bons comportamentos”, diz Albuquerque.

A relação homem-cão funciona como um par, acentua a médica veterinária Rute Canejo-Teixeira, da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias (ULHT) de Portugal. Ela coordenou a tradução, adaptação e validação do C-Barq para o português europeu, publicado em dezembro de 2018 na PLOS ONE. “Há uma ligação muito forte que data de pelo menos 16 mil anos de evolução conjunta”, disse ela, em entrevista a Pesquisa FAPESP. “Quando vemos um cão com comportamento inadequado, há uma falha nessa relação.” Para ela, é importante observar características da personalidade de ambos para entender o que poderia estar errado.

Quem cuida de quem?

A relação entre cães e seus donos tem sido comparada à de uma criança com a mãe, apoiada na teoria do apego do psicanalista inglês John Bowlby (1907-1990). Nela, o vínculo seria algo instintivo aos seres humanos e surgiria devido a uma relação de necessidade entre quem é cuidado – o bebê – e seu cuidador, representado pela figura da mãe. Da mesma maneira nasceria o apego entre o cachorro e seu cuidador: bastaram 10 minutos de cuidados por três dias para 20 cães adultos em um abrigo na Hungria mostrarem sinais de afeto e preferência a seus cuidadores, como relatado em um estudo já clássico nessa área, publicado em dezembro de 2001 na revista Journal of Comparative Psychology.

A relação pode ir muito além disso, argumentaram Savalli e a veterinária Chiara Mariti, da Universidade de Pisa, na Itália, em um artigo publicado em outubro de 2020 na revista Frontiers in Psychology. Elas citam estudos que sugerem que os cachorros adultos podem exercer o papel de cuidadores e oferecer suporte emocional a seus responsáveis, deitando-se ao lado deles, por exemplo, quando veem que estão chorando. Elas propõem que a relação entre o cão e a pessoa é bidirecional e menos assimétrica que aquela entre uma criança e sua mãe. “Na maior parte do tempo, são dois adultos de duas espécies se relacionando”, diz Savalli.

Os benefícios dessa convivência foram relatados em um estudo publicado na revista Science em abril de 2015, que mostrou que a concentração do hormônio ocitocina, associado ao prazer e aos vínculos afetivos, aumentou significativamente em cães e seus donos após interagirem e trocarem olhares por cerca de 30 minutos.

“Os animais têm uma habilidade de reconhecer emoções como alegria ou raiva maior do que pensávamos”, diz Albuquerque. Em 2015, ela coordenou um experimento quando estava na Universidade Lincoln, no Reino Unido, no qual 17 cães, ao lado de seus responsáveis, foram expostos a imagens de pessoas bravas e felizes, ao mesmo tempo que ouviam sons de broncas ou de alegria. “Eles foram capazes de encarar a imagem correspondente à emoção que o som emitia, demonstrando a habilidade de ativar uma representação mental e extrair uma informação emocional”, conta ela, que detalhou o trabalho em janeiro de 2016 na revista Biology Letters.

Também em 2016, em um artigo na PLOS ONE, Savalli concluiu que os cães recorrem à alternância de olhares para se comunicar com seus donos quando querem comida ou reconhecem algum sinal de perigo. Os cães percebem também quando o olhar de seus responsáveis está direcionado para eles e, portanto, apto para se comunicar. “Essa forma de comunicação aparentemente nasceu da convivência com as pessoas, já que não é vista entre um cão e outro”, informa a pesquisadora.

Cães com unhas pintadas

Os cães ocupam cada vez mais espaço nas casas brasileiras. Em 2013, o último dado oficial, havia 52,2 milhões de cachorros de estimação no país, superando os 44,9 milhões de crianças de até 14 anos, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). “Isso não significa que existe uma substituição dos filhos por animais de estimação”, diz o psicólogo Paulo Sérgio Boggio, coordenador do Laboratório de Neurociência Cognitiva e Social da Universidade Presbiteriana Mackenzie. “As pessoas têm levado mais tempo para casar ou ter filhos. Enquanto isso, procuram no cão uma figura de apego, vínculo e companhia.”

Os gastos dos consumidores com mercadorias e serviços para animais de estimação no país chegaram a R$ 22,3 bilhões no ano passado, segundo a Associação Brasileira da Indústria de Produtos para Animais de Estimação (Abinpet), ficando atrás apenas dos Estados Unidos. “O consumo desses produtos colabora para criar uma imagem antropomorfizada dos animais, que ganham festas de aniversário e roupas como se fossem crianças”, observa o biólogo Francisco Cabral, autor de artigo publicado em março de 2020 na revista Psicologia USP sobre as relações culturais entre cães e pessoas.

Canejo-Teixeira relata que em atendimentos ao público, em Lisboa, viu cães com as unhas pintadas por seus donos. “Já atendi cães que sofriam golpes de calor [temperatura corporal acima de 40 oC] porque usavam roupas que não os deixavam dissipar calor”, conta. Albuquerque, da USP, reforça: “Os cães precisam ser cães. Serão mais felizes se puderem ter contato com outros cachorros, correr, brincar, pular na lama e cheirar coisas na rua”.

Apesar do número de cães vivendo nas casas, a maior parte deles está nas ruas. “Dos cerca de 1 bilhão de cães existentes no mundo, aproximadamente 850 milhões vivem nas ruas e ao redor de aterros sanitários”, afirma Cabral, com base em estimativas de estudos internacionais; não há levantamentos oficiais sobre os números de cães de rua no Brasil. Outra categoria, também sem estatísticas, são os cães semidomiciliados, que moram em casas com pessoas e têm acesso fácil à rua, onde passam parte do tempo e ficam expostos ao risco de acidentes e de contaminação por doenças.

Uma equipe da Universidade Federal de Jataí (UFJ), de Goiás, estimou que 85% dos 8.323 gatos e 33% dos 3.605 cães do município saíam sozinhos com frequência, como relatado em um trabalho de setembro de 2020 na revista Research, Society and Development. A coordenadora desse levantamento, a veterinária Andréia Couto do Amaral, apresentou os resultados a vereadores da cidade. “Com os dados, o poder público pode promover campanhas de castração e vacinação, e a educação dos tutores para aprenderem sobre suas responsabilidades”, afirma.


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